Eliane Brum, nascida em 1966, em
Ijuí, é jornalista consagrada, formada pela Pontifícia Universidade Católica do
Rio Grande do Sul (PUC/RS) e atuou como repórter no jornal Zero Hora em Porto
Alegre. É autora com diversas premiações, dentre as quais A vida que ninguém
vê, que ganhou Jabuti de reportagem em 2007.
Ouse.
Olhe. É assim que a obra A vida que ninguém vê se encerra. Eliane Brum
nos diz em seu texto ‘’Gosto de olhar, mas não de falar. Gosto de ser
invisível’’. É com um olhar, uma percepção apetecida pelo que se diz diferente,
por aquilo que não recebe um palco nem um holofote, pelo que não vira manchete
dentro dos jornais e veículos midiáticos, que Brum olha para uma dor que é surda,
silenciosa, turva, inefável, para aqueles que experienciam a dor da
invisibilidade social. Por através de 21 reportagens, Brum nos apresenta essa
dor, nos direciona os olhares para pessoas que encontramos no nosso cotidiano, cheios
de tautologia, corriqueiramente, em semáforos, em ruas, praças, avenidas, filas
de banco, mas que negligenciamos. 21 reportagens, ou 21 vidas, A vida que
ninguém vê nos apresenta em um diálogo rápido, mas não sem complexidade,
essas pessoas que são imperceptíveis à nossa visão, ou até mesmo aquelas a quem
já negligenciamos um olhar atento, quantos vidros da janela do carro já
levantamos para Camilas no semáforo vermelho? Três ou dois? Ou então, quantas
vezes já saltamos por cima de Alverindos (Sapo) sem sequer olhar para baixo?
Duas ou três? E quantas vidas se perdem pela omissão todos os anos? A esses
números não temos acesso. É com esse estigma quase naturalizado, vício
descontente intrínseco que adquirimos, que Eliane Brum, com suas reportagens, dá
um olhar de volta para esses olhares cheios de gana, mas em situação de
invisibilidade social.
Apesar
de contar com uma escrita de fácil acesso, ou seja, não é necessário de fato,
nenhuma bagagem acadêmica para a compreensão do texto, A vida que ninguém vê
faz outras exigências de seus leitores. Em cada retrato, cada narrativa, há um
enorme e inquietante ofício de empatia pelo olhar do outro. É decerto necessária
a capacidade de inspirar a dor do outro. E, uma vez feito, a leitura se torna densa,
complexa, causa desassossego, amargura, revolta, indigestão e muitas vezes ‘Weltschmerz’
(dor de mundo), que seria a dor que sentimos após tomarmos a consciência
profunda do mal e do sofrimento. A cada reportagem e a cada vida que
acompanhamos, isso se torna mais inevitável. Há dicotomia dentro dos textos,
metade se lê, metade se sente. Cruzamos com a miséria extrema por diversas
vezes dentro das reportagens. Símbolo disso é a reportagem que toma para si o
nome de “Enterro de pobre”, que conta a história de Antônio, de vida
financeiramente pobre, cheia de abdicações e lutas, que se torna uma vida sem
lugar, a ponto de “não ter lugar para morrer”(p. 37). Antonio percebe que esse
é o destino de pobre, dele, dos seus filhos e seus netos. A narrativa continua
num ciclo de pobreza e impossibilidade tão simbólico quanto “Vida Maria” ou em “O
menino do alto”, história de um menino que enfrentou todos os dias o mesmo teto
após ter suas pernas assassinadas por ter nascido do lado errado da cidade.
Brum,
em dado momento, faz um retrato de um certo conde, Manoel Marques de Souza “O
conde decaído”, que ficou um tempo entre Duque de Caxias e Riachuelo, e mais a
frente se estabeleceu em algum canto em Porto Alegre. Trata-se de uma estátua
de mármore de um homem que algum dia já teve inúmeras ambições. Brum julga-a
como esquecida, como um mármore esculpido que ninguém mais vê. Entretanto, decerto
a estátua de mármore deve ter recebido mais olhares abstraídos do que qualquer
personagem presente dentro das reportagens; mas cada personagem tem certamente
mais ambição que qualquer estátua em Porto Alegre. Em A vida que ninguém vê,
no meio de toda miséria, testemunhamos ali muita sede, sede de realização, fome
do querer. Personagens que mostrariam a fome e escreveriam o pão. Como a gana
incomensurável de Dona Maria de ler o mundo, de se alfabetizar, ato que para
quem dispõe de exequibilidades pode parecer tão banal quanto a própria
respiração, mas para Dona Maria é mais do que suficiente para deixar tudo para
trás e ir em busca de uma realização. Adail que quer voar, e voou. Frida que
desejava um certo vereador. As vontades são diversas, todas encontradas em
entrelinhas e na marginália; vontades que partem da desimportância e da simplicidade
que imaginamos da sua realização, mas que são porta voz para uma empatia com
cada reportagem dentro do livro, e até da pretensão de Brum com seu livro.
Brum,
além de nos fazer olhar para cima, baixo, esquerda e direita, pontua no fim de
seu livro sobre algumas prospecções do novo jornalismo, um jornalismo mais
digital que não suja os sapatos, isto é, não vai pra rua, não tem contato entre
o entrevistador e o entrevistado, um jornalismo que vai para a rua com o
objetivo de preencher uma planilha pronta, talvez, por exemplo: “o que, quem,
quando, onde, como, por quê”. Eliane Brum tem a pretensão de que seu livro seja
lido dentro das faculdades para a quebra desse paradigma, de um jornalismo
instantâneo, automatizado. Após a leitura de A vida que ninguém vê fica
inegável a importância de sujar os sapatos para uma percepção do outro.
Entretanto, é uma leitura que transcende sua importância, não se limita para
somente o expediente, para o meio acadêmico, para as redações, mas também aponta
para a necessidade de se manifestar na vida, no nosso cotidiano. Já dirige o
olhar não somente para si, mas muito para o outro, não somente como um
profissional em campo, mas como uma outra história, um mundo particular
costurado por traumas e estigmas. É uma leitura de carga teórica nula, mas de
carga emocional ostensiva. Num primeiro momento, após a compreensão do seu arcabouço
principal, isto é, os indivíduos em situação de invisibilidade social, o livro
gerou incômodo. Porém, em seguida, provocou reflexão, revisão de atos e
movimentos próprios e foi fundamental para virar o pescoço e olhar para o
redor. Por fim, para a corroboração do que acabamos de expor, é basilar a
menção ao “Museu da Pessoa”, que é um projeto que abriga em seu acervo
histórias de vidas, que não viram manchetes, histórias que partem de todas as
etnias, credos e idades.
FELIPE
RAYANN BRAGA SOUZA é estudante de jornalismo da Universidade Federal de Ouro
Preto