D’Alembert foi certamente um dos maiores exemplos daquele ideal, próprio da Ilustração, de juntar, numa única figura, o sábio, o filósofo, o homem de letras (só me ocorre outro caso assim acabado, em dosagem diferente: o de Goethe). Considerado um dos mais iminentes matemáticos do século XVIII, D’Alembert foi ainda autor de vários textos fundamentais para a compreensão das Luzes , (o mais célebre é o Discurso Preliminar da "Enciclopédia", da qual ele foi um dos diretores). Além disso, embora não se possa dizer que sua prosa seja lépida ou vertiginosa como a de Voltaire, generosa e eloquente como a de Rousseau, ou ágil e cheia de verve como a de Diderot, os livros que escreveu possuem inegável mérito literário, de resto já reconhecido pelos seus próprios contemporâneos.
Ao percorrer o Ensaio sobre os Elementos de Filosofia - recentemente publicado pela Editora da Unicamp, numa tradução que infelizmente não é boa - o leitor brasileiro poderá tirar proveito de todas estas múltiplas facetas. D’Alembert, o sábio, será logo identificado na facilidade do Ensaio para manejar os exemplos tomados à geometria (como poderia sê-lo nas capítulos sobre hidrostática e hidráulica, eliminados desta edição devido ao seu caráter demasiadamente técnico); o homem de letras transparece na escrita que corre solta e enxuta, e cujas maiores qualidades são a clareza e a discrição; e afinal, o filósofo - filósofo ilustrado - se revela sobretudo na maestria para reduzir a Filosofia aos seus elementos e colocá-los ao alcance de qualquer um ("O mérito de fazer noções verdadeiras e simples penetrar com facilidade nos espíritos é bem maior do que se pensa, pois a experiência nos prova o quanto é raro.")
O Ensaio apareceu pela primeira vez em 1759, no quarto volume dos Mélanges de littérature, d’histoire et de philosophie (não custa lembrar que, nesse ano, fora cassado o privilégio de impressão da "Enciclopédia" e que D’Alembert, menos afeito que Diderot à dureza da militância cultural, se afastara do empreendimento em 1758). Penso que os "elementos" do título podem ser lidos de duas maneiras ligeiramente diferentes e, como se verá, tanto uma quanto outra esclarecem a intenção e o espírito geral da obra.
Em primeiro lugar, elementos podem ser noções rudimentares, que proporcionam, segundo o autor, uma "exposição sumária" dos princípios e objetos de nossos conhecimentos. Tal característica aproxima o Ensaio e o Discurso Preliminar, mas, ao mesmo tempo, permite distinguir os dois textos. O Discurso, como se sabe, se divide em duas partes: na primeira, D’Alembert descreve os diferentes ramos do saber, conforme um esquema emprestado a Bacon; na segunda, traça uma espécie de história intelectual da Europa, que começa no início do Renascimento e vem até o século XVIII. O Ensaio reproduz este plano, invertendo-o: abre-se com um quadro da mesma história, extremamente sumário, mas que permite a caracterização do presente como o "Século da Filosofia", no qual "tudo foi discutido, analisado ou pelo menos agitado"; em seguida, passa ao seu propósito principal, "de fixar e recolher os princípios de nossos conhecimentos certos, de apresentar sob um mesmo ponto de vista as verdades fundamentais, de reduzir os objetos de cada ciência particular para percorrê-los mais à vontade, em pontos principais e muito distintos". Se o Discurso se debruça mais no quadro histórico, o Ensaio privilegia o momento epistemológico. Conforme o próprio D’Alembert, no texto da "Enciclopédia" só tinha sido possível lançar "uma olhadela rápida e geral" à cadeia do conhecimento; agora, trata-se de observar aquela "distância justa" que permite considerar a árvore do saber sem sacrificar os galhos pelo tronco e vice-versa.
Por outro lado, a segunda acepção do termo elementos - que também pode ser tomado como partes de um todo - permite compreender a concepção de saber com a qual lidam D’Alembert e os enciclopedistas. A natureza, diz o Ensaio, é um grande enigma para nós, uma enorme cadeia da qual nosso espírito é incapaz de apreender todos os anéis. Consequentemente, é apenas por força de "tentativas" e "desvios" que conseguimos apreender a cadeia das verdades ou, se recorrermos à metáfora preferida dos enciclopedistas, "que podemos agarrar seus galhos - alguns (...) unidos entre si, formando diferentes ramagens que terminam num mesmo ponto; outros, isolados e como que flutuando, e que representam as verdades que não se ligam a nenhum deles". Fosse de outro modo, continua D’Alembert, caso as verdades se exibissem sem nenhuma interrupção, tudo se reduziria a uma verdade única, da qual as outras seriam apenas diferentes traduções e, como consequência, não haveria elementos a descrever. Reconhecemos aqui o racionalismo cético das Luzes, que procura se preservar do dogmatismo e do ceticismo mediante a conjugação de dois princípios opostos e complementares: objetividade e relatividade. O primeiro expressa a convicção de que nossas idéias estão assentadas nas próprias coisas, cujo encadeamento obedece uma unidade rigorosa; o segundo pressupõe o reconhecimento de que a cadeia se furta à finitude de nosso espírito, dando-se a ler de modo descontínuo e fragmentário.
O mais importante corolário desta concepção de saber é a sua definição de princípio. De fato, conforme o Ensaio, toda ciência possui dois tipos de verdade: as que se encontram no ponto da cadeia em que muitos galhos se reúnem, quer dizer, as que são resultado de muitas outras verdades; e as que constituem o início de cada parte da cadeia, ou seja, os verdadeiros princípios. Estes últimos não são axiomas, verdades primeiras a partir das quais as demais podem ser deduzidas, segundo o modelo de conhecimento próprio do século XVII. D’Alembert assim os define: "Fatos simples e reconhecidos, que não pressupõem nenhum outro e que, consequentemente, não se podem nem explicar, nem contestar. Em Física, os fenômenos cotidianos que a observação desvenda a todos os olhos; em Geometria, as propriedades sensíveis da extensão; em Mecânica, a impenetrabilidade dos corpos, origem de sua ação mútua; em Metafísica, o resultado de nossas sensações; em Moral, as primeiras afecções, comuns a todos os homens." E conclui, fazendo mira em seu principal adversário, a metafísica tradicional: "A Filosofia não está destinada a perder-se nas propriedades gerais do ser e da substância, em perguntas inúteis sobre noções abstratas, em divisões arbitrárias e nomenclaturas eternas: ela é a ciência dos fatos ou a das quimeras."
A esta definição geral, segue-se a descrição dos vários ramos da Filosofia. Em primeiro lugar, a Lógica, "seu frontispício e sua entrada"; em seguida, a Metafísica, cujo principal objeto é "a geração de nossas idéias", mas que também se ocupa da operação por meio da qual o espírito passa das sensações aos objetos exteriores e ainda das provas da existência de Deus (a exemplo do deísta Voltaire, aqui D’Alembert pretende acertar na fração ateísta das Luzes); e afinal, a Moral, estudo daquilo que devemos aos nossos semelhantes. A estas objetos o Ensaio acrescenta ainda outros dois: os fatos históricos e os princípios do gosto.
Seguindo o procedimento de um célebre editor de D’Alembert, a Editora da Unicamp publica, entremeados ao Ensaio, os Esclarecimentos sobre Diferentes Pontos nos Elementos de Filosofia, escritos alguns anos depois, em resposta às observações de Frederico II. Essas páginas, que retomam e examinam melhor o texto principal, permitirão que o leitor entreveja as marcas de outro ideal da Ilustração, que às vezes deu os melhores resultados: o diálogo esclarecido entre o filósofo e o rei.