Naturane non facit saltum? Com essa indagação, o autor
de Leviatãs privados: grandes empresas,
economia e direito econômico inicia um dos seus capítulos questionando se a
Lei da Continuidade de Leibniz, segundo a qual não há solução de continuidade
na natureza de fenômenos que se diferenciam apenas numericamente por sua
dimensão, seria aplicável ao fenômeno econômico da empresa. Alfred Marshall já
adotara essa lei como subtítulo do seu clássico Principles of Economics e, anos depois, Ronald Coase fez uso da
teoria marginalista decorrente dessa obra para definir a natureza da firma.
Seriam, então, grandes empresas iguais a quaisquer outras?
Uma empresa, segundo Coase, é uma forma de organização dos fatores de produção centralizada sob um controle consciente, distinguindo-se, assim, da organização produtiva difusa que é o mercado. A razão para a existência de empresas e não de mercado em partes da economia seria apenas uma: a maior produtividade que essa centralização de poder apresentaria nessas zonas específicas da economia.
O livro Leviatãs privados questiona se em todas as empresas esse controle consciente restringiria seu poder apenas aos fatores de produção da firma ou se poderia chegar a estendê-lo sobre todos os fatores de produção da sociedade. Novamente, a produtividade vai exercer um papel fundamental para identificar firmas com uma natureza diferente e, dessa forma, o livro inquire se há empresas que afetam não só a produtividade dos seus fatores, mas sim a produtividade da sociedade como um todo.
O autor usa uma medida comum de produtividade para a economia, o PIB per capita, e busca investigar, na linha do que teorizou Keynes, se decisões de investimento de grandes empresas influenciam de modo estatisticamente significativo o nível de produção per capita do país.
Em sua pesquisa, ele levantou dados dos balanços de dezoito grandes companhias brasileiras entre 2005 e 2017, compreendendo o período da última inflexão no ciclo macroeconômico do Brasil. Realizando regressões lineares, exames de teste t e elaborando uma cronologia nas inflexões das curvas de tendência dos investimentos das empresas, da formação bruta de capital fixo e do PIB per capita do país, o autor comprova empiricamente que há uma relação de causalidade entre, de um lado, a decisão de investimento das grandes empresas e, de outro, a realização de investimento pelos demais agentes econômicos e, por fim, o nível da renda per capita do país.
O caminho para a propagação dessa reação em cadeia é a rede de contratos e obrigações que a grande empresa possui com fornecedores, trabalhadores e entes públicos, fazendo com que seus pagamentos de prestações, salários e tributos se alastre em subsequentes redes de pagamentos e assim sucessivamente, tendendo a alcançar toda a sociedade.
Essa é a conclusão hegeliana da obra, segundo a qual a quantidade atribuída ao tamanho da empresa confere uma nova qualidade a sua natureza. Nas palavras do autor, “existem, portanto, despercebidas pela teoria da firma, empresas que não apresentam um comportamento passivo perante o mercado e que, como Leviatãs privados, lideram a economia”. A grande empresa seria, por isso, um ponto em que a microeconomia e a macroeconomia se tocam.
A referência a Hobbes é clara e no livro o autor transcreve a passagem, que é sempre bom recordar, em que este define o Leviatã como “one person, of whose acts a great multitude, by mutual covenants one with another, have made themselves every one the author, to the end he may use the strength and means of them all as he shall think expedient for their peace and common defence”.
Em termos jurídicos, o poder de controle, conforme estudado por Comparato, apresentaria uma manifestação externa corporis nas grandes empresas. Essa manifestação é o próprio poder econômico dessas empresas, definido como a possibilidade de tomar uma decisão apta a afetar de modo significativo a estabilidade e os rumos da economia. Em termos econômicos, a capacidade de investimento é o atributo central para deter esse poder.
A partir dessa incursão teórica, começa-se a vislumbrar o dilema com o qual o livro lida. A existência de Leviatãs privados, com poder sobre a economia, desafiaria a própria essência do poder soberano, que, por natureza, é uno e atribuído a um ente público.
Por diversas vezes, vê-se na história que se uma grande empresa está em crise ou toma decisões contrárias ao que a sociedade deseja seguir, esta sente sua soberania desafiada e, por necessidade ou vontade, reage usando do seu poder político e dos recursos financeiros deste para reafirmar sua soberania de forma manifesta na estabilidade e nos rumos escolhidos para a economia. A tese do autor é que a própria situação fática da economia moderna força o Direito a obter uma resposta a uma realidade em que a grande empresa e a economia, a parte e o todo, se tornam muito próximos.
A primeira parte do livro, que consiste em uma série de estudo de casos, detalha histórias de empresas e economias em que esse fenômeno se mostrou presente.
A participação do governo americano na recuperação judicial da General Motors está viva na memória de qualquer leitor. Mas se revela no livro o quão particular foi esse processo judicial, com o uso de caminhos processuais para se escolher o juiz natural, de institutos falimentares para se vender todos os ativos de forma célere, antecipada e sem análise dos credores e de diversas outras aplicações impróprias da lei para tornar essa crise da empresa o menos doloroso possível para a sociedade. Nesse contexto, foi essencial o Estado americano agir como subscritor de última instância e controlador ad hoc da companhia.
Contrasta esse caso, com o das empresas envolvidas na Operação Lava-Jato. O autor mostra os impactos econômicos que as restrições impostas a essas empresas sabidamente teriam. Citam-se diversas estimativas da época que projetavam esse impacto no PIB por vários anos. O dilema que isso gerava se concentrou entre a busca da Advocacia Geral da União em usar impropriamente o acordo de leniência para evitar esse dano econômico, com o efeito colateral de preservar não só a empresas, mas também os empresários perpetradores de ilícitos, e a reação do Ministério Público para que se aplicasse estritamente a lei para obter as finalidades de retribuição e prevenção da pena, com o efeito colateral de se comprometer a renda e o emprego do país. Mais adiante a obra mostra que institutos jurídicos comumente usados para instituições financeiras que entram em crise ou cometem ilícitos poderiam muito bem ter separado a empresa dos seus controladores e mantido aquela em atividade enquanto se julgavam estes.
Outros casos são trazidos, como o embate entre o Japão e a Sumitomo para que essa cumprisse o cartel legalmente criado pelo Ministério do Comércio Internacional e da Indústria durante a industrialização japonesa e o embate entre o governo brasileiro e a Vale para que ela mantivesse seus níveis de emprego durante a crise de 2008 e se voltasse para a instalação de siderúrgicas em paralelo à exportação de minério de ferro bruto.
Ao longo do livro, mais narrativas interessantes, como a da Companhia Britânica das Índias Orientais, a da Sadia e da Standard Oil, podem ser encontradas.
Em todos os casos narrados, as soluções de improviso, sem uma legislação específica e fazendo uso impróprio de instrumentos jurídicos que não foram desenhados para lidar com os problemas que emergem da grande empresa, mostram a ausência no Direito de uma dogmática para tratar desse fato jurídico.
Por isso, o autor disserta sobre o instituto jurídico do controle do controle, já estudado por Comparato, e propõe dois instrumentos para concretizá-lo. Para o regime jurídico da grande empresa em crise, caberia o instituto da intervenção e liquidação extrajudiciais (receivership authority), conhecido no Direito Bancário e em setores regulados. Para o regime jurídico da grande empresa com influência sobre os rumos da economia, caberia o instituto das diretrizes administrativas (gyōsei shidō), utilizado como uma solução negocial entre Estado e empresa durante o período de crescimento da economia japonesa. O estudo dogmático desses institutos encontra-se na última parte do livro.
No último capítulo, o livro narra uma passagem interessante da história do petróleo. Na época da corrida pelo ouro negro nos EUA, Rockfeller via no livre mercado das Oil Regions um campo minado para os agentes econômicos. A multidão de agentes atuando em regime de mercado gerava ondas de abundância e escassez, de preços lucrativos e prejuízos duradouros, de criação de cidades e desaparecimento de populações inteiras. Com a Standard Oil, ele buscou conferir estabilidade e direção ao setor petrolífero garantindo não apenas lucratividade para a empresa como também viabilidade para o setor. Como o livro mostra, o Direito está diante de uma oportunidade não muito distinta e há de utilizar instrumentos jurídicos para disciplinar a relação entre o Leviatã público e os Leviatãs privados para, com grande proveito à sociedade, conferir estabilidade e direção a toda a economia.
Em sua conclusão, o autor incita os Poderes Executivo, Legislativo e Judiciário para que revejam suas práticas administrativas, suas leis e suas jurisprudências de forma que estejam preparados quando emergirem novamente os desafios impostos pela grande empresa à sociedade.
SILVIO GABRIEL SERRANO NUNES é doutor em Filosofia pela USP, professor da Escola Superior do TCM-SP e professor do Mestrado em Direito da UNISA