Logotipo do Jornal de Resenhas
Jelson Oliveira - 123 - Fevereiro de 2023
Um tema espinhoso da filosofia nietzschiana
Nem leitura literal anacrônica nem interpretação apologética
Foto da capa do livro Nietzsche e as mulheres
Nietzsche e as mulheres
Autor: Scarlett Marton
Editora: Autêntica - 224 páginas
Foto do(a) autor(a) Jelson Oliveira

O novo livro da professora Scarlett Marton está entre aquelas obras que tocam a polêmica e, por isso mesmo, tornam-se tão relevantes e pertinentes. Ainda mais porque ele é escrito desde a maturidade de sua autora, com o vocabulário que lhe é próprio e os insights que marcam o seu modo característico de ler um autor como Nietzsche e oferecê-lo, ainda morno, para outros paladares. Para evitar percalços desnecessários, a leitura desse tipo de livro pode começar, por exemplo, por um esclarecimento a respeito do que ele não é. Nietzsche e as mulheres não se chama Nietzsche e o feminismo porque é um livro sobre o feminismo, cuja pauta, mais do que filosoficamente justificável, estende-se em obras que, em quantidade e qualidade, atestam a legitimidade da temática. Nietzsche e as mulheres não é um livro sobre as críticas do filósofo alemão ao feminismo e nem sequer é apenas uma espécie de análise da famosa misoginia do autor de Assim Falou Zaratustra – do contrário, o título poderia ser Nietzsche contra as mulheres. Não é.

Sem escamotear esses problemas, o livro em questão é mais do que isso. Trata-se de uma análise desses problemas mas também, como sugere o subtítulo da obra, dos tipos femininos que rodearam o filósofo durante sua vida e que vieram a formar um rico panorama teórico em sua filosofia. As mulheres, nesse caso, são mulheres concretas (mãe, irmã, amigas, concubinas etc.) e sentidos abstratos (a verdade, a vida, a sabedoria, a vida intelectual etc.). Com a destreza que lhe é própria e amplamente reconhecida por seus leitores e leitoras, a professora Scarlett aproveita a temática de forma tão fecunda, que passa a lançar luz sobre temas espinhosos da filosofia nietzschiana, tentando desvendar – como quem resgata dos escombros – o que poderia ser o pensamento do filósofo alemão, limpando-o da poeira dos anacronismos rasteiros não necessariamente para “salvá-lo” das acusações que lhe são comuns (misoginia e machismo, por exemplo), mas para deixar ver o que o texto, como tal, disse/diz. O resultado é uma leitura transparente e honesta de uma filosofia que merece ser criticada com os óculos da história mas que, pelo mesmo motivo da crítica, oferece a chance de ser reconhecida em seu terreno próprio. Afinal, aquele Nietzsche do título, que se vê diante das mulheres, é também um pensador cuja fecundidade e exuberância não podem ser sequestradas pelo importuno de uma leitura apressada. Scarlett assim, recusa a apologia mas também evita a censura prévia. O que ela oferece a nós, leitores e leitoras de agora, é a chance de ouvir o Nietzsche faltando em suas próprias proposições, fomentado por suas palavras e nu em suas contradições e petulâncias. É a partir disso que o livro haverá de causar algum efeito sobre os nossos ouvidos: é como se ele, sendo livro, afinal, permanecesse inconcluso, para aqueles e aquelas que, saídos da sua leitura, quererão chegar às suas próprias conclusões. Scarlett, de sua parte, abre as trilhas com seus cortes afiados. 

Aliás, os seis capítulos do livro são mesmo uma espécie de indicação de roteiro para a intepretação da relação entre Nietzsche e as mulheres, algo que se dá como pistas ao mesmo tempo teóricas e biográficas. Então, vejamos:

[1] Algumas mulheres: emancipadas, mães e solteironas, começa tratando da questão das diferenças sexuais, passando pelo debate (espinhoso) sobre a ideia de natureza humana e enfrentando o tema do corpo, da vida, da fisiopsicologia e da biologia até alcançar a questão do valor – todos esses terrenos nos quais o assunto do masculino e do feminino devem ser situados e, mais ainda, que o tema das mulheres encontra guarida. E é precisamente isso que a professora Scarlett Marton faz: situa as várias mulheres da vida de Nietzsche no contexto geral de sua filosofia, demonstrando como os tais “tipos” teóricos podem muito bem ser associados às várias mulheres concretas que o filósofo encontrou ao longo de sua vida e que incluem sua mãe Franziska Nietzsche, sua irmã Elisabeth, suas amigas Malwida von Meysenburg e Lou Salomé, ou mesmo Cosima Wagner, entre outras. Aliás, ao falar em “tipos”, não deixa de ser importante notar que, com esses nomes e com o tema das mulheres, estamos diante de uma estratégia curiosa pela qual seria possível entender a crítica mesma de Nietzsche à subjetividade moderna, tal como a autora nos mostra ao final desse primeiro capítulo. Ao trazer à tona tantos nomes, Scarlett o faz sem perder de vista as tensões próprias que eles produzem, tanto no plano biográfico quanto filosófico e sem deixar de chamar atenção para as contradições, as idiossincrasias, as preferências e as posições do próprio Nietzsche. E é isso, afinal, que a autora insiste em mostrar: “no meu entender, longe de revelar dados biográficos, os textos de Nietzsche expressam antes de tudo suas posições filosóficas” embora seja preciso reconhecer que “Nietzsche é um autor pródigo em escrever a respeito da própria vida”, o que exige “prudência” de seus intérpretes (p. 41). Com posições desse tipo, Scarlett oferece ao/à leitor/a desde o início, o modo como ela lê e como ela acredita ser o modo mais correto de ler o texto nietzschiano, fugindo de certo psicologismo fácil, que não apenas empoeira a filosofia, quanto obnubila o que ela poderia oferecer de mais interessante. Além disso, é importante notar que já nesse capítulo temos uma demonstração clara da generosidade da autora e que se estende como marca da obra como um todo: ela vai não apenas elencando esses personagens de forma clara e didática, articulando suas presenças com os temas filosóficos e as influências teóricas e biográficas que elas evocam, mas, sobretudo, o faz deixando claras as pistas que ela mesma seguiu, na forma das inúmeras e riquíssimas referências que se encontram ao longo do texto e, em especial, nas notas de rodapé. O panorama final é uma espécie de inventário sobre o que se produziu de mais significante e relevante sobre o tema ao longo dos mais de cento e cinquenta anos da publicação das obras nietzschianas.

[2] Certas mulheres: esposas e concubinas começa tematizando como Nietzsche se manifesta, especialmente em Humano, demasiado humano, de 1878, como um crítico da ideia de Homem (escrito assim, no masculino e com letra maiúscula, para representar uma entidade dada de uma vez por todas, um ser sem história, portanto). Depois de situar o sentido e a estratégia dessa obra, Scarlett oferece uma análise perspicaz de um dos capítulos mais enigmáticos desse livro de Nietzsche, cujo título é precisamente A mulher e a criança. O exercício de análise dos aforismos que formam a obra publicada em homenagem a Voltaire e sob forte influência de Paul Rée e da leitura dos moralistas franceses, proporciona uma ótima oportunidade para que se possa reconhecer a filosofia experimental de Nietzsche, compreendendo o que significam os conceitos fundamentais desse que é chamado o período intermediário da sua obra, entre os quais está a ideia de “espírito livre”. Scarlett mostra como a estratégia de uso da história e das observações psicológicas para compreender a moralidade se revela em temas como amor, egoísmo, casamento, família, maternidade, amizade etc. e, além disso, como esses temas se relacionam com o tratamento ambivalente com o qual o filósofo interpreta o papel das mulheres em sociedade.

[3] Diversas mulheres: artistas e atrizes continua a análise, dando ênfase à obra de 1882, A gaia ciência, na qual Nietzsche trata da questão das mulheres, especialmente entre os aforismos 57 e 75. Scarlett mostra como o tema das mulheres se situa na crítica que Nietzsche dirige ao idealismo, ao positivismo e ao dogmatismo – que querem fazer da mulher, afinal, um conteúdo fixo, negando que “toda existência é interpretativa” (p. 73). Com uma impressionante riqueza de detalhes, a autora oferece aos/às leitores/as a oportunidade de experimentar a sua forma de interpretação e o seu próprio expediente filosófico. Tudo isso concorre para que seja demonstrado o esforço nietzschiano de recusar o conceito de “mulher em si” – algo que, afinal, ele achava que o próprio feminismo reivindicava: ao lançar mão da ideia de tipo, Nietzsche “a ela recorre para tratar das imagens das mulheres que elas constroem a partir daquelas que os homens construíram e, ainda, para considerar as imagens dos homens que eles constroem a partir de certa imagem das mulheres que eles mesmos construíram” (p. 92). O círculo é vicioso e sua saída não é outra que não o perspectivismo que se revela, por exemplo, nos tipos femininos evocados. Surge daí a famosa associação de Nietzsche entre a verdade e as mulheres (de Para além de bem e mal) – tema tão célebre quanto complexo que a professora Scarlett tem a audácia de analisar com franqueza.

[4] Outras mulheres: a sabedoria, a vida e a eternidade tem como alvo principal aquela que talvez seja a obra mais conhecida de Nietzsche, Assim falou Zaratustra, que, sendo a mais popular é também a mais maltratada. Scarlett articula os aforismos desse livro-poema com passagens de outras obras de Nietzsche para analisar as figuras e os símbolos que remetem ao papel das mulheres no conjunto do texto, acentuando, por exemplo, como elas servem como articulação da reflexão filosófica e das vivências próprias do seu autor, fazendo ver como, em Nietzsche, “teoria e prática não poderiam ser termos excludentes” (p. 115). É nesse capítulo que Scarlett retoma sua interpretação a respeito daquele que poderia ser considerado um dos conceitos nietzschianos mais polêmicos – o eterno retorno. E ela o faz, remetendo o/a leitor/a à simbologia da dança e à compreensão mais geral da noção de vida. A mulher, afinal, está associada à eternidade, potencializando o enigma.

[5] Aquelas mulheres: feministas e dogmáticas é uma análise de uma série de parágrafos de Para além de bem e mal, nos quais Nietzsche trata das mulheres que buscam a emancipação. Scarlett mostra, com destreza, que tal posição deve ser compreendida (como foi o caso já em A gaia ciência) no contexto geral de sua crítica à metafísica e ao caráter dogmático da interpretação do humano. O ganho principal desse capítulo, a meu ver, está na forma como a professora Scarlett conduz o leitor para a constatação de que “o caráter experimental de sua investigação impede que se assuma como doutrinárias as suas verdades sobre elas ” (p. 141). A frase é hausto de oxigênio, porque remete ao cerne do problema: se Nietzsche questiona a ideia de uma verdade em si mesma (na forma, por exemplo, de uma “mulher em si”), própria do dogmatismo e dos esforços de padronização e massificação da cultura moderna, ele não poderia exigir que as suas próprias verdades fossem consideradas inquestionáveis. E isso, quando se trata de um tema tão polêmico como o tema das mulheres, não é pouca coisa: o que resulta daí é a clareza radical do espírito antidogmático que embala toda a filosofia nietzschiana. Aqui temos, além disso, mais uma prova de como o tema das mulheres é uma espécie de subterfúgio para chegarmos a algumas das questões mais espinhosas dessa filosofia que se definiu como “escola da suspeita”. É nesse ponto que Scarlett deixa clara a sua posição: “Não hesito”, escreve ela, “em afirmar que, quando se trata da emancipação feminina, Nietzsche não se mostra de modo algum ambivalente” (p. 163), ao contrário, ele é um grande crítico desse processo.

[6] Raras mulheres: escritoras e intelectuais é uma perspicaz análise do modo como Nietzsche associa o movimento de emancipação feminino às “ideias modernas” amplamente criticadas por ele ao longo de sua obra, a exemplo do que se lê em O caso Wagner, obra na qual aparece um conceito central para a interpretação desse processo, a ideia de décadence – escrita em francês porque trazida de Paul Bourget e reinterpretada por meio de uma aproximação com a fisiopsicologia, para demonstrar que a ideia de igualdade é mais um produto do processo de adoecimento da cultura, uma expressão da décadence, portanto. Igualar mulheres e homens seria, para o filósofo, render-se às teses dos “corruptores da mulher” que incentivavam as mulheres a imitar os homens (p. 177). A crítica às mulheres escritoras e intelectuais situa-se, portanto, nesse contexto. Demonstrando tal coisa, mais uma vez, Scarlett não hesita em situar a si mesma no debate afirmando que “quando se trata das mulheres que escrevem livros e intervêm em domínios outrora reservados unicamente aos homens, estou em condições de afirmar que ele não hesita em aderir à prática da exclusão tão característica da filosofia dos tempos modernos” (p. 194).

Com frases como essa que acabo de citar, a autora de Nietzsche e as mulheres: figuras, imagens e tipos femininos – sendo ela mesma mulher, uma das intérpretes mais reconhecidas da obra nietzschiana, uma cidadã de tempos sombrios que são os nossos, nos quais o preconceito, a discriminação e o feminicídio são moeda corrente, incentivadas por autoridades máximas da nação – não deixa de se situar teórica e metodologicamente, evitando tanto “uma leitura literal e anacrônica” dos textos nietzschianos quanto uma interpretação apologética que pretendesse (certamente em vão) salvar Nietzsche das importantes críticas que lhe são dirigidas nesses assuntos. A conclusão do livro é, para o/a leitor/a atento, uma espécie de pá de cal sobre qualquer discussão que não leve o tema até o terreno da seriedade necessária: a chamada “leitura imanente” dos textos é a saída da encruzilhada que, do contrário, exigiria uma leitura sociológica ou psicológica desses textos. Como “mulher que escreve livros”, Scarlett desafia Nietzsche, entrando no ringue que ele mesmo montou. Ela não espera nenhuma indulgência. O livro, nesse caso, é um campo de disputa e cada palavra dá forma ao esforço da autora em manter a tensão – ela sabe, afinal, o que isso significa: é na tensão que mora o equilíbrio.

 

 

JELSON OLIVEIRA é professor e coordenador do programa de pós-graduação em filosofia na PUC-PR


Jelson Oliveira
Top