Peço licença
para iniciar esta resenha com dois relatos. O primeira refere-se à pesquisa
realizada na Universidade Federal de Minas Gerais juntamente com a professora
Juliana Neuenshwander Magalhães sobre os paradoxos dos discursos universalistas
dos direitos humanos, especialmente em face das diversas identidades culturais.
Entre 2003 e 2006, pesquisamos os fundamentos filosóficos dos direitos humanos
e como eles poderiam se operacionalizar em um mundo globalizado e plural.
Destaco que foi exatamente em 2003 que George W. Bush, então presidente dos Estados Unidos, proferiu um famoso discurso em que proclamou a invasão americana no Iraque, argumentando que se tratava de uma guerra contra os inimigos da humanidade. Enunciava-se, internacionalmente, a existência de um lado humano e um lado não humano em relação ao qual cabia a violência e a barbárie, o que tornava evidente o paradoxo do discurso universalistas dos direitos humanos. Pois ele profere uma inclusão generalizada dos homens como sujeito portadores de direitos a serem protegidos, mas, simultaneamente a esta inclusão, promove uma exclusão generalizada contra aqueles com os quais cabe lutar e ferir para a manutenção e defesa do lado humano.
Nossa pesquisa, buscou compreender esse paradoxo e “levar a sério” os direitos humanos, compreendo-os como uma aquisição semântica moderna que tem como alicerce a distinção humano/bárbaro. Ou seja, direitos humanos incluem universalmente, mas também excluem.
Em 2021, retorno ao debate acadêmico no Programa de Pós-Graduação em Direitos Humanos da Universidade Federal de Goiás a fim de pensar a teoria dos direitos humanos a partir de um recorte de gênero. Após seis meses de longos debates em sala, em reflexões coletivas com as alunas, chegamos aos impasses e paradoxos dos discursos universalistas dos direitos humanos em face das singularidades do(s) feminino(s). Nós compreendemos a importância das universalidades e de como elas nos servem como sujeito de direito, mas também apontamos impasses em relação ao universal que não reconhece ou não cria condições de possibilidades para o respeito às particularidades.
Esses pequenos e breves relatos de investigações acadêmicas, realizadas em períodos diferente, são importantes para demarcar que na prática e na teoria dos direitos humanos debates que parecem estar “resolvidos”, fazem-se pulsantes e necessários. As controvérsias entre os discursos do universal e do particular inserem-se nesses debates e, por isso, a obra Situando o Self: gênero, comunidade e pós-modernismo na ética contemporânea, de Seyla Benhabib, publicada originalmente há quase trinta anos é ainda hoje uma leitura exemplar para a compreensão da experiência política do nosso tempo.
Em novembro de 2021, tivemos a primeira publicação desta obra em português, pela Editora Universidade de Brasília, numa excelente tradução de Ana Claudia Lopes e Renata Romolo Brito, com revisão técnica de Yara Frateschi, o que, felizmente, nos permite ampliar a recepção de Seyla Benhabib nos nossos debates filosóficos, jurídicos e políticos. Percebo esta publicação como uma oportunidade de, no Brasil, enfrentarmos com profundidade os estudos sobre os universalismos e sobre a importância de se reconhecerem as particularidades.
Seyla Benhabib é uma filósofa turca, professora das cátedras de Ciência Política e Filosofia Política da Universidade de Yale e é, atualmente, uma autora contemporânea fundamental para pensarmos os debates de gênero. Situando o Self: gênero, comunidade e pós-modernismo na ética contemporânea é uma de suas obras centrais, sendo composta por ensaios cujo objetivo é, diante das transformações percorridas no século XX, reconstruir legados modernos como o do universalismo moral e político a partir da seguinte pergunta: “o que está vivo e o que está morto nas teorias universalistas morais e políticas do presente após as críticas que lhe foram dirigidas por comunitaristas, feministas e pós-modernos?” (BENHABIB, 2021, p. 30). Benhabib busca reconstruir a tradição universalista, enfrentando as críticas e aprendendo com as considerações realizadas por estas três frentes e, nesse processo, ela apresenta um novo pensar que propõe “situar a razão e self moral de maneira mais decisiva nos contextos de gênero e de comunidade, ao mesmo tempo em que insisto no poder discursivo para contestar essa situacionalidade em nome de princípios universalistas” (BENHABIB, 2021, p. 30). Nesta obra, há desconstruções e reconstruções.
O livro divide-se em duas partes. Na primeira, Benhabib realiza um debate sobre a ética contemporânea, apoiando-se numa leitura crítica da ética do discurso ou comunicativa de Jürgen Habermas. Ela quer realizar um deslocamento de uma ética filosófica fundada numa racionalidade legisladora para a racionalidade interativa. Nesse percurso, ela se aproxima da tese do pensamento alargado de Hannah Arendt, propondo uma reformulação procedimental do princípio da universalização em que seja possível experenciar um modelo de espaço público que considere diversas perspectivas e onde haja sensibilidade para ouvir suas vozes. É preciso ver e escutar efetivamente o outro.
Na segunda parte da obra, a filósofa enfoca no debate de gênero, fortalecendo a tese de que é preciso conjugar o universalismo interativo com a percepção de que há um outro generalizado e um outro concreto. Trata-se de duas perspectivas de relações que devem delimitar tanto o âmbito moral quanto político. Ver outro generalizado é observar cada indivíduo como ser racional com direitos e deveres iguais. O ponto de vista do outro concreto exige observar cada “ser racional como um indivíduo com uma história concreta, identidade e constituição emocional-afetiva” (BENHABIB, 2021, p. 328). Ela propõe a construção de um modelo radical de democracia em que os procedimentos de universalização assumam o ponto de vista também do outro concreto.
Benhabib revisita o debate sobre as mulheres nas teorias morais num profícuo diálogo com a psicologia moral de Carol Giggligan, que propõe formular uma ética feminina do cuidado. Aproximando-se do pensamento de Gilligan, a filósofa crítica o sexismo na constituição do sujeito da tradição moral, reforçando que ele comumente exclui as experiências da mulher e suas particularidades de relações de cuidado e afeto.
Por fim, ela apresenta reflexões sobre o debate entre o feminismo, colocando questões de gênero para autores pós-modernos e, também, para Hegel. O livro termina com um ensaio em que Benhabib dialoga com Hegel e, ironicamente, expõe como ele deliberadamente excluiu as grandes reflexões sobre as mulheres de sua filosofia. Ela questiona a imparcialidade e a representatividade do pensamento hegeliano.
Em poucas palavras é impossível apresentar todos os meandros do percurso filosófico de Seyla Benhabib em Situando o Self: gênero, comunidade e pós-modernismo na ética contemporânea. Entretanto, espero que esta resenha impulsione o leitor como um convite para adentrar em sua leitura e para que haja grandes movimentos de ampliação das pesquisas sobre o pensamento desta filosófica que cuja preocupação emancipatória se faz constante.
PAULA GABRIELA MENDES LIMA é professora de Filosofia integrante do PPGIDH/UFG e doutora em Filosofia Política pela UFMG