Durante o auge
da pandemia de COVID-19, em 2020 – no Brasil, ela se agravou a partir de março
de 2020, com suspensão das aulas e principais atividades a partir do final
desse mês – ficamos perplexos, sem saber o que esperar. Muitos entraram em
depressão, ficando paralisados física e intelectualmente. Outros, pelo
contrário, entre os quais me incluo, procuraram compensar essa falta de
atividade exterior com uma hiperatividade intelectual, participando de lives,
criando canais no Youtube, publicando. Não posso dizer qual foi a primeira
reação do professor Waldomiro José da Silva Filho, docente da UFBA, membro do
GT-Ceticismo da ANPOF e amigo de longa data. Mas sei que, em algum momento,
diante de um cenário ruim não só no campo da saúde, como no campo educacional,
ambiental, tecnológico etc. e, principalmente, político, a organização da
coletânea Porque a filosofia interessa à democracia foi a resposta que
ele conseguiu articular, e uma resposta muito boa.
Essa postura fica clara na apresentação, pelo autor, que diz:
(...) quem pensa a democracia e a filosofia, ou melhor, que se empenha em as praticar, deve estar alerta para aquilo que nos impulsiona a escrever, falar, reivindicar a defesa da democracia, da liberdade, da autonomia: queremos que isso tudo produza algo, cause um efeito. (p. 40).
O livro se apresenta também como uma crítica à filosofia acadêmica tal como praticada hoje, na qual o que parece importar mais é a quantidade, não a qualidade e o teor daquilo que se diz, para quem se dirige. Nós nos acostumamos a falar para nós mesmos: os periódicos nos quais publicamos, muitas vezes, funcionam como espelhos, nos quais, como Narcisos, contemplamos nossa própria imagem, admiramos nossos próprios artigos e esquecemos de ler e comentar o que os colegas produziram. Esta coletânea vem na direção contrária: dirige-se à comunidade filosófica mais ampla, não circunscrita às especialidades, e tendo em vista um tema que é comum: a democracia e o modo como a filosofia se relaciona (ou não) com ela.
Exemplificando essa abertura epistêmica, o livro contém contribuições de colegas de várias áreas: Filosofia Política, Filosofia Antiga, Epistemologia, Filosofia do Direito, Filosofia Contemporânea e outras tantas denominações de um só fazer: o filosófico. Os autores se propõem a pensar filosoficamente a questão da interação entre democracia e filosofia. São eles: Adriano Correia (UFG), Aldo Dinucci (UFS), André Berten (Professor Visitante, UFBA), André Luís Mota Itaparica (UFRB), Breno R. G. Santos (UFMT), Carlos Enéas (Mestre em Filosofia pela UFF), Delamar José Volpato Dutra (UFSC), Eunice Ostrensky (USP), Felipe Rocha L. Santos (Pesquisador de Pós-Doc na UFBA), Genildo Ferreira da Silva (UFBA), Hilton Leal da Cruz (IFBA), Israel Alexandria da Costa (UFAL), João Carlos Salles (UFBA, atual Reitor), João Geraldo Martins da Cunha (UFLA), José Crisóstomo de Souza (UFBA), Juliana Aggio (UFBA), Kátia Martins Etcheverry (Professor em estágio Pós-doutoral na PUCRS), Leonardo da Hora (UFBA), Marcelo Veras (Psicanalista da AMP), Pedro Lino de Carvalho Júnior (UFBA), Rafael Lopes Azize (UFBA), Renata Nagamine (Pós-doutorado no PPGFIL-UFBA, CEBRAP), Renato Lessa (PUC-RJ), Tiago Medeiros Araújo (IFBA), Verónica Tozzi Thompson (Universidade de Buenos Aires e Universidade Nacional Três de Fevereiro), Vinícius dos Santos (UFBA). A quantidade de colaboradores e suas filiações revelam a amplitude nacional do livro. Além disso, muitos deles possuem renome nacional e internacional.
O livro se divide em 5 partes: 1) O filósofo na arena democrática; 2) O desafio de pensar o presente; 3) O tempo da democracia; 4) Epistemologia da democracia, e 5) A democracia e seus lugares. Não podemos dar conta aqui, é evidente, de todas as contribuições, e a apresentação do livro cumpre essa função. Nós nos limitaremos, portanto, a destacar algumas questões postas pelos autores ao longo do volume, em uma espécie de amostra, a fim de incentivar sua leitura.
Na primeira parte, “O filósofo na arena democrática”, discorrem João Carlos Salles, Renato Lessa e Adriano Correia. A partir de seus pontos de vista específicos, ou seja, a partir dos autores e correntes com os quais estão mais familiarizados, os autores não se furtam a analisar a questão do embate filosófico, da ágora contemporânea na qual os filósofos se veem jogados, participantes, não mais meros espectadores, ou observadores. No texto “Máscaras do filósofo ou o não lugar da filosofia”, João Carlos Salles aborda o problema do filósofo na praça pública ou, em suas palavras: “O filósofo na praça pública: eis o risco verdadeiro e incontornável”. A partir da análise de um momento de Fichte, em Iena, em 1794, reflete sobre o papel do filósofo que, aos poucos, a partir daí parece ir se encerrando de fato nos muros da Academia.
Mesmo aí, diz o filósofo (Fichte), não se deve renunciar aos ideais, à utopia. No comentário de João Salles, “Não há política nem filosofia se não julgamos a realidade em função de ideais que nela se devem afirmar” (p. 50). Mas o autor traz a discussão para o tempo presente ou, mais precisamente, para o passado recente da ditadura, em 1975. Mas, o mais curioso, é que as sombras estão no espírito da época, e não só do lado da direita. João Salles introduz um relato da professora Marilena Chauí, que mostra o feroz machismo que grassava então a torto e a direita. Um professor chega a propor ao Departamento a esterilização (SIC) da professora (p. 53). Era preciso escolher: ter filhos ou ser uma intelectual – escolha que, naturalmente, não se colocava para os homens. O relato é corroborado pelo memorial de Scarlett Marton (A irrecusável busca de sentido. São Paulo: Ateliê, 2004), que acrescenta outros dados relativos ao machismo no meio acadêmico, e especificamente na Filosofia. O autor prossegue traçando uma espécie de história da filosofia no Brasil (cf. também Paulo Arantes, Um departamento francês de ultramar, Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1994). Mas este não é o lugar para recontar essa história.
Renato Lessa aborda o tema clássico da recíproca hostilidade entre os governantes e os filósofos, patente, pelo menos, desde a época de Sócrates. Chega a propor uma fórmula, negativa, a respeito dessa relação: “governos despóticos e antidemocráticos, por definição, odeiam tanto a filosofia quanto aqueles que a praticam” (p. 66, grifos do autor). Sem defender uma relação direta e necessária entre democracia e filosofia, Lessa diz que “ela é um recurso inestimável para a reflexividade, para o exercício do pensamento e do juízo crítico e, sobretudo, para a configuração de uma reserva de abstração” (p. 73, grifos do autor). Segundo ele, ainda (p. 74), “A relação entre democracia e filosofia depende (...) da consistência e do empenho de uma política filosófica, ou de uma política para a filosofia”.
O último texto dessa parte, de Adriano Correia, chama-se “O projeto de Sócrates – Hannah Arendt sobre a relevância política da filosofia”. Partindo da reflexão de Arendt, o autor mostra que o filósofo precisa sair de si mesmo e, de certo modo “contaminar” os que estão à sua volta, na praça. Em outros termos, deve levar a reflexão à sociedade, em vez de centrar-se em si mesmo como local de reflexão. De certa maneira, o autor (e a autora) contrapõem a figura de Sócrates ao estereótipo do filósofo profissional. Como diz ele: “O que falta aos pensadores profissionais é uma capacidade para lidar com os particulares em sua própria dignidade” (p. 93). O espanto deve ser o ponto de partida, e não se deve permanecer nele.
A segunda parte se inicia com o texto de Eunice Ostrensky, “Democracia na era da desumanidade”. A autora toca também no tema da produção acadêmica contemporânea, marcada pelo valor econômico, pela quantidade. Segundo ela: “À atividade de produzir conhecimento agora se associa um valor, uma cifra, que é tanto maior quanto mais aplicável for o saber gerado. O critério para definir o conhecimento é o da utilidade, de preferência imediata” (p. 121). Diante dos desafios nas diversas esferas – econômica, social, ambiental etc. – os filósofos precisam sair do estado de paralisia em que se encontram: “É necessário dispormo-nos a participar da experiência radical de formular novos horizontes de ação e ideais de bem comum, talvez sem esperança, mas com coragem” (p. 122, in fine).
André Berten, filósofo belga radicado no Brasil, escreve “Racionalização do mundo da vida e democracia deliberativa”. O autor defende uma concepção que nos é próxima, a saber, a de “democracia deliberativa”, com seus pressupostos de argumentação racional e razoabilidade. A despeito de um tom moderadamente cético em relação às possibilidades da filosofia para combater os problemas da contemporaneidade, Berten insiste sobre um uso da razão em sentido “fraco” (G. Vattimo), característica do debate atual em uma sociedade plural. Mobilizando sobretudo as teorias da ação comunicativa, de Jürgen Habermas, e a teoria da justiça como equidade, de John Rawls, o autor defende, por fim, que se especifique, cada vez mais, o que se entende por “democracia deliberativa”, pois a saída, se houver, se encontra nesse caminho.
Nesta curta seleção, escolhemos, por fim, o texto de Juliana Aggio, professora da UFBA, que propõe a expressão, título de seu capítulo, “Filosofia como modo de vida democrático”. Remontando ao modo de vida dos gregos (não todos), baseado na noção de liberdade, a autora recupera a noção de filosofia como modo de vida. Assim, o modo filosófico seria um modo essencialmente democrático. E finaliza seu ensaio em tom peremptório, como ela mesma diz: “a filosofia como modo de vida democrático se faz necessária e urgente em tempos sombrios como a nossa melhor ferramenta de luta contra as atitudes e decisões autoritárias de nosso atual governo, pois que é, por natureza, contrária a todo e qualquer tipo de autoritarismo (...)” (p. 165).
Poderíamos prosseguir analisando cada um dos textos que compõem o livro, mas não temos espaço para isso, e não nos compete fazer isso. Gostaríamos de finalizar dizendo que a filosofia ganhou realmente contornos nacionais, desde os anos 1970 e 1980. A história dessa expansão é em parte narrada no texto de João Carlos Salles, acima referido. Entidades como o CNPq, a Capes, a SBPC e a ANPOF tiveram papel decisivo nesse processo. Os professores formadores – Bento Prado Júnior, José Arthur Giannotti, Oswaldo Porchat, Roberto Romano, entre tantos outros – se foram ou estão se aposentando. Compete agora às novas gerações, incluindo a nossa, levar adiante esse legado, cuidando para que, pelo menos, não retrocedamos em relação ao que até agora foi conquistado.
LUIZ PAULO ROUANET é professor associado - DFIME/PPGFIL - da Universidade Federal de São João del-Rei