A
ideia de golpe de Estado está na ordem do dia do debate político brasileiro
desde 2016, quando a polêmica sobre a adequação de aplicar o conceito ao impeachment de Dilma Rousseff se
instaurou. A centralidade do conceito se aprofundou a partir da ascensão do
bolsonarismo em 2018, por duas razões principais: a primeira é que a ideologia
propagada por Jair Bolsonaro defende chamar o golpe de 1964 de Revolução; a
segunda é que o próprio presidente faz ameaças reiteradas de ruptura
institucional desde a campanha que o elegeu – ameaças que se intensificaram às
vésperas da eleição de 2022. Esse cenário reacendeu debates na sociedade sobre a
pertinência de se falar em golpe de Estado em 1964 e em 2022. Infelizmente,
essa discussão tão crucial é prejudicada pela falta de clareza com que o
conceito tem sido tratado nesses debates, como se a urgência de tomar
posicionamento perante tantas crises dispensasse uma investigação sobre as
diferentes camadas de significado da ideia de golpe de Estado e sua história.
É
esta lacuna que o livro Golpe de Estado:
História de uma ideia, publicado por Newton Bignotto, importante filósofo
brasileiro, no fim de 2021, vem preencher. Aliando erudição, rigor de análise, profundidade
e linguagem acessível, o livro traz a contribuição central de, em vez de
oferecer uma definição unívoca de golpe de Estado, a qual simplificaria o
debate, demonstrar que foram diversas camadas de significado que se acoplaram à
ideia ao longo dos séculos, resultando disso um conceito complexo, com
múltiplas, e por vezes contraditórias, dimensões. Bignotto nos faz ver que tratar
o golpe de Estado como um simples espantalho, como uma designação pejorativa
para atos dos quais discordamos, impede-nos de compreender um fenômeno
fundamental da política em toda a sua complexidade. Rejeitando o ponto de vista
moral, o autor considera que os golpes de Estado “são parte do universo da
política e podem ser analisados como parte de um processo que não apenas é
natural, mas que ocorre com frequência, que é aquele da inovação” (p. 40).
Assim, “não podem ser postos de lado pelos pensadores da política pelo fato de
serem moralmente condenáveis” (p. 41). O golpe de Estado coloca seus atores
diante dos elementos constitutivos da ação política: a contingência, o risco,
as circunstâncias difíceis e imprevisíveis.
No
Capítulo 1, Bignotto analisa o tratamento de Nicolau Maquiavel ao tema das
conjurações, adotando o autor florentino como uma baliza para o estudo da ideia
de golpe de Estado nos séculos seguintes. Assim, os golpes de Estado serão
compreendidos à luz da tópica maquiaveliana da conquista e da conservação do
poder por personagens inovadores, como os “príncipes novos”. Na maneira como
Bignotto analisa as três fases da conjuração para Maquiavel (a preparação, a
execução e a consolidação do poder conquistado), destaca-se a dimensão da fortuna, da indeterminação da ação
política, o que tornaria impossível um saber positivo sobre as conjurações.
No
Capítulo 2, o autor aborda a entrada do golpe de Estado no vocabulário político
na França do século XVII, em um contexto marcado pela emergência do Estado
moderno e das teorias da soberania e da razão de Estado. Tendo por foco Gabriel
Naudé, o autor que mais precisou e popularizou o conceito, Bignotto nota que
seu significado era inicialmente positivo, referindo-se às ações
extraordinárias necessárias para conservar o Estado. Apesar dessa ênfase na
conservação, Naudé teria percebido que o conceito podia se aplicar também aos
atos de conquista do poder, avizinhando-se da ideia clássica de conspiração. A
camada de significado desse primeiro momento de elaboração da ideia de golpe de
Estado seria o emprego extraordinário da violência na esfera política. Ainda no
século XVII, a mesma tópica dos atos extraordinários de conquista e conservação
do poder teria aparecido no Segundo
tratado sobre o governo de John Locke, embora sem a referência ao conceito
de golpe de Estado: Locke teria chamado de prerrogativa as ações
extraordinárias para preservar o bem comum, e de usurpação a conquista violenta
do poder.
O
Capítulo 3 trata do século XVIII, em que o emprego teórico do conceito de golpe
de Estado entra em declínio. A partir de 1789, o principal conceito a dar
sentido à experiência política teria passado a ser o de revolução, embora a
conspiração continuasse na ordem do dia e obcecasse os principais atores da
Revolução Francesa. A própria oposição dos revolucionários entre a Revolução,
concebida positivamente como o início de uma nova era, e as conspirações,
maquinadas por particulares que queriam tomar o poder, parece estar na origem
da dicotomia contemporânea entre revolução e golpe de Estado. Bignotto faz uma
análise pormenorizada dos eventos que levam ao 18 Brumário, demonstrando que os
atos de conquista e conservação do poder que hoje chamamos de golpes de Estado
eram compreendidos e justificados pela linguagem da Revolução. O 18 Brumário é
caracterizado como “o paradigma moderno dos golpes de Estado” (p. 166), por sua
união entre aparência de legalidade, defesa da Revolução, emprego controlado da
violência perante os obstáculos e lançamento das bases de um novo sistema de
poder.
No
Capítulo 4, Bignotto examina a reemergência do conceito de golpe de Estado no
vocabulário político do século XIX, especialmente na França, trazendo novas
camadas de significado. A maior novidade teria consistido na definição do golpe
como uma violação da Constituição, consolidando-se seu sentido negativo. Uma
das principais elaborações, no campo liberal, seria a de Benjamin Constant,
para quem os golpes de Estado não eram simples violações da lei, mas
representavam a destruição de todo o edifício constitucional. O século XIX
teria consolidado a dicotomia entre revolução e golpe de Estado, embora os
conceitos por vezes se confundissem, de modo que “a Revolução ganhou a incômoda
companhia dos golpes de Estado” (p. 205). Assim, Bignotto inclui em sua análise
personagens como Auguste Blanqui, preocupados em elaborar uma cultura da
insurreição, mesmo que, em sua visão, isso se diferenciasse dos golpes de
Estado. O golpe de Luís Napoleão Bonaparte teria cristalizado a associação
entre golpe de Estado e ascensão de um regime autoritário.
O
Capítulo 5 defende a tese de que o século XX adicionou uma última camada de
significado ao conceito de golpe de Estado: a camada da técnica. O autor
central desse capítulo é o italiano Curzio Malaparte, que, fascinado com a
tomada do Estado por insurreições, golpes e revoluções como a Revolução de
Outubro ou a Marcha sobre Roma, teorizou esses movimentos de tomada do poder
como um problema de ordem técnica. O golpe de Estado seria “uma nova forma de
ação na arena pública totalmente baseada no uso racional e controlado das
forças materiais” (p. 297). Embora essa perspectiva reatasse de algum modo com
a análise realista de Maquiavel sobre as conjurações, Bignotto retrata a visão
técnica do século XX como uma versão empobrecida, pois a dimensão da
contingência e da indeterminação é abandonada, e Malaparte teria alimentado a
ilusão de uma ciência exata e precisa a respeito dos golpes de Estado, contrariando
Maquiavel. Essa ilusão estaria presente no tratamento dos golpes de Estado
pelas ciências sociais da segunda metade do século XX, com as quais Bignotto
encerra, em tom crítico, seu percurso sobre as diferentes camadas de
significado acopladas ao conceito ao longo dos séculos.
A
abordagem realista de Bignotto apresenta a contribuição inestimável de trazer à
luz aspectos fundamentais dos golpes de Estado que costumam permanecer
invisíveis nas abordagens puramente morais ou normativas. De especial interesse
é o empreendimento de analisar os golpes em paralelo com seus “vizinhos”, as
conspirações, usurpações, insurreições e revoluções. Enxergando no golpe de
Estado o problema mais geral da conquista e conservação do poder por atores
políticos que pretendem inovar, o autor demonstra de maneira irrefutável que é
inútil erigir, com propósitos puramente morais, um muro conceitual entre o
golpe de Estado e outros momentos da vida política em que o problema da
inovação e da ruptura com a normalidade se coloca.
Entretanto,
essa mesma abordagem realista acaba levantando dúvidas que a leitura do livro
não é suficiente para resolver. A principal se refere à distinção entre
revolução e golpe de Estado. Embora Bignotto alerte logo no início sobre o
perigo de confundir os dois conceitos, o livro tende a insistir mais sobre o
que aproxima do que sobre o que distingue os dois fenômenos. A razão é que, de
um ponto de vista realista, as revoluções – que Bignotto associa, retomando
Hannah Arendt, ao problema da fundação – “também são vistas como atos de
conquista do poder” (p. 45). Ao tratar da Revolução Francesa, o autor analisa
de maneira perspicaz como a luta crua e violenta pelo poder, por procedimentos
que hoje chamamos de golpes de Estado, era recoberta pelo mito da Revolução
como início absoluto. O leitor chega a ser tentado a concluir que a distinção
entre revolução e golpe não pode ser um instrumento conceitual do analista
realista preocupado com a dinâmica da conquista e conservação do poder,
constituindo antes um arsenal retórico na disputa entre os próprios atores
políticos – uma disputa em que os conquistadores reivindicam a revolução, e os
perdedores acusam um golpe de Estado. Embora Bignotto inicie o livro posicionando-se
com a afirmação de que houve golpe de Estado no Brasil em 1964 e 2016, a
leitura da obra coloca em dúvida a possibilidade de um saber positivo que
permita responder objetivamente, e acima das disputas política, se um dado
evento foi um golpe, uma revolução ou outra maneira de conquistar e conservar o
poder por fora das vias ordinárias. É possível responder a essa pergunta
abrindo mão do ponto de vista moral? Permanece a questão acerca dos limites da abordagem
realista, embora ela seja fundamental para iluminar aspectos do golpe de Estado
apagados pela perspectiva normativa.
FELIPE
FRELLER é pesquisador de pós-doutorado no Departamento de Filosofia da
Universidade Federal de São Carlos (UFSCar), com bolsa da FAPESP, e pesquisador
associado ao Centre d’Études Sociologiques et Politiques Raymond Aron da École
des Hautes Études en Sciences Sociales (CESPRA-EHESS).