RENATO PINTO VENÂNCIO
A concessão de mercês
Os nexos entre a burocracia e as elites locais
A FORMAÇÃO DA ELITE COLONIAL
Rodrigo Ricupero
ALAMEDA
394 p., R$ 58,00
Os estudos acadêmicos a respeito da elite colonial, em geral, têm como foco as camadas de senhores de engenho e de traficantes de escravos. O livro de Rodrigo Ricupero não desconsidera esse aspecto, procurando, porém, lhe dar uma melhor definição teórica. Afinado com a produção historiográfica recente, empreende uma nova leitura do antigo sistema colonial, descortinando a ação dos agentes administrativos no processo de conquista do Brasil.
Longe de pairar sobre a sociedade, os burocratas do ultramar se confundiam com as elites locais. Para dar carne e sangue a essa interpretação, o autor investiga a prática de concessão de “mercês”. Trata-se de um tema cada vez mais freqüente nos livros a respeito da sociedade colonial, consistindo em recompensas materiais e/ou simbólicas, que procuravam, na medida do possível, transformar os povoadores em fiéis servidores da Coroa portuguesa.
Em A formação da elite colonial, as mercês coloniais são diferenciadas das reinóis. No Brasil consistiam principalmente em terras e cargos, ao passo que em Portugal quase sempre consistiam em comendas de ordens militares, remuneradas e vitalícias.
Ligando as duas pontas dessas práticas havia o Estado monárquico, que, inicialmente, através da reconquista e depois por meio da expansão ultramarina, reuniu imensos recursos territoriais e fiscais, utilizando-os para cooptar as elites ou mesmo para gerá-las na forma de dependentes do rei.
Acumulação colonial
Esse mecanismo não era, como Rodrigo Ricupero sublinha, uma das políticas do Estado, mas sim sua própria encarnação patrimonialista. No Novo Mundo, a Coroa portuguesa se beneficiou do “sangue, vidas e fazendas” dos colonos, nas guerras contra os índios e rivais europeus, compensando os povoadores com cargos na administração local. Isso promoveu, novamente nas palavras do autor, “uma espécie de acumulação primitiva colonial”, dando aos “membros dirigentes um enorme poder, pois cabia a estes a distribuição das terras e dos escravos capturados” – escravos índios, diga-se de passagem.
A elite colonial, dessa forma, foi gerada não somente pela escravidão, como também pela máquina administrativa. Mas que máquina era essa? Ora, um dos pontos altos do livro é justamente quando o autor abandona os torniquetes conceituais das páginas iniciais, compartilhando com o leitor uma farta erudição acumulada em pesquisas nos arquivos e bibliotecas do Brasil, Portugal e Espanha; destacando-se, por exemplo, a consulta aos ainda pouco conhecidos manuscritos da Biblioteca Nacional de Madri e do Arquivo General de Simancas.
Ao longo do livro, o autor procura rever a suposta irracionalidade da administração colonial. Segundo os critérios da época, havia uma lógica subjacente ao sistema. Essa lógica primava pela não especialização: o mesmo indivíduo podia ocupar cargos de natureza completamente díspares. Também não havia separação dos poderes. O executivo se confundia com o judiciário, podendo também se confundir com o poder eclesiástico, como nos casos de bispos da Bahia que, simultaneamente, foram governadores-gerais interinos.
Mais importante ainda é a observação de que a burocracia reinol não foi mecanicamente transposta para a colônia. Como aponta Ricupero, o governo-geral “não seguia nenhum modelo metropolitano”. Também merece registro o esforço para se calcular o tamanho da administração colonial. Entre 1530 e 1630, houve o provimento de aproximadamente mil cargos. Esses postos não eram equivalentes, em poder ou remuneração, o que permitia a indivíduos de variadas origens sociais ser agraciados.
O número médio de cargos ocupados, dez ao ano, não parece muito. Havia, contudo, mercês menores, aí não computadas, concedidas diretamente pelo governador-geral ou capitão da capitania. No livro indica-se, ainda, a remuneração de algumas das funções da administração colonial: o ordenado anual de ouvidores era de 200 mil réis, ao passo que o de governadores-gerais era de 400 mil réis. Valores nada desprezíveis, principalmente quando lembramos os estudos da historiadora Kátia Mattoso que apontam uma média de preço de escravos, na Bahia do século 16, em torno de 20 mil réis.
Os governadores-gerais invariavelmente retornavam a Portugal, repatriando os ganhos. O mesmo nem sempre ocorria a seus familiares. O seguimento intermediário da administração também se enraizava na colônia, confundindo-se com os poderosos locais; assim, a elite que brotava da escravidão se mesclava àquela gerada no ventre da administração colonial.
Essa análise, em A formação da elite colonial, é alimentada por levantamentos empíricos de monta. Demonstra-se, por exemplo, que na Bahia e Pernambuco, entre fins do século XVI e início do XVII, dois em cada três senhores de engenho participavam ou haviam participado no “governo da conquista”.
A administração colonial também podia impulsionar diretamente a economia açucareira através do pagamento de reformas de engenhos de açúcar, destruídos por ocasião da guerra contra os índios. Em situações limites, registra-se até mesmo sua construção integral, como no caso do engenho real da Paraíba.
A partir dessas constatações é apresentada ao leitor uma interessante dialética: por um lado o poder administrativo metropolitano, para fazer frente aos índios hostis e aos rivais estrangeiros, dependia do “sangue, vidas e fazendas” da elite colonial; por outro lado essa mesma elite dependia do berço das mercês, patrocinado pela Coroa portuguesa, para se formar e se fortalecer.
Como se vê, o livro em questão ajuda a compreender um período que, dada as grandes lacunas documentais, é pouco frequentado pelos historiadores. Ao desbravar esse campo, Rodrigo Ricupero dá mostras de ousadia intelectual, perfil também observado em notas secundárias ao trabalho, como a que sublinha o emprego, na documentação compulsada, das designações “costa do Brasil, as terras do Brasil, as partes do Brasil, ou simplesmente Brasil”. O autor observa não ter identificado expressões como “América ou América portuguesa, exceção, salvo engano, feita a algumas passagens do Padre Antonio Vieira”. Ao longo do texto, sua opção pela designação simples de Brasil – ressaltando não se tratar do Estado nacional do século XIX – contribui para superação de malabarismos terminológicos.