Baião de
dois: sons e sabores do Brasil nos convida a um
banquete que alimenta nossa fome de saber. O autor, Pedro de Lima, escreve como
um exímio cozinheiro, temperando cada capítulo também com ilustrações:
xilogravuras feitas por ele mesmo, que retratam os temas trabalhados no livro.
Trata-se de uma receita original: doses de história, práticas alimentares e
obras musicais. Assim, as navegações portuguesas que resultaram não no descobrimento
– pois nada estava encoberto para quem já habitava aqui – mas na invasão e
exploração dessas terras, promovem os primeiros encontros culinários: as
galinhas, a farinha de trigo, as especiarias, vinhos e azeites, trazidos nas
caravelas, combinam-se à mandioca e aos feijões cultivados pelos nativos de
Pindorama. E, a partir do plantio de cana-de-açúcar, mais um ingrediente
incrementa o conflito já instaurado na colônia: a escravidão. Negros africanos,
indígenas e portugueses convivem, em posições desiguais, no mesmo território;
então, a colonização se intensifica e inaugura novas iguarias brasileiras, como
os doces feitos com amendoim e as cachaças. Servem-se, ainda, neste banquete,
temas como a curiosa origem da feijoada, as moquecas, a carne seca, o vatapá, a
tapioca, a bebida feita do guaraná, o pão de queijo com cafezinho e,
claro, o baião-de-dois. São sabores criados juntamente aos dissabores de
impactos sociais e ambientais da ocupação territorial, da violência de Estado,
colonial, imperial e republicana. A acidez e a indigestão são inevitáveis, mas
é num ritmo palatável que Pedro de
Lima conta-nos histórias sobre o encontro de culinárias diversas e o amargo
desencontro entre elas: o massacre dos povos nativos, a exploração degradante
dos escravos, e a consequente formação da sociedade brasileira, forjada sobre
as ruínas de sucessivos golpes políticos e de ciclos econômicos variados.
Estes, podem ser contados sem lirismo algum: extrativismo, cana-de-açúcar,
gado, algodão, borracha, mineração, cafeicultura, industrialização – mas quando
são evocados em canções e tradições alimentares expressam mais do que uma
abstrata linearidade histórica. Pois, apesar dos
pesares, tais encontros que formaram e fazem o Brasil, criam beleza através de
ritmos próprios: samba, forró, bossa nova, tropicalismo, rock-nacional, músicas
de protesto dos festivais, canções de folclore e festejos populares. E nesses
ritmos, o velho provérbio se confirma: quem canta seus males espanta – e não
faltam males assolando Pindorama, a antiga e edílica terra sem males, outrora
celebrada pelas etnias nativas. Séculos de ocupação e desenvolvimento revelam
que a criatividade artística é uma vocação da cultura brasileira. Nossas
composições encantam, mas a
ambiguidade presente em algumas canções não passa despercebida pelo autor: a
cobiça masculina sobre os corpos de mulheres (sobretudo negras e indígenas), o
racismo (racial e estrutural) disfarçado em piadas sem graça alguma, o
ressentimento das elites em relação aos portugueses, são preconceitos reveladores.
Ainda, Baião de dois não é (e nem se propõe a ser) uma obra estritamente
acadêmica – e esta decisão estilística nos permite embarcar numa leitura leve e
enriquecedora: basta seguir o roteiro traçado pelo autor e se deixar navegar. E
se toda análise histórica é feita a partir de uma perspectiva situada na
história, este pressuposto retrata bem o ponto de vista adotado por Pedro de
Lima. Na introdução o autor situa a obra em termos de objetivos, temáticas e,
indiretamente, indica a metodologia e os referenciais. Nos primeiros dez capítulos – de
“Navegar é preciso” a “Cana de Engenho” – percorremos a colonização
protagonizada por europeus nas Américas: as decisões d’além mar que definiram
as raízes do Brasil. Do capítulo onze, “Quilombo dos Palmares”, ao
quinze, “Oh Minas Gerais”, a Colônia se torna Império e, em seguida,
proclama-se independente de Portugal – mas o que muda efetivamente se os
alicerces profundos não se alteraram? A “Brava gente brasileira” (capítulo
dezesseis) permanece regida por latifundiários, escravocratas, generais,
grandes proprietários que, mesmo com a Proclamação da República, mantêm o povo
excluído de usufruir das riquezas brasileiras. A eleição do “Presidente bossa
nova” (capítulo vinte) parecia um anúncio de progresso e superação das forças
retrógradas que freavam o país; porém, o sequestro da democracia, com a
instalação da Ditadura Militar, obscurece, mais uma vez, o Sol de Pindorama.
Anos de chumbo se seguem, mas não calam o grito sufocado: “Pra não dizer que
não falei de flores”, “É proibido proibir” e “Vai passar”, três últimos
capítulos, deixam um gosto de esperança, florescido ali no passado; por fim, Dissonâncias
e dissabores nos propõe pensar o Brasil até 2019, quando este livro foi
escrito por Pedro de Lima, e vislumbramos, no presente, um futuro impreciso e
aberto, como num barco a navegar.
JOANA BRITO DE LIMA SILVA é pós-doutoranda no PPGFIL-UFJF