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Cilaine Alves Cunha - 114 - Novembro de 2012
A alma em ação
Poema fratura a concisão e a clareza do enredo neoclássico
Foto da capa do livro O Guesa
O Guesa
Autor: Joaquim de Sousândrade
Editora: Demônio Negro - 380 páginas
Foto do(a) autor(a) Cilaine Alves Cunha

O poema narrativo de Joaquim de Sousa Andrade (1832-1902), O Guesa relata uma viagem imaginária do herói homônimo pela história americana, em geral, e brasileira, predominantemente. Saindo da mitologia incaica e dos Andes, ele vem até o Amazonas e atravessa o prévio período da chegada de Colombo, a invasão portuguesa, a colonização, a Independência e a monarquia. Segue para uma África ancestral, adentra a Europa contemporânea do autor, as Antilhas, o Golfo do México, a América Central, detendo-se na bolsa de valores de Nova York. Essa aventura interior molda-se por uma forma que, dita “extravagante” pelo autor, fratura a concisão e a clareza do enredo neoclássico.

Sousândrade alega que baseou seu poema em passagens da enciclopédia L’Univers e de Vue des Cordillières, obra do naturalista alemão Alexander von Humboldt. Reproduzidas na abertura, recontam uma provável lenda dos muíscas, antigos indígenas da Colômbia. Segundo ela, “guesa” significaria errante e sem lar, referindo-se a uma criança masculina que, arrancada dos pais ao nascer, é oferecida em sacrifício, na adolescência, a Bochica, o deus do sol. Antes do ritual de morte, renovado a cada quinze anos, ela peregrina por cinco anos até o caminho do Suna, travessia que a divindade teria antes percorrido.

Núcleo narrativo

O poema desenvolve-se em 13 cantos, três dos quais tidos por inacabados, distribuídos, em sua maioria, por decassílabos rimados. Narra-se a história por uma alternância de vozes, às vezes indistintas, do narrador e do protagonista, em geral monologando. Para compor seu herói, Sousândrade vale-se de episódios de sua biografia e da de outros escritores, bem como de traços de personagens arquetípicos da tradição que, em conjunto, tornam Guesa um anti-herói. A ele se aplica a vida simples e humilde de Jesus Cristo; a titânica rebeldia romântica; o mito de Napoleão como herói de libertação nacional; o suposto estado de inocência primitiva de um povo antes de sua decadência, dos garotos aprisionados pela lendária Iara e da bela criança africana do canto VII; a maldição de Promoteu e Ahasvérus etc. A frágil unidade de Guesa resulta da recriação do lugar comum da juventude, redimensionada pelo ideal de uma “ação livre e social virtude” em favor dos povos indígenas decaídos pelas práticas mercantis imperialistas.

Ao compor a linha conflituosa da história americana pelo mito da queda, o poema forja os pólos europeu-americano, colonizador-colonizado, monarquia-república, capitalismo mercantil-liberalismo econômico, cidade-campo e corrupção-inocência. Essa polarização responsabiliza a colonização, o regime monárquico, a escravidão, D. Pedro II, a parcela corrupta do clero e o capitalismo mercantil pela destruição dos antigos costumes rurais e patriarcais, a degradação da instituição familiar, das comunidades indígenas e das tradições nacionais.

A herança de Rousseau desemboca, como é praxe, na politização do tópico do campo que, se associando ao estado da inocência, resulta de uma substituição do emblema do pastor pelo lavrador desprotegido. A cidade liga-se, como antes, à cobiça e à usura, mas também à acumulação primitiva, fome e exclusão social. Esse conflito leva à perda das qualidades ético-morais da vida campestre e à traição dos ideais de libertação dos povos. Sem deixar de reconhecer a efetividade da colonização, Sousândrade, baseando-se em A República, de Platão, e na idealização do Império Inca, propõe uma política que eduque as elites para o amor à humanidade e integre e conceda aos índios os direitos da nação democrática e liberal. Guesa tem “pressa de futuro e de ciência” e de um antinômico capitalismo humanitário e cristão.

Digressões

Em que pese esse núcleo narrativo básico, o poema aborda, no entanto, várias linhas temáticas que, concorrendo em planos entrecruzados da linguagem, compõem um excesso. A narração da viagem do herói justapõe-se a longas seqüências de imagens líricas e diáfanas sobre as regiões do mundo visitadas ou evocadas. A recriação de algum mito indígena pré-colombiano, grego, romano, bíblico ou de alguma lenda do folclore popular alterna-se com os “abismos internos” que tudo isso desperta em Guesa e no narrador. O poema expõe ainda reflexões filosóficas e outras ético-sociais e religiosas sobre a cultura ameríndia e a do país; sobre os pressupostos estéticos do próprio poema, as convenções estéticas em voga no século XIX e seus autores queridos da tradição. Ao jogar, para um mesmo plano de importância, suas reflexões e digressões, o narrador adia constantemente a apresentação das experiências de Guesa.

A passagem de um tema para outro pode, às vezes, prescindir de informações que a indique ou se realizar por um movimento tenso e rápido. A quebra da linearidade cronológica lança a fábula num zigue-zague temporal ou mesmo concentra épocas distantes em um mesmo espaço. Além disso, há grupos de imagens que jorram, com certa autonomia, um fluxo digressivo de consciência. Outras imagens que contextualizam a fábula no espaço e no tempo dissolvem-se em visões etéreas. Radicalizando a defesa romântica da liberdade criadora do autor, Sousândrade monta em seu poema aglutinações de vocábulos, neologismos, abreviações, anagramas, arcaismos, hibridismos idiomáticos e até mesmo colagens de manchetes de jornais.

Recepção da obra

Diante disso, e da publicação, pelo autor, das primeiras edições em Nova York (1876) e em Londres (1884-1888?), O Guesa dificilmente circulou em meio ao grande público. Até a década de 1960, as histórias da literatura definiam Sousândrade como um autor “desnivelado”, às vezes situando-o entre os extremos da “inspiração e da aberração.” Ao lado de Álvares de Azevedo, Casimiro de Abreu e Junqueira Freire, incluem-no em uma curiosa “segunda geração” romântica.

Em 1964, a publicação de Re visão de Sousândrade (Perspectiva), organizada por Augusto e Haroldo de Campos, inverteu os pólos de aferição de O Guesa. A essa antologia os organizadores acrescentaram excelentes análises sobre o sistema poético de Sousândrade, com descrições de seus procedimentos estilísticos fundamentais, e um glossário de termos empregados nos cantos mais célebres do poema, o Tatuturema e o Inferno de Wall Street. Ao esclarecer fontes, modelos e o aproveitamento, em O Guesa, dos mitos indígenas pré-colombianos e amazônicos, os Campos recolocaram o poema no circuito acadêmico, favorecendo a produção de pesquisas sobre o assunto.

Desde então, as ousadias formais de Sousândrade tornaram-se, no outro extremo, uma exceção em seu tempo romântico. A leitura concretista abriu caminho para que ele seja hoje definido ora como realista, parnasiano, pré-simbolista, “um dos primeiros modernistas do mundo” ou mesmo como precursor das vanguardas estéticas do século XX.

Sensibilidade romântica

Em um de seus prefácios e no primeiro verso de O Guesa, empregando as frases “ser absolutamente eu livre” e “Eia, imaginação divina!”, o autor reivindica o preceito romântico de que a arte ordena-se de acordo com a sensibilidade e a racionalidade de seu autor. Para dar corpo ao pressuposto, apoia-se na peculiar interpretação que os românticos fizeram da Crítica da faculdade do juízo, de Kant.

A proposição de que a contemplação estética desencadeia um livre e desinteressado jogo com a forma e uma harmonia ou mesmo um conflito entre imaginação e razão, impelindo à reflexão, leva Sousândrade a compor o seu poema como uma “tempestade de idéias”. Procura moldá-lo pela contemplação do “espetáculo” da história, da natureza, das obras de arte favoritas do autor e de um material bastante hermético, cujos referentes assentam-se talvez em seu imaginário. Com a metáfora do deslocamento propõe – como diz – colocar a “alma em ação”.

Assim constituído, o poema não resulta em ausência de forma, mas no fragmento, que não necessariamente torna-se uma espécie inconclusa. A compreensão romântica da crítica kantiana determina que o sujeito é livre no reino da arte, exercendo a sua faculdade estética de julgar. O “gênio inato” e a arte, esferas da imaginação, almejam deter a capacidade de apreender a multiplicidade significativa da vida e de mediar a relação do sujeito com o conhecimento. Perambulando livremente por suas diversas áreas e seguindo o movimento de seu pensamento, ele pode implodir as fronteiras entre os gêneros discursivos e misturar, como em O Guesa, a épica, a lírica, o drama e o ensaio. Levando o procedimento ao extremo, sua produção torna-se, assim, polimorfa.

Em um dos cantos do poema, o narrador formula a compreensão, corrente em seu tempo, de que a história da dominação não se molda pelo heroísmo épico. Homero e Camões não podem existir em um “império odioso”, construído à custa do leite da mãe escrava e sem contar com a audácia guerreira dos heróis desterrados em sua pátria. Tampouco em uma nação que, ao consolidar a independência, transformou a monarquia escravocrata em regime permanente de transição, degenerando a idéia libertária.

Como a história americana e brasileira “ruge do coração do Guesa”, sua narrativa de viagem resulta em um híbrido estilístico. Encerrando um assunto trivial, como o drama individual e familiar de um herói vencido, trata-o numa linguagem solene. Se os abandonados da pátria tornam-se trágicos, em contrapartida os “feitos”, na história oficial, das personalidades que invadiram, colonizaram ou constituíram o Brasil como nação independente tornam-se burlescos.

No poema, as violentas inversões na ordem dos termos do período, ou em um único segmento frasal, a pouca coesão de frases e versos, o uso largo de contrastes e hipérboles é herança do sublime romântico. Procuram representar a idéia poética como um fenômeno indizível ou ainda os conflitos históricos como um objeto incognoscível e incomensurável, sem termo de comparação, fonte do desprazer. Como a angelical candura luciferina de Guesa, a dicção assentada em um grau intenso de contradição pode anular a natureza do objeto representado. Com esses procedimentos espera-se ainda elevar o pensamento, arrebatar a alma e expressar incompreensão diante dos violentos conflitos humanos e das adversidades do destino. Esse sentimento só se apazigua quando, gerando prazer, contrapõe-se-lhe o ideal republicano.

A força da tradição

Acentuando a sua complexidade, O Guesa vale-se de obras da tradição, quer como objeto de empatia, quer de derrisão. Homero, Virgílio, Dante, Shakespeare, Milton, Goethe, Byron, Edgar Quinet, Heine, Odorico Mendes, Joaquim Serra, entre outros, emprestam ou episódios da própria vida, ou cenas, personagens e motivos de suas obras para que Sousândrade invente a experiência de seu herói. No canto IV, a admiração por Gonçalves Dias manifesta-se no aproveitamento de alguns de seus poemas para desenvolver o tema da saudade como falta daquilo que não se tem ou sequer se conhece, figurando o forte sentimento de desterro na terra natal. Mais adiante, no entanto, essa admiração não impede o narrador de desqualificar Os timbiras, poema do autor de “Canção do exílio”.

A liberdade para criar as regras artísticas autorais não implica jogar fora a tradição com a água do banho. Desdobramento da querela entre Antigos e Modernos, o advento da modernidade romântica autodefiniu-se pelo fascínio pelas construções críticas dos modelos consagrados e por uma recorrente autocrítica.

A excentricidade formal do poema acompanha o Childe Harold’s Pilgrimage, de Byron, e o Ahasvérus, de Edgar Quinet. Fundamentando a sua obra em outra lenda, a do judeu errante, este drama histórico lega a Sousândrade a ficcionalização da história da França, com a sucessão de seus períodos adaptada ao Brasil. Como em Quinet, o autor de O Guesa cria uma forma desarmônica, confluindo misticismo e historicismo, teogonia e cosmogonia. No Brasil, seu modelo mais próximo encontra-se, de certo modo, na prosa poética Meditação, de Gonçalves Dias, e nos poemas narrativos O conde Lopo e Poema do frade, de Álvares de Azevedo.

A atual edição baseia-se na última publicada pelo autor em Londres. Contém ainda um canto avulso, “O Guesa, o Zac” (provavelmente uma incipiente continuação do canto XII) que Frederick Williams e Jomar Moraes desarquivaram de um jornal de 1902, inserindo-o na antologia que organizaram da obra de Sousândrade, na década de 1970. Não contém, no entanto, os prefácios do autor para as duas publicações parciais de Nova York, as “Memorabilia”.

Essa bela edição, do selo Demônio Negro, além de recolocar o livro em circulação depois de décadas, oferece pela primeira vez desde as edições originais uma versão não fac-similar do poema, mantendo a ortografia oitocentista e a tipografia irreverente do autor.

Cilaine Alves Cunha é professora de literatura brasileira na USP e autora de O belo e o disforme (Edusp).

Cilaine Alves Cunha é professora de literatura brasileira da FFLCH da USP.
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