O
novo livro da professora Scarlett Marton está entre aquelas obras que tocam a
polêmica e, por isso mesmo, tornam-se tão relevantes e pertinentes. Ainda mais
porque ele é escrito desde a maturidade de sua autora, com o vocabulário que
lhe é próprio e os insights que
marcam o seu modo característico de ler um autor como Nietzsche e oferecê-lo,
ainda morno, para outros paladares. Para evitar percalços desnecessários, a
leitura desse tipo de livro pode começar, por exemplo, por um esclarecimento a
respeito do que ele não é. Nietzsche e as
mulheres não se chama Nietzsche e o
feminismo porque é um livro sobre o feminismo, cuja pauta, mais do que
filosoficamente justificável, estende-se em obras que, em quantidade e
qualidade, atestam a legitimidade da temática. Nietzsche e as mulheres não é um livro sobre as críticas do
filósofo alemão ao feminismo e nem sequer é apenas uma espécie de análise da
famosa misoginia do autor de Assim Falou
Zaratustra – do contrário, o título poderia ser Nietzsche contra as mulheres. Não é.
Sem
escamotear esses problemas, o livro em questão é mais do que isso. Trata-se de
uma análise desses problemas mas também, como sugere o subtítulo da obra, dos
tipos femininos que rodearam o filósofo durante sua vida e que vieram a formar
um rico panorama teórico em sua filosofia. As
mulheres, nesse caso, são mulheres
concretas (mãe, irmã, amigas, concubinas etc.) e sentidos abstratos (a verdade,
a vida, a sabedoria, a vida intelectual etc.). Com a destreza que lhe é própria
e amplamente reconhecida por seus leitores e leitoras, a professora Scarlett
aproveita a temática de forma tão fecunda, que passa a lançar luz sobre temas
espinhosos da filosofia nietzschiana, tentando desvendar – como quem resgata dos
escombros – o que poderia ser o pensamento do filósofo alemão, limpando-o da
poeira dos anacronismos rasteiros não necessariamente para “salvá-lo” das
acusações que lhe são comuns (misoginia e machismo, por exemplo), mas para deixar
ver o que o texto, como tal, disse/diz. O resultado é uma leitura transparente
e honesta de uma filosofia que merece ser criticada com os óculos da história
mas que, pelo mesmo motivo da crítica, oferece a chance de ser reconhecida em
seu terreno próprio. Afinal, aquele Nietzsche
do título, que se vê diante das mulheres, é também um pensador cuja
fecundidade e exuberância não podem ser sequestradas pelo importuno de uma
leitura apressada. Scarlett assim, recusa a apologia mas também evita a censura
prévia. O que ela oferece a nós, leitores e leitoras de agora, é a chance de
ouvir o Nietzsche faltando em suas próprias proposições, fomentado por suas
palavras e nu em suas contradições e petulâncias. É a partir disso que o livro
haverá de causar algum efeito sobre os nossos ouvidos: é como se ele, sendo
livro, afinal, permanecesse inconcluso, para aqueles e aquelas que, saídos da
sua leitura, quererão chegar às suas próprias conclusões. Scarlett, de sua
parte, abre as trilhas com seus cortes afiados.
Aliás,
os seis capítulos do livro são mesmo uma espécie de indicação de roteiro para a
intepretação da relação entre Nietzsche e
as mulheres, algo que se dá como pistas ao mesmo tempo teóricas e
biográficas. Então, vejamos:
[1]
Algumas mulheres: emancipadas, mães e
solteironas, começa tratando da questão das diferenças sexuais, passando
pelo debate (espinhoso) sobre a ideia de natureza humana e enfrentando o tema
do corpo, da vida, da fisiopsicologia e da biologia até alcançar a questão do
valor – todos esses terrenos nos quais o assunto do masculino e do feminino
devem ser situados e, mais ainda, que o tema das mulheres encontra guarida. E é
precisamente isso que a professora Scarlett Marton faz: situa as várias mulheres
da vida de Nietzsche no contexto geral de sua filosofia, demonstrando como os
tais “tipos” teóricos podem muito bem ser associados às várias mulheres
concretas que o filósofo encontrou ao longo de sua vida e que incluem sua mãe
Franziska Nietzsche, sua irmã Elisabeth, suas amigas Malwida von Meysenburg e
Lou Salomé, ou mesmo Cosima Wagner, entre outras. Aliás, ao falar em “tipos”,
não deixa de ser importante notar que, com esses nomes e com o tema das
mulheres, estamos diante de uma estratégia curiosa pela qual seria possível
entender a crítica mesma de Nietzsche à subjetividade moderna, tal como a
autora nos mostra ao final desse primeiro capítulo. Ao trazer à tona tantos
nomes, Scarlett o faz sem perder de vista as tensões próprias que eles produzem,
tanto no plano biográfico quanto filosófico e sem deixar de chamar atenção para
as contradições, as idiossincrasias, as preferências e as posições do próprio
Nietzsche. E é isso, afinal, que a autora insiste em mostrar: “no meu entender,
longe de revelar dados biográficos, os textos de Nietzsche expressam antes de
tudo suas posições filosóficas” embora seja preciso reconhecer que “Nietzsche é
um autor pródigo em escrever a respeito da própria vida”, o que exige
“prudência” de seus intérpretes (p. 41). Com posições desse tipo, Scarlett
oferece ao/à leitor/a desde o início, o modo como ela lê e como ela acredita
ser o modo mais correto de ler o texto nietzschiano, fugindo de certo
psicologismo fácil, que não apenas empoeira a filosofia, quanto obnubila o que
ela poderia oferecer de mais interessante. Além disso, é importante notar que
já nesse capítulo temos uma demonstração clara da generosidade da autora e que
se estende como marca da obra como um todo: ela vai não apenas elencando esses
personagens de forma clara e didática, articulando suas presenças com os temas
filosóficos e as influências teóricas e biográficas que elas evocam, mas,
sobretudo, o faz deixando claras as pistas que ela mesma seguiu, na forma das
inúmeras e riquíssimas referências que se encontram ao longo do texto e, em
especial, nas notas de rodapé. O panorama final é uma espécie de inventário
sobre o que se produziu de mais significante e relevante sobre o tema ao longo
dos mais de cento e cinquenta anos da publicação das obras nietzschianas.
[2]
Certas mulheres: esposas e concubinas
começa tematizando como Nietzsche se manifesta, especialmente em Humano, demasiado humano, de 1878, como
um crítico da ideia de Homem (escrito
assim, no masculino e com letra maiúscula, para representar uma entidade dada
de uma vez por todas, um ser sem história, portanto). Depois de situar o
sentido e a estratégia dessa obra, Scarlett oferece uma análise perspicaz de um
dos capítulos mais enigmáticos desse livro de Nietzsche, cujo título é
precisamente A mulher e a criança. O
exercício de análise dos aforismos que formam a obra publicada em homenagem a
Voltaire e sob forte influência de Paul Rée e da leitura dos moralistas
franceses, proporciona uma ótima oportunidade para que se possa reconhecer a
filosofia experimental de Nietzsche, compreendendo o que significam os
conceitos fundamentais desse que é chamado o período intermediário da sua obra,
entre os quais está a ideia de “espírito livre”. Scarlett mostra como a
estratégia de uso da história e das observações psicológicas para compreender a
moralidade se revela em temas como amor, egoísmo, casamento, família,
maternidade, amizade etc. e, além disso, como esses temas se relacionam com o
tratamento ambivalente com o qual o filósofo interpreta o papel das mulheres em
sociedade.
[3]
Diversas mulheres: artistas e atrizes
continua a análise, dando ênfase à obra de 1882, A gaia ciência, na qual Nietzsche trata da questão das mulheres,
especialmente entre os aforismos 57 e 75. Scarlett mostra como o tema das
mulheres se situa na crítica que Nietzsche dirige ao idealismo, ao positivismo
e ao dogmatismo – que querem fazer da mulher, afinal, um conteúdo fixo, negando
que “toda existência é interpretativa” (p. 73). Com uma impressionante riqueza
de detalhes, a autora oferece aos/às leitores/as a oportunidade de experimentar
a sua forma de interpretação e o seu próprio expediente filosófico. Tudo isso
concorre para que seja demonstrado o esforço nietzschiano de recusar o conceito
de “mulher em si” – algo que, afinal, ele achava que o próprio feminismo
reivindicava: ao lançar mão da ideia de tipo, Nietzsche “a ela recorre para
tratar das imagens das mulheres que elas constroem a partir daquelas que os
homens construíram e, ainda, para considerar as imagens dos homens que eles
constroem a partir de certa imagem das mulheres que eles mesmos construíram”
(p. 92). O círculo é vicioso e sua saída não é outra que não o perspectivismo
que se revela, por exemplo, nos tipos femininos evocados. Surge daí a famosa
associação de Nietzsche entre a verdade e as mulheres (de Para além de bem e mal) – tema tão célebre quanto complexo que a
professora Scarlett tem a audácia de analisar com franqueza.
[4]
Outras mulheres: a sabedoria, a vida e a
eternidade tem como alvo principal aquela que talvez seja a obra mais
conhecida de Nietzsche, Assim falou Zaratustra,
que, sendo a mais popular é também a mais maltratada. Scarlett articula os
aforismos desse livro-poema com passagens de outras obras de Nietzsche para
analisar as figuras e os símbolos que remetem ao papel das mulheres no conjunto
do texto, acentuando, por exemplo, como elas servem como articulação da
reflexão filosófica e das vivências próprias do seu autor, fazendo ver como, em
Nietzsche, “teoria e prática não poderiam ser termos excludentes” (p. 115). É
nesse capítulo que Scarlett retoma sua interpretação a respeito daquele que
poderia ser considerado um dos conceitos nietzschianos mais polêmicos – o
eterno retorno. E ela o faz, remetendo o/a leitor/a à simbologia da dança e à
compreensão mais geral da noção de vida. A mulher, afinal, está associada à
eternidade, potencializando o enigma.
[5]
Aquelas mulheres: feministas e dogmáticas
é uma análise de uma série de parágrafos de Para
além de bem e mal, nos quais Nietzsche trata das mulheres que buscam a
emancipação. Scarlett mostra, com destreza, que tal posição deve ser
compreendida (como foi o caso já em A
gaia ciência) no contexto geral de sua crítica à metafísica e ao caráter
dogmático da interpretação do humano. O ganho principal desse capítulo, a meu
ver, está na forma como a professora Scarlett conduz o leitor para a
constatação de que “o caráter experimental de sua investigação
impede que se assuma como doutrinárias as suas
verdades sobre elas ” (p. 141). A frase é hausto de oxigênio,
porque remete ao cerne do problema: se Nietzsche questiona a ideia de uma
verdade em si mesma (na forma, por exemplo, de uma “mulher em si”), própria do
dogmatismo e dos esforços de padronização e massificação da cultura moderna,
ele não poderia exigir que as suas próprias verdades fossem consideradas
inquestionáveis. E isso, quando se trata de um tema tão polêmico como o tema
das mulheres, não é pouca coisa: o que resulta daí é a clareza radical do
espírito antidogmático que embala toda a filosofia nietzschiana. Aqui temos,
além disso, mais uma prova de como o tema das mulheres é uma espécie de
subterfúgio para chegarmos a algumas das questões mais espinhosas dessa
filosofia que se definiu como “escola da suspeita”. É nesse ponto que Scarlett
deixa clara a sua posição: “Não hesito”, escreve ela, “em afirmar que, quando
se trata da emancipação feminina, Nietzsche não se mostra de modo algum
ambivalente” (p. 163), ao contrário, ele é um grande crítico desse processo.
[6]
Raras mulheres: escritoras e intelectuais
é uma perspicaz análise do modo como Nietzsche associa o movimento de
emancipação feminino às “ideias modernas” amplamente criticadas por ele ao
longo de sua obra, a exemplo do que se lê em O caso Wagner, obra na qual aparece um conceito central para a
interpretação desse processo, a ideia de décadence
– escrita em francês porque trazida
de Paul Bourget e reinterpretada por meio de uma aproximação com a
fisiopsicologia, para demonstrar que a ideia de igualdade é mais um produto do
processo de adoecimento da cultura, uma expressão da décadence, portanto. Igualar mulheres e homens seria, para o
filósofo, render-se às teses dos “corruptores da mulher” que incentivavam as
mulheres a imitar os homens (p. 177). A crítica às mulheres escritoras e
intelectuais situa-se, portanto, nesse contexto. Demonstrando tal coisa, mais
uma vez, Scarlett não hesita em situar a si mesma no debate afirmando que
“quando se trata das mulheres que escrevem livros e intervêm em domínios
outrora reservados unicamente aos homens, estou em condições de afirmar que ele
não hesita em aderir à prática da exclusão tão característica da filosofia dos
tempos modernos” (p. 194).
Com
frases como essa que acabo de citar, a autora de Nietzsche e as mulheres: figuras, imagens e tipos femininos – sendo
ela mesma mulher, uma das intérpretes mais reconhecidas da obra nietzschiana,
uma cidadã de tempos sombrios que são os nossos, nos quais o preconceito, a
discriminação e o feminicídio são moeda corrente, incentivadas por autoridades
máximas da nação – não deixa de se situar teórica e metodologicamente, evitando
tanto “uma leitura literal e anacrônica” dos textos nietzschianos quanto uma
interpretação apologética que pretendesse (certamente em vão) salvar Nietzsche
das importantes críticas que lhe são dirigidas nesses assuntos. A conclusão do
livro é, para o/a leitor/a atento, uma espécie de pá de cal sobre qualquer
discussão que não leve o tema até o terreno da seriedade necessária: a chamada
“leitura imanente” dos textos é a saída da encruzilhada que, do contrário,
exigiria uma leitura sociológica ou psicológica desses textos. Como “mulher que
escreve livros”, Scarlett desafia Nietzsche, entrando no ringue que ele mesmo
montou. Ela não espera nenhuma indulgência. O livro, nesse caso, é um campo de
disputa e cada palavra dá forma ao esforço da autora em manter a tensão – ela
sabe, afinal, o que isso significa: é na tensão que mora o equilíbrio.
JELSON
OLIVEIRA é professor e coordenador do programa de pós-graduação em filosofia na
PUC-PR