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Marco Antonio Sousa Alves - 121 - Abril de 2022
Homenagem a Roberto Machado
Filosofar à sombra de gigantes
Foto da capa do livro Impressões de Michel Foucault
Impressões de Michel Foucault
Autor: Roberto Machado
Editora: N-1 Edições - 240 páginas
Foto do(a) autor(a) Marco Antonio Sousa Alves

Em breve completará um ano que Roberto Machado nos deixou. A foto acima, na qual apareço ao seu lado, é de 4 de abril de 2018, quando tive a oportunidade de debater, na FAFICH/UFMG, seu último livro, Impressões de Michel Foucault, lançado no ano anterior pela editora n-1. Após o evento, em um café em Belo Horizonte, ele disse ter gostado muito de minha leitura e pediu que a publicasse na forma de uma resenha. Prometi que o faria, mas me deixei consumir por outros afazeres e adiei demais esse trabalho. Infelizmente. Esse texto é, em alguma medida, o pagamento dessa promessa, ainda que tardiamente, além de uma singela homenagem. Mais uma, entre as muitas que recebeu, merecidamente.

            Impressões de Michel Foucault não é propriamente um livro sobre Foucault. Pelo menos não diretamente ou do modo como tradicionalmente abordamos um autor. Não é um comentário de sua obra. Nem uma biografia do indivíduo. São impressões. Embora Foucault atravesse todo o texto, o que está em primeiro plano é a narração de uma experiência pessoal, do Roberto Machado. Trata-se de uma alterbiografia: a reconstituição de uma vida pela intermediação do discurso de outro. A voz de Foucault é interposta para realizar o exercício do registro da própria experiência.

            Nesse sentido, o que encontramos no livro de Roberto Machado é único. Sua pretensão não foi produzir uma biografia, como fez Daniel Defert, ao preparar a cronologia dos Ditos e escritos[1], ou Didier Eribon em Michel Foucault: uma biografia, publicado originalmente em 1989, que “se esforça para restabelecer os fatos históricos em contraposição a lendas sedimentadas”.[2] Também não se trata de um mero relato de seus encontros com Foucault, como vemos em algumas obras voltadas para as cinco visitas do filósofo francês ao Brasil entre 1965 e 1976 (muitas delas na companhia do próprio Roberto Machado).[3]

Estamos mais próximos da experiência literária, de relatos de amigos como Hervé Guibert[4] ou Mathieu Lindon[5], que apontam, de maneiras diferentes, para Foucault como alguém capaz de produzir mudanças, de gerar um efeito existencial perturbador, mudando o rumo das coisas. Mas Roberto Machado vai além e confere mais profundidade, conciliando o trabalho literário com o filosófico. Estamos, sem dúvida, no domínio da ficção, da literatura, mas sem deixar de estar, ao mesmo tempo, no campo da experiência de pensamento, do gesto filosófico.[6] Diferentemente dos outros dois escritores, Roberto Machado foi um profundo conhecedor da obra de Foucault, responsável por algumas traduções e por diversos trabalhos acadêmicos importantes sobre ou a partir dele.

O livro está entre reflexão e testemunho, imaginação e memória. A opção por uma escrita menos acadêmica, que narra acontecimentos simples, gestos, cenas cotidianas dos mais de dez anos de convivência, permite tratar Foucault não apenas como um autor, um filósofo, mas também como uma pessoa com suas manias, com seu jeito de ser, com seu riso e seu humor. Vida e pensamento se misturam.[7] O debate teórico, sobre o impacto das ideias de Foucault, e o testemunho, o exemplo e os traços da pessoa que foi Foucault, estão sempre relacionados com as transformações vivenciadas pelo narrador. Como revela Roberto Machado: “As ideias de Michel Foucault apontaram um caminho importante para meus estudos. E ainda mais do que por seu pensamento, fiquei fascinado com o seu jeito, sua maneira de ser. Tinha uma simplicidade difícil de encontrar. Exibia a força das pessoas livres. Não lutava por reconhecimento. Não se comportava como mestre” (p. 95).

Talvez a impressão mais forte esteja resumida nesta frase: “Foucault foi um filósofo livre” (p. 52). Roberto Machado revela como desagradava a Foucault a posição institucional que ocupava e como ele invejava a plena liberdade de Nietzsche e sua capacidade de multiplicar gestos filosóficos. Além disso, Foucault revelava uma incrível capacidade de se transformar continuamente. Afinal, “cobra que não perde a pele morre” (p. 43). Segundo Roberto Machado: “Impressionava não só a originalidade de seu pensamento, mas também como Foucault se desapegava facilmente do passado. [...] Essa foi uma das lições aprendidas de imediato com Foucault, que o convívio posterior só fez intensificar” (p. 39-40). Foucault não se deixava fixar, estagnar, assumindo sempre novos desafios e demonstrando um enorme desprendimento, além de uma grande capacidade de rir de si mesmo. Por fim, Foucault também dava exemplo da afirmação de sua liberdade nas lutas de seu tempo, em seu engajamento político e na coragem que demonstrou em diversas ocasiões, inclusive quando esteve no Brasil no período mais duro da ditadura militar.

Tudo isso marcou profundamente Roberto Machado, de uma maneira que ele nem sabe ao certo explicar. Em determinado momento, ele confessa que “é difícil saber o motivo pelo qual somos marcados por determinados pensadores em detrimento de outros” (p. 96). De fato, o contato com a filosofia, quando vivida intensamente, é marcado por encontros dessa ordem, por seduções e arrebatamentos, por ideias que mexem conosco e mudam radicalmente nosso modo de ser e de pensar. É desse tipo de impressão que Impressões de Michel Foucault está tratando. “Impressão” no duplo sentido do termo: um sentimento ou uma sensação impressa na memória (dando forma a um gênero literário próximo da crônica ou do diário), mas também uma marca, um vestígio ou uma forte influência moral ou intelectual.

Se, por um lado, uma vivência assim é prazerosa e até vertiginosa, não deixa de ser, por outro lado, algo intimidador, especialmente quando temos a oportunidade de conviver com quem é responsável por tal transformação. No livro, Roberto Machado confessa, várias vezes, seu receio de estar escondido atrás de um grande nome, sem se mostrar e sem pensar por conta própria. “Terei sido um apóstolo?”, ele pergunta (p. 104). Esse sentimento parece que o assombrava: o medo de não estar à altura, de não ser capaz de nada mais do que realizar comentários, adaptações ou aplicações daquilo que a genialidade dos grandes filósofos, como Foucault, produziu. A opção pela escrita literária talvez seja uma estratégia para caminhar em uma direção mais livre, ousada, para além de seus mestres.

            O próprio Foucault instigava Roberto Machado a ser mais livre em suas investigações. No livro, encontramos vários relatos nesse sentido, de como Foucault desejava que as pessoas se servissem de suas ideias livremente, que fossem além e desenvolvessem um pensamento próprio. Ele desestimulava Roberto Machado a comentar seus livros e o incentivava a colocar novas questões, como a pesquisa sobre a medicina social e a psiquiatria no Brasil.[8] Embora pareça concordar com Foucault, Roberto Machado não deixou de produzir uma tese sobre a trajetória da arqueologia em Michel Foucault.[9] Mas a vontade de não ficar simplesmente repetindo o pensamento dos grandes filósofos é claramente expressa.[10] Até mesmo a posição de “utilizador de Foucault” é posteriormente ampliada por Roberto Machado, que imprime então um rumo diferente às suas pesquisas, com novos temas fortemente inspirados em Nietzsche e Deleuze. Aliás, o próprio Deleuze, em uma entrevista, resume esse tipo de relação com Foucault:  “Quando as pessoas seguem Foucault, quando têm paixão por ele, é porque têm algo a fazer com ele, em seu próprio trabalho, na sua existência autônoma. Não é apenas uma questão de compreensão ou de acordo intelectuais, mas de intensidade, de ressonância, de acorde musical”.[11]

Creio que o livro do Roberto Machado traz um testemunho desse tipo de ressonância, da utilização de suas “armas”, mas também um relato de sua amizade com Foucault, que o afetou de maneira profunda e ofereceu ferramentas valiosas para suas próprias experiências de pensamento. O livro narra uma autêntica “experiência”, ou seja, algo do qual saímos nós mesmos transformados. Roberto Machado reflete, basicamente, sobre o impacto que Foucault (suas ideias, seu exemplo, sua pessoa) teve sobre sua maneira de pensar e de viver. Isso não significa que a relação entre eles tenha sido de mera admiração ou fascínio, pois também foi marcada por desencontros e divergências. O livro traz um relato sincero e honesto de uma trajetória intelectual e pessoal, que foi decisivamente influenciada por Foucault, com seus percalços e inseguranças. No centro dessa reflexão está a relação que estabelecemos com alguém que nos inspira, nos transforma e, também, nos intimida.

Uma questão, no fundo, move o livro: como filosofar à sombra de gigantes? Em suma, como beber dos grandes pensadores sem ficar eternamente preso a eles? Como não ser completamente arrastado pela força de suas ideias ou de seus exemplos? Como se emancipar dos mestres e ser capaz de pensar por conta própria? Estamos à altura dessa tarefa? Afinal de contas, como deixar de ser um mero apóstolo de alguém? Como evitar esse apagamento de si (e do próprio pensamento) diante de construções tão imponentes? Como enfrentar isso e dar forma à ousadia de pensar? Creio que o livro do Roberto Machado nos dá um belíssimo exemplo disso.

 

MARCO ANTÔNIO SOUSA ALVES é professor de Teoria e Filosofia do Direito da UFMG

 

 



[1] FOUCAULT, Michel. Problematização do sujeito: psicologia, psiquiatria e psicanálise (Coleção Ditos & Escritos I). Tradução de Vera Lúcia Avelar Ribeiro. Organização de Manoel Barros da Motta. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1999, p. 1-64.

[2] ERIBON, Didier. Michel Foucault (1926-1984). Tradução de Hildegard Feist. São Paulo: Companhia das Letras, 1990, p. 13.

[3] Ver, nesse sentido, Ensaios sobre Michel Foucault no Brasil: presença, efeitos, ressonâncias, de Heliana de Barros Conde Rodrigues (Rio de Janeiro: Lamparina, 2016), e Michel Foucault no Brasil, organizado por Ana Kiffer, Francisco de Guimaraens, Maurício Rocha e Paulo Fernando Carneiro de Andrade (Rio de Janeiro: PUC-Rio, 2015).

[4] Hervé Guibert foi um escritor, amigo íntimo de Foucault, que lançou em 1990, um ano antes de sua morte, uma obra que tem a forma de um diário com as confissões de um doente terminal de AIDS. Foucault aparece no livro no personagem Muzil, marcado pela inteligência, pela generosidade, pelo companheirismo e pelo desejo de poder viver com mais liberdade sua sexualidade (cf. GUIBERT, Hervé. Para o amigo que não me salvou a vida. Tradução de Mariza Campos da Paz. 2ª ed. Rio de Janeiro: José Olympio, 1995).

[5] Mathieu Lindon publicou em 2011 um relato pessoal de sua relação com Foucault. Trata-se da amizade de um jovem escritor de pouco mais de 20 anos, filho de Jerôme Lindon (diretor da Editions de Minuit), com o já famoso e cinquentenário filósofo Michel Foucault, com destaque para as experiências ligadas ao uso de LSD. Em seu livro, fica evidente a aura que cercava Foucault e seu apartamento, o encantamento que ele produzia nesses jovens, assim como o bom humor e o zelo pelas amizades (cf. LINDON, Mathieu. O que amar quer dizer. Tradução de Marília Garcia. São Paulo: Cosac & Naify, 2014).

[6] Roberto Machado dizia ter interesse em desenvolver textos mais literários e, aparentemente, a aposentaria ofereceu a ele um momento mais oportuno para esse tipo de experiência. Anteriormente, ele já havia investigado conceitualmente a relação entre filosofia e literatura a partir de Foucault (cf. MACHDO, Roberto. Foucault, a filosofia e a literatura. Rio de Janeiro: Zahar, 1999). E os últimos trabalhos dele claramente se dirigem para o domínio da estética, explorando a música, a pintura e a literatura (cf. MACHADO, Roberto. O nascimento do trágico: de Schiller a Nietzsche. Rio de Janeiro: Zahar, 2006; MACHADO, Roberto. Deleuze, a arte e a filosofia. Rio de Janeiro: Zahar, 2009; soma-se ainda o ensaio inédito intitulado “Proust e as artes”, que deve ser publicado em breve pela editora Todavia).

[7] Nesse sentido, Ernani Chaves vê no livro um “trabalho de memória” e a “história de uma amizade”, ressaltando sua diferença em relação a um trabalho acadêmico (“uma narrativa objetiva, distanciada, precisa e exata, cuja matéria seria apenas a obra”) e o fato de que “a compreensão do pensamento, da obra [...] também se alimenta das impressões afetivas, tornando-se inseparáveis delas” (CHAVES, Ernani. “Impressões de Michel Foucault”, de Roberto Machado: o trabalho de Memória. Revista Caliban, 8 ago. 2017. Disponível em: https://revistacaliban.net/impress%C3%B5es-de-michel-foucault-de-roberto-machado-o-trabalho-de-mem%C3%B3ria-8e7692d21ed7.

[8] Cf. MACHADO, Roberto; LOUREIRO, Ângela; LUZ, Rogério; MURICY, Kátia. Danação da norma: a medicina social e constituição da psiquiatria no Brasil. Rio de Janeiro: Edições Graal, 1978.

[9] Cf. MACHADO, Roberto. Ciência e saber: a trajetória da arqueologia de Michel Foucault. Rio de Janeiro: Graal, 1990.

[10] Roberto Machado destaca esse ponto também em uma entrevista concedida pouco antes da publicação do livro, na qual revela: “O que motivava minha relação com Foucault era o desejo de fazer alguma coisa a partir de seu pensamento, de usar o instrumental filosófico, ou histórico-filosófico, desenvolvido por ele para produzir um conhecimento novo” (MISSE, Michel. Impressões de Foucault: entrevista com Roberto Machado. Sociologia & Antropologia, vol. 7, n. 1, Rio de Janeiro, abril, 2017, p. 17-30, DOI:10.1590/2238-38752017V711, p. 21).

[11] DELEUZE, Gilles. Rachar as coisas, rachar as palavras. In: Conversações, 1972-1990. Tradução de Peter Pál Pelbart. São Paulo: Ed. 34, 1992, p. 108.


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