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Luiz Armando Bagolin - 81 - Janeiro de 2002
A ação do pintor
Foto da capa do livro Mondrian: A dimensão humana da pintura abstrata
Mondrian: A dimensão humana da pintura abstrata
Autor: Meyer Shapiro
Tradução: Betina Bischos
Editora: COSAC NAIFY - 95 páginas
Foto do(a) autor(a) Luiz Armando Bagolin

O ato de apreensão de uma obra de arte implica sempre a parcialidade de julgamentos e as condições limitadas daqueles que a percebem; portanto, compreende a aquisição progressiva de diferentes percepções cotejadas historicamente. Talvez essa seja uma das premissas fundamentais presentes na prosa crítica de Meyer Schapiro, importante historiador da arte, ativo entre as décadas de 30 e 80 na cena norte-americana.

Schapiro, estudioso da arte medieval, supostamente conheceu as proposições de Nicolau de Cusa, que utilizou o "exemplum" do artífice para designar que toda realização em ato sempre apresenta alguma coisa que não se traduziu em ato, ou seja, uma imperfeição que multiplica as ações deste artífice em múltiplas e variadas obras. É justamente essa margem de não-realização, de inacabamento, que impediria, na visão de Schapiro, qualquer possibilidade de acercamento da obra de arte como de um todo coerente.
Particularmente quando se trata de pensar sobre a arte moderna em suas manifestações abstratas, Schapiro não acredita na crítica de fundo teleológico que tenderia a associar a exclusão de formas naturais a uma universalização não-histórica das qualidades artísticas. Desse modo, em um ensaio publicado pela primeira vez em 1937, intitulado "A Natureza da Arte Abstrata", Schapiro glosa o livro "Cubism and Abstract Art", de Alfred H. Barr Jr., demonstrando a inadequação em considerar a arte abstrata como independente das condições históricas de seu aparecimento, a sua descontinuidade em relação à arte figurativa precedente e a transformação inequívoca em prol de uma arte de forma pura sem conteúdo.
Para Schapiro, o próprio artista identificado com a abstração teria assimilado o discurso segundo o qual a representação da natureza implicaria uma atitude passiva diante da mesma e, portanto, uma experiência de menor importância se comparada com a pesquisa de um campo formal absoluto, fundamentada pela razão. A advertência sobre os perigos de uma radicalização das posições em favor seja da arte representativa, seja da abstrata, dá lugar, então, à possibilidade de pensar a arte em termos de continuidade por força positiva de pensamentos e sentimentos coligidos historicamente. Para Schapiro, há passagens coerentes de um tipo de arte a outro, pois a arte deve ser entendida como algo que continuamente se produz e progressivamente se recebe.
Essas idéias voltarão a ser desenvolvidas em dois ensaios posteriores, sobre a obra de Piet Mondrian, intitulados "A Dimensão Humana da Pintura Abstrata", publicado em 1960, e "Mondrian - A Ordem e o Aleatório na Pintura Abstrata", de 1978, ambos novamente publicados em língua portuguesa sob o título do primeiro.
Em "A Dimensão", Schapiro refuta as proposições que tentariam vincular a pintura abstrata à abstração lógica ou matemática, limitando-a a um padrão geométrico frívolo. O termo abstração, nesse sentido, não seria muito adequado, pois para Schapiro não é possível pensar o artista fazendo uma obra em que seus sentimentos e sensações estejam em estado de suspensão momentânea. Por outro lado, uma pintura que pressupõe a espontaneidade e o envolvimento sensorial do artista não o livraria do lugar-comum "macaqueador da natureza", ou aquele para quem a pintura é "símia" (como em texto de Filippo Villani), pois o artista passa a ser produtor de "borrões", típicos dos primatas que nos divertem nos zoológicos citadinos.
"O pintor, ao que parece", satiriza Schapiro, "não pode escapar à sua natureza animal". Mas esse lugar-comum, reassumido de forma pejorativa na atualidade, ainda demonstra que não se pode creditar à arte abstrata um poder puramente racional, avesso à emoção, nem se pode igualmente considerá-la um álibi para a expressividade desenfreada das emoções num jogo aleatório e instintivo de formas e cores que a deslocaria do tempo histórico. Para Schapiro, o espectador moderno, seja ele representado pelo público reacionário ou pelo artista demasiadamente libertário, não percebeu as fortes ligações da pintura abstrata com as composições e os métodos de estruturação da pintura figurativa de finais do século 19.
Em "A Ordem e o Aleatório", Schapiro escolhe uma obra emblemática de Mondrian, "Composição em Branco e Preto", de 1926, e revela o modo como a pintura, em suas relações internas assimétricas, desenhadas pelas barras negras, tangíveis, referem um observador fora do quadro, sugerindo a existência de um espaço singular também exterior que se apresentaria mediante a apreensão dos elementos pintados. A interrupção das direções indicadas pelos elementos que estruturam internamente a pintura não podia ser encontrada nas pinturas mais antigas de Mondrian, sejam as paisagens, sejam os trabalhos aproximados à linguagem pictórica do cubismo.
Entretanto essas composições com elementos essenciais, entrecruzando-se em ortogonais, referem estratégias pictóricas anteriores, sobretudo achadas nas obras de Monet, Degas, Seurat e Toulouse-Lautrec. Nessa aproximação, Schapiro reitera a assimilação, por parte de Mondrian, de estruturações pictóricas que instrumentalizam a pintura, para além do plano do quadro, a situar a posição do olhar de um observador presumido. Propõe-se o exemplo da obra na chapelaria de Degas, onde a situação das figuras em cena tem tratamento distintivo que certamente se desfaria sem a perscrutação móvel daquele observador. Porém, para Schapiro, Mondrian tentou transpor para a experiência de sua arte abstrata apenas as relações espaciais observadas naquelas referências artísticas alheias, não incorrendo na redução das formas naturais a padrões geométricos simples.
A ação do pintor, por muitos considerada extremamente racional, justifica-se como força de operação contínua não somente artística, mas também sinalizadora de uma busca por novos modos de interação na vida cotidiana, e Schapiro vê esta ação como algo contrário a qualquer esquema de construção fria e impessoal. Antes, tal ação representaria o esforço por parte do artista em aliar a sua arte aos instrumentos de liberação das novas forças sociais prometidas pela modernidade.
Assim a sua pintura não oporia o espectador ao quadro, mas procuraria integrá-lo à cena espacial, expandida pela assimetria de suas relações. Não é incomum nos comentários de Schapiro, como de resto em boa parte da crítica do período, encontrarmos ainda a presença de algum ideário de fundo marxista.


Luiz Armando Bagolin é artista plástico e professor de história da arte na Pontifícia Universidade Católica - MG.

Luiz Armando Bagolin é professor do Instituto de Estudos Brasileiros da USP.
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