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Paulo Sergio Duarte - 9 - Dezembro de 1995
A aventura do ser moderno
Foto do(a) autor(a) Paulo Sergio Duarte

A aventura do ser moderno

 

PAULO SERGIO DUARTE

Cézanne
Exposição: Paris, Galeries Nationales du Grand Palais (25/set/1995-7/jan/1996); Londres, Tate Gallery (8/fev-28/abr/1996); Filadélfia, The Philadelphia Museum of Art (26/mai-18/ago/1996)
Catálogo redigido por F. Cachin, J. J. Rishel, H. Loyrette, I. Cahn; Paris, Réunion des Musées Nationaux/Filadélfia, The Philadelphia Museum of Art, 600 págs., 31,8 x 23,5 cm, encadernado com sobrecapa em cores. 350 FF (cerca de US$ 72.00)

A obra de um artista que viveu quase toda a vida no século 19 pode contribuir para um balanço cultural do século 20? A resposta é afirmativa se este artista for Cézanne (1836-1906). E a confirmação encontra-se na extraordinária retrospectiva internacional, atualmente em Paris, e em parte no seu catálogo, prova de um enorme esforço de documentação.
Desde 1936, não se vêem tantas obras do autor reunidas. Constam 231 itens na lista de empréstimos do catálogo. Para se ter uma idéia do trabalho realizado pelos curadores, pelas instituições promotoras e pelos patrocinadores -obtendo, por um ano, seguro, embalagem e transporte das obras de um dos artistas mais caros do mercado-, do total das obras envolvidas, 179 são de 70 instituições de 56 diferentes cidades do mundo e 52, de particulares.
A última grande mostra, oferecendo uma visão parcial da obra, foi realizada em 1978-79, em Nova York, Houston e Paris. Tratava-se de uma seleção de 122 trabalhos do último período (1890-1906). Sem a mesma relevância, mas importantes, foram as mostras na década de 80, das obras de juventude, em Londres, Paris e Washington, e das "Banhistas", em Basiléia; a de Cézanne e Poussin, em Edimburgo, em 1990, e a recente exposição das obras da coleção Barnes.
Para a mostra atual -que se realiza cem anos depois da primeira individual de Cézanne, aos 56 anos de idade, na galeria de Ambroise Vollard-, foi editado um catálogo, do ponto de vista gráfico e documental, à altura do evento. Organizado e redigido, na maior parte, pelos curadores da mostra, F. Cachin, diretora dos museus da França, e J.J. Rishel, conservador no Museu de Arte da Filadélfia, tem também a colaboração de H. Loyrette, diretor do Museu d'Orsay. Do ponto de vista documental, trata-se da mais importante publicação sobre o conjunto da obra de Cézanne, desde a edição do primeiro "Catalogue Raisonée (1936), de L. Venturi. Os indispensáveis "Catalogues Raisonées das aquarelas, de J. Rewald (Paris, 1984), e dos desenhos, de A. Chappuis (Greenwich, 1973), necessariamente parciais por se dedicarem a setores da obra, não têm a abrangência do presente catálogo. Este só será superado pelo novo "Catalogue Raisonée das pinturas, de Rewald, previsto para o último trimestre do próximo ano pela editora Abrams (Nova York).
O registro das obras, segundo as décadas, constitui o núcleo do presente catálogo; o mesmo partido, inevitável, foi tomado para a montagem da exposição. Houve o cuidado de se incluírem trabalhos que não se encontram na mostra, para fins de pesquisa e comparação e, lembremos, a catalogação se beneficia do trabalho inédito de Rewald. É uma fonte preciosa para estudo e pesquisa, mesmo se restrita à seleção da mostra. Precedem esta parte uma breve seleção de notas de Cézanne sobre arte, alguns testemunhos sobre o artista por seus contemporâneos e uma análise da fortuna crítica, dividida em duas partes: de 1865 até sua morte (1906), e de 1907 até hoje. O catálogo é complementado por uma cuidadosa cronologia da vida e da obra, ilustrada por fotografias, de autoria de I. Cahn, e por um estudo -"Os Colecionadores de Cézanne, de Zola a Annenberg"-, por W. Feilchenfeldt. Conclui com uma bibliografia (563 títulos) e a lista das mostras do artista.
Se como referência ou documento o catálogo é importante, quanto à análise crítica da obra seus autores são ausentes. Preferiram a fortuna crítica e com isso se portam como museólogos, não arriscando, nas suas palavras, nenhuma "nova interpretação". Rishel, pelo menos, admite sua preferência por um grande crítico e historiador da arte -Schapiro- e pelas exaustivas investigações de Rewald. A fortuna crítica, apresentada cronologicamente, é muito útil, tanto ao leitor iniciante, como ao crítico e historiador da arte. É uma panorâmica sobre os principais e mais influentes títulos da bibliografia de Cézanne. Mas não se espere nada além de uma introdução a cada um dos autores analisados, preenchida pelas citações, como é praxe nesses textos.
O conjunto de ensaios editado por W. Rubin para a exposição de 1978-79, "Cézanne - The Late Work", com os antológicos textos de T. Reff, L. Gowing, L. Brion-Guerry, J. Rewald, F. Novotny, G. Monnier, D. Druick, G. H. Hamilton e do próprio Rubin, permanece como a melhor reunião de estudos críticos.
No presente catálogo, mediante a fortuna crítica, o leitor entra em contato com os principais estudiosos não-franceses da obra de Cézanne, que, desde a segunda década deste século, lideraram este trabalho. Os ingleses R. Fry (1866-1934) e C. Bell (1881-1964), o italiano Venturi (1885-1961), os alemães Rewald (1912-1994) e Novotny (nascido em 1903), o germano-americano K. Badt (1890-1973), os americanos G. Mack (1894-1983), A. Barnes (1872-1951), C. Greenberg (1909-1994) e Schapiro (nascido em 1904); e até os recentes trabalhos de L. Gowing (1918-1991) e de T. Reff (nascido em 1930). Qual a presença dos conterrâneos de Cézanne? Resta uma referência ao famoso ensaio de Merleau-Ponty (1908-1961), "Le Doute de Cézanne" (Paris, 1945), e ao livro de L. Brion-Guerry (nascida em 1916), "Cézanne et l'Expréssion de l'Espace" (Paris, 1966). Assim, no que toca à reflexão sobre sua obra, Cézanne continuou exilado, como em vida, no próprio país.
O catálogo e a exposição, principalmente, permitem o contato com a aventura de uma existência paradigmática, que se confunde com o trabalho: pintar. O ser moderno, resultante desta simbiose de trabalho e existência, mostra-se no processo de sua formação. O que esse caminhar nos ensina? Primeiro, o distanciamento, a não adesão, nem sequer no início, às premissas de seus amigos impressionistas, que buscavam captar as sensações ópticas, tomando literalmente o ar, o vazio entre o olho e o objeto, e todas suas possíveis variações, como "tema" de suas pinturas. Cézanne prefere um recuo ao espírito romântico. Tal recuo é, antes de tudo, uma atitude mental. Assim, a fatura de sua pintura não incorpora as lições românticas e deixa os traços de um constrangimento, de um mal-estar diante da "mímesis". Há agressividade frente à forma mimética. Neste fenômeno, Venturi, no seu entusiasmo, quis ver uma antecipação do expressionismo; outros, até uma incompetência, de resto, logo desmentida pela observação de estudos e desenhos da mesma época.
A partir dos anos 80, a experiência de Cézanne volta-se para a desconstrução e a crítica de um dos códigos mais rígidos e duradouros da cultura ocidental: a representação segundo os princípios da perspectiva geométrica. Naturezas-mortas e paisagens dominam tais trabalhos. E nos preparam para as últimas telas, na medida em que a existência dos entes "representados" distancia-se de sua realidade externa e só na pintura consegue realizar-se plenamente.
A obra culmina com a ambiguidade inteligente, na qual o plano enquanto entidade conceitual e a superfície como entidade empírica revezam-se, ao mesmo tempo que interagem, como palco da pintura, inaugurando um novo olhar sobre o mundo. Olhar que não permite infiltrações de afeto para traduzir "atmosferas", como regia a convenção dos paisagistas de seu tempo. Tais valores estéticos, cujos prolongamentos se estendem do cubismo até a grande arte de Pollock, estão vivos e explicam a nós e a este conturbado século melhor que muita arte recente.

Onde encomendar: Em São Paulo: Livraria Francesa, rua Barão de Itapetininga, 275, CEP 01042-914, São Paulo, tel. 011/231-4555, fax 011/255-2293; no Rio de Janeiro: Nova Livraria Leonardo da Vinci, av. Rio Branco, 185, lojas 3 e 9, CEP 20040-000, Rio de Janeiro, tel. 021/533-2237 

Paulo Sergio Duarte é crítico, professor de história da arte e pesquisador do Centro de Estudos Sociais Aplicados / Cesap da Universidade Candido Mendes.
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