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Fernando Antonio Pinheiro - 105 - Junho de 2009
A alma da raça
Foto da capa do livro Psicologia das multidões
Psicologia das multidões
Autor: Gustave Le Bon
Tradução: Maria Sérvulo da Cunha
Editora: Martins Fontes - 224 páginas
Foto do(a) autor(a) Fernando Antonio Pinheiro

O trabalho de Gustave Le Bon sobre a psicologia das multidões (1895) abrange uma gama de questões para além do que seu título sugere, que dizem respeito a um tema caro ao debate intelectual da época, mas também ao processo de institucionalização das ciências humanas.

O leitor dessa edição tem acesso privilegiado a um estudo da articulação entre esses pontos por meio do prefácio esclarecedor da socióloga Márcia Consolim, o que justifica restringir a abordagem a um aspecto conexo, mas mais circunscrito, a saber, a combinação pretendida pelo autor entre dois níveis do comportamento coletivo: a especificidade do funcionamento anímico do indivíduo sob o influxo do pertencimento à multidão e uma teoria mais geral dos fenômenos associativos.

Creio que o sucesso imediato do livro e o posterior esquecimento a que foi relegado, a despeito da incorporação crítica de algumas de suas teses por Freud e da sugestão de crítica à sua incorporação (a partir do próprio Freud) por Adorno e Horkheimer em seu Temas básicos da sociologia (1956), têm a chave de sua explicação no tratamento desigual dessas questões e nos problemas de seu ligamento.

A alma das multidões

Intelectual não vinculado às instituições acadêmicas francesas e representante de uma corrente que luta pelo estabelecimento de uma psicologia social como discurso legítimo sobre os “fatos sociais”, para tomar a expressão de Emile Durkheim; um dos líderes da sociologia cuja intenção de cientificidade ancora-se em seu enraizamento na universidade, rival a ser combatida por ele, Le Bon coloca expressamente no primeiro plano de sua análise a caracterização da “alma das multidões”, ou seja, a descrição da transmutação que se opera no psiquismo individual que se apaga aderindo a uma homogeneização – que via de regra implica rebaixamento ético e cognitivo – dos juízos e da ação sob o controle de um líder nas circunstâncias próprias à existência da multidão.

É justamente o tipo de alteração descrito por Le Bon que Freud toma como ponto de partida em Psicologia das massas e análise do eu (1921). Sumariamente, sob o influxo dos outros, o indivíduo adquire as marcas da entidade coletiva: superexcitação da vontade que, tangida pela afetividade, impele à ação sem possibilidade de raciocínio, credulidade e, em consequência, suscetibilidade à sugestão de um líder manipulador de imagens e palavras de ordem simples e expressivas, único material simbólico a ser processado sem reflexão, ausência de barreiras para atos violentos (e eventualmente heróicos, segundo a mesma lógica). Partilhando o núcleo da caracterização, Freud assinala que também em Le Bon as novas disposições psíquicas remetem ao inconsciente. Mas as afinidades cessam na concepção a respeito desse inconsciente, ponto que remete ao segundo nível do projeto de Le Bon.

Se Freud localiza a origem do dispositivo no refreamento da repressão que dá vazão a toda sorte de pulsão libidinal represada no inconsciente, Le Bon encontra sua fonte na “alma da raça”, conjunto de traços fixos de origem hereditária que são o fundo permanente de características psíquicas próprios de um povo; espécie de situação originária e normal a que a história reconduz após a perturbação do equilíbrio produzido pela ação das multidões, evocando o fundamento biológico da conformação coletiva.

Vontade de obedecer

Assim, fica estabelecida uma relação entre a “alma da multidão” e a “alma da raça”: a primeira diz respeito a fenômenos de imitação pensados a partir da metáfora da hipnose tornada o operador lógico central, à maneira de Gabriel Tarde (a quem Le Bon refere-se constantemente). O comportamento da multidão explica-se por algo como um processo de mesmerização coletiva em que a autonomia da vontade submerge diante da vontade de obedecer dirigida ao líder sugestionador; por outro lado, esses movimentos de conjuntura se fazem sob um substrato racial, podendo contrariar temporariamente seus fundamentos sem, no entanto, modificá-los de vez.

Passamos assim da psicologia à sociologia; do estudo do comportamento das multidões para uma análise dos fenômenos sociais que ancora um diagnóstico político. O mundo de que o autor fala corresponde à “era das multidões”, período de crise na evolução de uma civilização conforme a etapização que fecha o livro: da horda para a formação da raça que se consolida com a produção de um ideal particular, sucedido por seu desgaste entrópico que reconduz a uma situação próxima da barafunda original, agora identificada com o domínio da multidão. Ao perder sua alma, um povo fica entregue à alma inconstante da multidão, desagregadora do que garantia a estabilidade da vida coletiva, e, de outro lado, lastro da identificação conservadora entre democracia e anarquia, com público certo entre os saudosos do antigo regime.

A dimensão sociológica da obra, a meu ver, perde boa parte de seu vigor se confrontada com a sociologia científico-acadêmica nascente no mesmo período. Basta lembrar a crítica durkheimiana ao determinismo biológico inscrito no racialismo e ao hipnotismo generalizado como fundamentos da explicação, em trabalhos contemporâneos aos de Le Bon. O que evita o anacronismo ao apontar um segundo – e mais contundente – déficit sociológico na empreitada de Le Bon que consiste no deslizamento semântico da noção de multidão, que inadvertidamente passa da descrição de uma situação para a consideração formal de qualquer relação de co-presença.

O que lhe permite analisar como produto da psicologia das multidões casos como o tribunal do júri, as assembléias de diversos tipos, o eleitorado – o que nos leva de volta à impregnação do ideário político. É ao custo de desconsiderar o eixo institucional do regime democrático que se pode reduzi-lo a sintoma de prevalência da “alma das multidões”. Novamente Durkheim serve de contra-exemplo a esse procedimento: ao tratar “da compulsão psicológica das situações de multidão”, como uma das fontes secundárias da obrigatoriedade dos fatos sociais, deixa claro tratar-se de uma situação, que como tal é episódica, extraordinária e provisória, que dura enquanto dura a fonte da excitação coletiva.          

Mas o descuido ao tentar converter psicologia em sociologia não diminui o alcance histórico das teses de Le Bon no pensamento social que chega até nós – lembremos que um autor da importância de Oliveira Viana tem nelas uma de suas fontes, razão adicional do interesse do livro.  

Fernando Antonio Pinheiro é professor de sociologia da USP.
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