O ressentimento
é, sem dúvida, um dos conceitos mais centrais e mais instigantes da obra de
Nietzsche, aquele que se anunciava como o primeiro psicólogo da história e como
médico da cultura. Ninguém que quisesse realmente entender a cultura ocidental,
suas formatações moralizantes e os sintomas nefastos que eles deixaram como
rastros ao longo da nossa história, haveria de deixar de lado essa chave
hermenêutica. Com ela, Nietzsche desfralda um horizonte de evidências que não
apenas ilustra e descreve boa parte de nossos erros civilizacionais, como o faz
projetando-se para o futuro, para os “próximos duzentos anos”, como ele se
referia ao tempo que também é o nosso, no qual novos indícios em todos os
campos (inclusive e principalmente os políticos) indicam a atualidade do tema.
Quando esse retorno temático e hermenêutico é realizado por um dos maiores conhecedores da obra do filósofo alemão, que junta clareza (que é, lembrando Ortega y Gasset, a gentileza do filósofo) com rigor, o leitor é o grande beneficiado. Ressentimento e vontade: para uma fisio-piscologia do ressentimento em Nietzsche é o título do novo livro do professor Oswaldo Giacoia Junior (Unicamp/PUCPR), recém-lançado pela editora Via Verita. O livro, que é parte da Coleção Afetos, oferece uma radiografia do tema e, ao mesmo tempo, abre muitas janelas sobre outros problemas centrais abordados por Nietzsche ao longo de sua profusa obra. Em oito capítulos, acrescidos de uma conclusão e dois excursos sobre o niilismo (que estão bem longe de serem meros desvios temáticos, dada a sua centralidade para a compreensão do problema), o livro realiza o que propõe em uma linguagem ensaística, própria de quem fala direto com o seu interlocutor, dando-lhe crédito e, ao mesmo tempo, esperando que ele se manifeste – prova de imenso respeito que caracteriza o prof. Giacoia nas suas relações pessoais. Lê-se como quem pode, a qualquer momento, interromper o emissor, pedir-lhe vistas, demorar-se um pouco mais em algum argumento ou simplesmente elogiar a primorozidade do argumento. Colabora para isso o projeto gráfico: um livro de 21 cm, que inclui capítulos curtos, entrecortados com as belíssimas ilustrações de Susano Correia, que se encaixam com muita exatidão à proposta da obra, interpostos aqui e ali, aparentemente de forma aleatória, ao próprio ritmo da leitura, como interrupções constrangedoras que obrigam o leitor a levar as suas próprias intuições adiante.
O livro parte de uma constatação: o ressentimento está intimamente ligado ao conceito de consciência moral (Gewissen), um dos pontos nevrálgicos de Para uma genealogia da moral e o “fulcro da moralidade humana” na medida em que se aproxima da ideia de dever. É precisamente por isso que o livro começa um degrau atrás, com Kant e a própria ideia de majestade da lei moral. Reconhecendo a importância (crítica) desse conceito kantiano para Nietzsche e Freud, Giacoia retoma a concepção segundo a qual a consciência moral é “o fato originário da razão prática”, erguido sobre os alicerces daquele tribunal interno que faz do divino um morador interior. Ora, para Nietzsche, é essa “instância judiciária”, amparada na antiga matriz religiosa (herdeira da censura e da culpa), que leva à condenação da animalidade (Giacoia nos lembra que na terceira dissertação de Para uma genealogia da moral Nietzsche se refere a uma Thierpsychologie, ou seja, a uma Psicologia animal) e, consequentemente, à inversão das energias psíquicas que leva à criação da má-consciência. Ora, culpa e má-consciência são pares complementares nascidos desse processo de asfixia dos instintos e pulsões que, em última instância, remetem à animalidade proibida pela censura do dever. Sem poder se exteriorizar, tais energias voltam-se para dentro e dão origem ao ressentimento, descrito como um produto da crueldade introjetada. Torna-se evidente por que Nietzsche se volta contra Kant, portanto. E por que, afinal, é na confluência entre a crueldade e o ressentimento que se encontra a explicação para a origem da história de adoecimento e enfraquecimento do ser humano, levada a cabo por meio da invenção de uma “via subterrânea de descarga” e de “um meio de compensação para a destrutividade recalcada, uma agressividade represada no interior da ‘alma’” (p. 21) e que, no fim, inaugura uma história de “sofrimento crônico”. Revelar esse processo, como nos mostra Giacoia, é a grande tarefa de Nietzsche, o genealogista e o psicólogo da moral.
Começando com Kant (primeiro capítulo), por isso, Giacoia chega ao conceito de fisio-psicologia (segundo capítulo), que é o modo como Nietzsche se refere à psicologia e a si mesmo como psicólogo, na medida em que essa forma de conhecimento (amplamente usada, diga-se de passagem, desde Humano, demasiado humano, entre outras coisas, como herança de sua amizade com Paul Rée). Ora, essa fisio-psicologia é uma teoria dos afetos (terceiro capítulo), compreendidos como “um quantum de energia psíquica, de natureza emocional” (p. 30) e que representam, no fim, maneiras de sentir determinadas vivências e que acabam induzindo e influenciando formas de pensar: nesse simples argumento, Giacoia elucida a íntima relação entre os afetos e o pensamento como forma original de compreensão da fisio-psicologia com a moral e sua raiz mais profunda, aquela que nutre a íntima relação entre os eventos psíquicos e os somáticos. Além disso, a argumentação concorre para uma explicitação da relação entre a filosofia experimental, que testa constantemente essa tensão entre o corpo e a psique, traduzida na vinculação entre pensamentos, afetos e juízos e à própria terapia dos afetos, descrita como uma tentativa de restabelecimento da saúde perdida, por meio de um aumento da força vital (que não significa ausência de enfermidade mas, ao contrário, aumento da resistência). Para isso, é preciso levar os afetos até a sua primeira determinação, ou seja, os juízos. Com essa argumentação, Giacoia nos ajuda a compreender que o a compreensão do ressentimento na obra de Nietzsche passa por uma apreensão da sua “causação fisio-psicológica”. Buscando as raízes etimológicas do termo principalmente na literatura francesa do século XVI e estudando seu desenvolvimento a partir de então, é possível compreender que o ressentimento é, sobretudo, um “dispositivo de compensação” que tem como propósito “assimilar vivências negativas, experiências ‘traumáticas’ de sofrimento” que são “excitações causadoras de perturbação, fontes de desprazer” (p. 37). Ora, tal passagem estreita reside precisamente na conversão do dever em culpa, compreendido como a uma “metabolização” da negatividade: trata-se da mudança do curso dos impulsos hostis, antes dirigidos para o exterior e agora voltados (sob a pressão do dever) para dentro, de modo que “a crueldade do bicho-homem passasse a desafogar-se internamente” (p. 38). A civilização se ergueu sobre esse processo e, assim, nutriu-se dessas energias reversivas que lhe forneceram o ressentimento como uma marca indelével, indissociável. Em outras palavras, a interiorização do homem é produzida com um custo alto que inclui, principalmente, a dificuldade de digestão das vivências negativas o que, afinal, se explica pela dificuldade em esquecer (ou, ao seu inverso, na importância da memória da culpa). Giacoia, contudo, chama atenção para um detalhe que facilmente passa desapercebido: a dor é o meio de bloqueio do esquecimento, ou seja, ela faz parte da estratégia usada pela memória mas, ao mesmo tempo, é preciso esquecer para ser capaz de lembrar – nessa contradição revela-se uma patologia que impede o processamento das vivências, tornando o indivíduo doente, fraco, corrompido.
A descrição desse indivíduo é o tema do capítulo quarto, que trata do ressentimento sob a perspectiva da distinção nietzschiana entre o fraco e o forte. Giacoia começa por descrever o processo segundo o qual “o ressentimento tem um efeito sedativo” que ele chama de “narcotização da dor por intermédio do afeto” (p. 45): tudo ocorre como se, ocupado com seu afã de vingança, por exemplo, o homem ressentido encontrasse uma via de alívio para sua própria dor, aquela nascida de algum infortúnio vivido. É o que torna o ressentimento um processo reativo, embora nele também esteja incluído esse entorpecimento como aspecto positivo próprio do tipo fraco (ou escravo). Enquanto o forte escolhe e pratica a descarga como um para fora daquela energia negativa, o fraco atrela-se ferrenhamente ao ressentimento porque nele encontra o narcótico capaz de aliviar a dor e é precisamente por isso que ele tem muita dificuldade de curar-se da doença – que ao mesmo tempo lhe oferece uma possiblidade de vida, embora fraca. Ele é um envenenado, por isso, cuja toxina não mata, mas também não cura. O exemplo óbvio é o personagem de Dostoiévski em Memórias do subsolo, uma espécie de paradigma que também serve para descrever o homem moderno, que continua atrelado à invenção sacerdotal do pecado, que é o nome de uma estratégia que fez voltar para dentro a crueldade antes exteriorizada. O resultado é o “hiperdesenvolvimento da consciência” (p. 53) como uma doença. A descrição fornecida por Giacoia é, nesse ponto, também exemplar: essa hipertrofia da consciência é precisamente o que torna o homem, esse animal enfermo, em um animal também problemático, denso, profundo e repleto de futuro – por ter intensificado para dentro, ele também se tornou mais capaz para a grande reviravolta que, na obra de Nietzsche, se chama transvaloração dos valores. Por ter sofrido de si mesmo tão longamente e tão profundamente, talvez ainda reste a esse homem a condição/habilidade para sua superação.
O capítulo quinto do livro faz uma aproximação do tema com a Metapsicologia de Freud, no qual Giacoia aprofunda a tese de que o processo de “hominização” está baseado no processo que contrapõe a civilização com sua condição animal. Nesses termos, é como se o ressentimento fosse, de fato, a marca original da civilização e como se ela não fosse mais do que uma tentativa constante de narcotizar a dor por meio de uma descarga de afetos poderosos, cuja melhor expressão é o sentimento de culpa e a vingança a sua expressão mais acabada. Se é a coerção que gera o ser social, então na sua base está esse descarregamento afetivo. Aí, no meio da civilização, contudo, nasce o problema do absurdo, descrito como uma falta de sentido para o sofrimento, um desconhecimento da razão de sua dor por parte do ser humano. Esse é o tema do capítulo sexto, que analisa o paradoxo da falta de sentido para a dor e da dor da falta de sentido, no qual Giacoia analisa o papel do ascetismo na oferta de uma compreensão (sentido) para a dor como caminho de redenção, apoiado na ideia de que “qualquer finalidade é melhor do que nenhuma finalidade”. Sofrer para se purificar é a finalidade que, pelas mãos do sacerdote ascético, junta culpa e má-consciência, tornando a consciência da culpa em um tormento que, pretensamente, redime, na medida em que encontra um culpado para o sofrimento. Chega-se, portanto, ao segundo par conceitual que dá título ao livro: a vontade do homem, voltada contra si mesmo, revela-se como “crueldade psíquica” na medida em que o indivíduo tem vontade de sentir-se culpado para poder redimir-se. Tal vontade, assim, é uma força que quer infectar e, de fato, envenena tudo ao redor com o próprio ideal, na qual a ideia de Deus passa a desempenhar o máximo da representação da indignidade que o ser humano impetra sobre si mesmo. Mas isso, como se vê pela análise nietzschiana, não fez outra coisa a não ser adoecer mais profundamente, na medida em que “o ressentimento só alivia a dor, na medida em que infecciona a chaga” (p. 78). Nesse caso, a vida é contaminada pelo peso e pelo cansaço: ela não é mais vivida como alívio, mas como forma de expiação. Viver é provar a própria indecência do homem diante de si mesmo.
Os diferentes tipos de asceta e os meios utilizados para que eles cumpram os seus objetivos de envenenamento da vida é o tema do capítulo seguinte, o sétimo. A filosofia de Schopenhauer é um dos alvos, mas sobretudo o Budismo e o Cristianismo – o primeiro, compreendido como forma ingênua de decadência e o segundo, como a “decadência culpada, ressentida e vingativa”. Giacoia, contudo, mostra como Nietzsche distingue o Jesus e o Cristo, para mostrar que no estilo de vida do nazareno é possível também identificar um tipo de emprego inocente dos ideais ascéticos, embora todas essas estratégias civilizacionais representem formas de negação da vontade de poder – trata-se, no limite, de uma forma de renúncia à vontade de poder que pode levar à supressão da má consciência. Mas ainda não da forma radical proposta pelo próprio filósofo por meio da sua transvaloração ou inversão da inversão, para usar a expressão do prof. Giacoia. É precisamente por aí que ele chega aos “dois modos complementares” do pensamento de Nietzsche: “por um lado, o ressentimento como extravagância do afeto, como descarga internalizada do sentimento para fins de entorpecimento da dor”, como vimos até aqui, e, por outro, a “alternância possível do ressentimento, como se fosse uma autossuperação” (p. 91), precisamente no sentido de que o ressentimento pudesse “suprir a si mesmo”, ou seja, como estratégia de desconfiança do ressentido contra o moralismo residual que lhe abate. É como “asseio e probidade intelectual” que se torna possível a autossuperação do ressentimento, na medida em que, sendo herdeiros dos ideais ascéticos, todos dirigimos contra nós mesmos a própria má-consciência, “promovendo uma vivissecção impiedosa do que em nós ainda resta de devoção e moralismo” (p. 92), algo que é descrito por Giacoia como uma “autoviolentação redentora”. Essa é a tarefa do psicólogo, portanto: uma volta da crueldade em seu sentido mais pleno – retirar do moribundo o narcótico.
No último capítulo de seu livro, Giacoia analisa o problema da finitude como “extrato ontológico” mais abissal da enfermidade representada pelo ressentimento. A má-vontade contra o tempo, a aversão à ideia de fluxo, representa, assim, o sofrimento mais radical a afetar o ser humano. A essa forma de ressentimento Nietzsche opõe a noção de eterno retorno, como variante do amor fati, que recusa o além-mundo de quem foge do tempo, para afirmar o que passa em sua integralidade. Se o ressentimento é um sentir de novo e, portanto, uma dificuldade de lidar com o tempo, um sentimento reativo contra a vida e uma insatisfação com sua irreversibilidade, o eterno retorno é a afirmação incondicional da existência que leva à sua superação. Trata-se da terapia mais eficaz, portanto. A filosofia de Nietzsche culminaria, assim, com uma “liberdade de criação” (p. 104) na qual o sentido dionisíaco da existência se configura como expressão de uma força afirmativa criadora, capaz de enfrentar o niilismo (tema dos dois excursos acrescentados à obra, na medida em que esse conceito conta a história do adoecimento e de sua própria superação).
Baseado em uma literatura secundária sucinta – o que revela não só como foi bem escolhida mas indica também os caminhos incontornáveis de aprofundamento para um leitor ou pesquisador mais empenhado – e atento às nuances muito próprias do texto nietzschiano, ao qual ele impõe sua própria régua, o prof. Oswaldo Giacoia Junior, autor de tantos textos lapidares do pensamento filosófico brasileiro, traz à tona, nesse momento tão crucial da história política nacional, um texto primoroso que, longe de estar fechado sobre si mesmo, pode ser lido por quem quer entender o que se passou e o que se passa conosco, nesta encruzilhada da civilização. Como toda encruzilhada, esta também – nunca é demais lembrar – está cheia de oportunidades.
JELSON OLIVEIRA é doutor em Filosofia e professor do Programa de Pós-Graduação em Filosofia da PUCPR