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Joana Brito de Lima Silva - 121 - Abril de 2022
Indigesta e saborosa história do Brasil
Foto da capa do livro Baião de dois: sons e sabores do Brasil
Baião de dois: sons e sabores do Brasil
Autor: Pedro de Lima
Editora: Confraria do Vento - 352 páginas
Foto do(a) autor(a) Joana Brito de Lima Silva

Baião de dois: sons e sabores do Brasil nos convida a um banquete que alimenta nossa fome de saber. O autor, Pedro de Lima, escreve como um exímio cozinheiro, temperando cada capítulo também com ilustrações: xilogravuras feitas por ele mesmo, que retratam os temas trabalhados no livro. Trata-se de uma receita original: doses de história, práticas alimentares e obras musicais. Assim, as navegações portuguesas que resultaram não no descobrimento – pois nada estava encoberto para quem já habitava aqui – mas na invasão e exploração dessas terras, promovem os primeiros encontros culinários: as galinhas, a farinha de trigo, as especiarias, vinhos e azeites, trazidos nas caravelas, combinam-se à mandioca e aos feijões cultivados pelos nativos de Pindorama. E, a partir do plantio de cana-de-açúcar, mais um ingrediente incrementa o conflito já instaurado na colônia: a escravidão. Negros africanos, indígenas e portugueses convivem, em posições desiguais, no mesmo território; então, a colonização se intensifica e inaugura novas iguarias brasileiras, como os doces feitos com amendoim e as cachaças. Servem-se, ainda, neste banquete, temas como a curiosa origem da feijoada, as moquecas, a carne seca, o vatapá, a tapioca, a bebida feita do guaraná, o pão de queijo com cafezinho e, claro, o baião-de-dois. São sabores criados juntamente aos dissabores de impactos sociais e ambientais da ocupação territorial, da violência de Estado, colonial, imperial e republicana. A acidez e a indigestão são inevitáveis, mas é num ritmo palatável que Pedro de Lima conta-nos histórias sobre o encontro de culinárias diversas e o amargo desencontro entre elas: o massacre dos povos nativos, a exploração degradante dos escravos, e a consequente formação da sociedade brasileira, forjada sobre as ruínas de sucessivos golpes políticos e de ciclos econômicos variados. Estes, podem ser contados sem lirismo algum: extrativismo, cana-de-açúcar, gado, algodão, borracha, mineração, cafeicultura, industrialização – mas quando são evocados em canções e tradições alimentares expressam mais do que uma abstrata linearidade histórica. Pois, apesar dos pesares, tais encontros que formaram e fazem o Brasil, criam beleza através de ritmos próprios: samba, forró, bossa nova, tropicalismo, rock-nacional, músicas de protesto dos festivais, canções de folclore e festejos populares. E nesses ritmos, o velho provérbio se confirma: quem canta seus males espanta – e não faltam males assolando Pindorama, a antiga e edílica terra sem males, outrora celebrada pelas etnias nativas. Séculos de ocupação e desenvolvimento revelam que a criatividade artística é uma vocação da cultura brasileira. Nossas composições encantam, mas a ambiguidade presente em algumas canções não passa despercebida pelo autor: a cobiça masculina sobre os corpos de mulheres (sobretudo negras e indígenas), o racismo (racial e estrutural) disfarçado em piadas sem graça alguma, o ressentimento das elites em relação aos portugueses, são preconceitos reveladores. Ainda, Baião de dois não é (e nem se propõe a ser) uma obra estritamente acadêmica – e esta decisão estilística nos permite embarcar numa leitura leve e enriquecedora: basta seguir o roteiro traçado pelo autor e se deixar navegar. E se toda análise histórica é feita a partir de uma perspectiva situada na história, este pressuposto retrata bem o ponto de vista adotado por Pedro de Lima. Na introdução o autor situa a obra em termos de objetivos, temáticas e, indiretamente, indica a metodologia e os referenciais. Nos primeiros dez capítulos – de “Navegar é preciso” a “Cana de Engenho” – percorremos a colonização protagonizada por europeus nas Américas: as decisões d’além mar que definiram as raízes do Brasil. Do capítulo onze, “Quilombo dos Palmares”, ao quinze, “Oh Minas Gerais”, a Colônia se torna Império e, em seguida, proclama-se independente de Portugal – mas o que muda efetivamente se os alicerces profundos não se alteraram? A “Brava gente brasileira” (capítulo dezesseis) permanece regida por latifundiários, escravocratas, generais, grandes proprietários que, mesmo com a Proclamação da República, mantêm o povo excluído de usufruir das riquezas brasileiras. A eleição do “Presidente bossa nova” (capítulo vinte) parecia um anúncio de progresso e superação das forças retrógradas que freavam o país; porém, o sequestro da democracia, com a instalação da Ditadura Militar, obscurece, mais uma vez, o Sol de Pindorama. Anos de chumbo se seguem, mas não calam o grito sufocado: “Pra não dizer que não falei de flores”, “É proibido proibir” e “Vai passar”, três últimos capítulos, deixam um gosto de esperança, florescido ali no passado; por fim, Dissonâncias e dissabores nos propõe pensar o Brasil até 2019, quando este livro foi escrito por Pedro de Lima, e vislumbramos, no presente, um futuro impreciso e aberto, como num barco a navegar.

JOANA BRITO DE LIMA SILVA é pós-doutoranda no PPGFIL-UFJF


Joana Brito de Lima Silva
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