O livro Minas e horizontes do pensamento: escritos em homenagem a Ivan
Domingues foi lançado em live transmitida
pelo canal Memória Filosofia UFMG[1]
no dia 29 de outubro de 2021. Organizado por Anna Carozzi, Carlos Ratton,
Helder Carvalho e Jelson Oliveira, o livro conta com 25 artigos escritos por
pesquisadores e pesquisadoras nacionais e internacionais, precedidos por uma
entrevista com o autor, realizada por outros 10 colegas. Além disso, o texto
tem prefácio do prof. Marcelo Fernandes de Aquino, reitor da Unisinos e traz na
capa uma imagem das bordadeiras de Pirapora – MG, como é conhecida a família
Dumont. Trata-se de uma Festschrift,
gênero literário criado no século XX para homenagear personalidades de destaque
no meio acadêmico.
“Os nomes dos poetas populares deveriam estar
na boca do povo” vaticina o Padre Antônio Vieira em um dos seus versos mais
conhecidos, no qual lamenta o desconhecimento das grandiosas qualidades
daqueles dos quais toda criança, desde cedo, deveria “saber de cada um o nome
todo, se sentir satisfeito e orgulhoso” de tê-los como seus. Vieira celebra os
poetas e denuncia aquele que muitos apontam como uma espécie de vício
brasileiro: desconhecer, desvalorizar e até mesmo desdenhar de seus
intelectuais, artistas, cientistas e outros nomes de destaque, evidenciando que
o desdém iria avançar em outras direções e nos acompanhar até hoje. Tudo isso,
um pouco por não levar fé em si mesmo, um pouco por rebaixar-se frente à
cultura estrangeira, outro pouco por cultivar uma pretensa humildade de
botequim, o certo é que se aprende, desde logo, que o Brasil é só um país de
pés descalços. Nada mais. E com isso, perpetuamos nosso servilismo, nossas
desigualdades e nossas desavenças. Se, como diz Vieira, já na escola, “o aluno
deveria bater palma” para seus poetas, é verdade que nós também precisamos
aprender mais sobre a arte de apreciar e aclamar aqueles que, entre nós, o
merecem.
Tal obrigação se torna ainda mais evidente no
mundo acadêmico, terreno muitas vezes esterilizado pela vaidade ou, ao seu
inverso, pelo sentimento de nulidade e pelo conformismo. Não é raro
desenvolvermos o péssimo hábito de não ler nossos pares, de não os citar, não
os resenhar, desconhecer seus nomes e suas obras e dar-lhes de ombros. O vício,
nesse caso, passa de hábito a perversão e, aos poucos, apagamos as memórias (o
que quer dizer, os esforços e as contribuições) de nossos precursores ou as
reduzimos a minúsculos círculos. Em nível mais geral, o resultado é que a
Filosofia, como área, não por acaso, passa a sofrer de certa autodepreciação e
menoscabamento, cujos resultados são um rebaixamento de nosso trabalho, uma
subestimação do valor de nossos produtos e, no limite, das notas avaliativas de
nossos programas. Tudo corre para o mesmo fosso, afinal, não somos tão bons
quanto os gringos – esses sim, coroados diariamente com lauréis dourados.
A explicação do motivo há de tirar o sono dos
antropólogos. Talvez seja o pessimismo sobre nós mesmos, sobre o nosso
potencial, sobre o nosso futuro que, não raras vezes, contrasta com o otimismo
positivista de nosso lema maior, ordem e
progresso. Ou quem sabe esse sentimento da catástrofe iminente que
restaria, como resíduo, da excepcional animação de nossa gente, conforme
sugeriu, sobre nós, Clement Rosset no seu A
lógica do pior[2],
com um tom sarcástico: “sejamos felizes, tudo vai mal”. Talvez tudo não passe
de uma disforia pós-coito, como sugeriram outros. Pouco importa. O certo é que
há outra margem para ancorar. Há muitas resistências a esse ciclo vicioso.
Exemplo disso são hoje, na nossa área, a ascensão de filosofias escritas em
língua nativa sobre temas e problemas nacionais, como o pensamento indígena,
negro, feminino, gay etc. E isso tudo – ressalte-se – sem virar as costas para
o estrangeiro e para a tradição, cuja fonte é inesgotável, mas cujas ideias
precisam aterrar. Esse encontro é, cada vez mais, necessário, fértil e
vantajoso para todos.
A consideração desses pontos é sumamente
oportuna para a aquilatação do livro-homenagem a Ivan Domingues que ora vem a
lume pela Editora da Unisinos.
Desde que foi inventado, na Alemanha, no início do séc. XX, o costume da Festschrift tem sido compreendido como uma forma de romper com esses ocultamentos, bem como de vencer o nosso proverbial complexo de vira-latas, que vai junto com a predisposição de celebrar ou enaltecer tudo que vem do estrangeiro, paralelamente à de diminuir ou desdenhar tudo que é feito ou realizado em terras nacionais. Continuando com o gênero literário, também chamado de Mélanges em francês, o livro de homenagens ou de celebrações, traduz o melhor espírito de quem pretende reconhecer o trabalho e a contribuição de um mestre para determinada área de conhecimento, no passado, ao fazer 60 anos ou depois de ter-se aposentado, hoje não mais, com as pessoas vivendo mais e se aposentando mais tarde.
Ao fazê-lo, oferecendo ao mestre uma tal
honraria sem qualquer significado prático ou funcional, não se recorre apenas a
uma laudatio. Trata-se de bem mais: o homenageado oferece a chance
para que os homenageantes, de diferentes gerações, possam reconhecer a si mesmos e, revendo o
caminho trilhado por um dos seus pares, refletir sobre sua própria trajetória
intelectual e estabelecer ascendências e descendências na linha do tempo, cujo
outro nome é tradição. Com efeito, toda Festschrift é uma espécie
de pergunta sobre o que nós todos fazemos com nossas próprias vidas
intelectuais. Não que a homenagem ignore erros e equívocos próprios de qualquer
vida (mesmo as mais louváveis que, sendo vidas humanas, são marcadas pela
imperfeição). É que faz parte da homenagem, além do reconhecimento e da
honraria, o esforço do homenageante de colocar-se em diálogo em pé de
igualdade, olhar tête-a-tête e, como
ocorre nesses momentos, reconhecer-se a si mesmo no outro. Toda homenagem, por
isso, é um evento no qual o eu se
confronta consigo no rosto do outro,
traduzindo o que Levinas caracterizou como uma espécie de milagre. E isso só é
possível porque o outro apresenta-se,
quer dizer, constrói a sua vida colocando-se à prova, oferecendo-se ao
escrutínio e ao inescrupuloso olhar dos outros. Não seria essa, afinal, a sina
do intelectual: lançar suas ideias (papers,
artigos, livros...) em rio apinhado de piranhas? O que quer dizer (malgrado a
violência da metáfora), simplesmente, expor-se no teatro da vida, aquele mesmo
que Ortega y Gasset descreveu como uma tarefa da qual se deve sair de forma
minimamente decorosa. Sim, todo intelectual em seu engajamento nas coisas do intelecto
é um eu executivo ou um sujeito prático, exibindo-se como
magister ou pessoa pública diante de todos, oferecendo-se em radical
insegurança, cheio de hesitações, entregando-se ao inimigo que é o mundo, em
constante ocupação com ele, podendo errar e tudo terminar em um imenso
fracasso.
Toda Festschrift,
assim, é tanto uma desculpa ou escusa para as falhas ou os fracassos quanto um
modo para dizer que esse esforço valeu a pena. E, ainda, uma maneira de dizer que
o empenho e o denodo do homenageado, reconhecido pelos pares e que nele irão espelhar-se,
é uma espécie de seta em estradas sem mapas. Uma vida que merece ser homenageada é uma vida que merece ser vivida e, mais ainda, uma vida que
merece ser seguida, de alguma forma.
Não por acaso, todo livro desse tipo reúne colegas mais antigos, mas também os
seus sucessores, cuja vocação e trajetória traduzem a inspiração que o
homenageado ofereceu para sua própria forma de ler o mundo, seja concordando,
seja retorquindo o mestre (nesse nível de vida, já se sabe que o dissenso é uma
boa maneira de retribuir ao mestre).
Quando escreveu os textos que vieram a formar
a sua obra Homens em tempos sombrios,
Hannah Arendt teve essa atitude em relação às personalidades que lhe ocupavam o
coração, não lhes poupando louvores mas também censuras. Foi Arendt, aliás,
quem levou isso a máximo de potência, articulando as vidas de seus homenageados
com o tempo histórico que os afetou. Ela sabia que nenhuma vida tinha sido
vivida longe das circunstâncias políticas e morais de seu tempo. E aqueles,
como os nossos, são tempos sombrios. Mas é ali, no meio da escuridão, que
aquelas pessoas se desenterraram como luzes, como quem se puxa a si mesmo pelos
cabelos. Como reza o conhecido verso, a contribuição da luz talvez não seja
iluminar o escuro, mas revelar o seu tamanho.
Foi
também Arendt que escreveu, a propósito de Lessing, que “as homenagens nos dão
uma convincente lição de modéstia”, acrescentando que todo tipo de laudatio não é outra coisa que uma
espécie de gratidão em relação ao mundo, ou seja, às circunstâncias que
tornaram possível o aparecimento daquela luz. O gênio, afinal, como também
insistiu Nietzsche em Humano, demasiado
humano, é produto de seu tempo e, sobretudo, do trabalho que ele realizou
com a matéria de seu tempo.
Ora, é
um pouco dessas coisas que iremos encontrar nesse livro-homenagem a nosso
distinto colega: antes de tudo um reconhecimento ao mestre, pelo seu legado e
papel nos meios filosóficos nacionais, com interlocuções em diferentes
gerações, como se notará. Não se trata, contudo, de uma laudatio pura e
simples, menos ainda uma hagiofrafia, havendo nos escritos oferecidos em
tributo luz própria e distanciamento crítico, o que proporciona toda sorte de
aproximações, expansões e distanciamentos entre homenageantes e homenageado. É
precisamente isso que torna essa Festschrift um livro de consulta
(pesquisa) e fonte de aprendizagem (ensino), em um momento especial da história
da intelectualidade brasileira, cujo escrutínio foi especialmente caro a Ivan
Domingues, como mostra o seu livro sobre Filosofia no Brasil- Legados e perspectivas.
Lançado em live no dia 29 de outubro de 2021, com a participação de amigos/as,
familiares, estudantes, orientandos/as e colegas de trabalho, o livro, conforme
foi lembrado, conta com prefácio do professor Marcelo Aquino, Reitor da
Unisinos, cuja casa editorial assumiu-lhe a publicação. Além disso, o livro se
organiza em torno de seis eixos temáticos, simbolizadas pelos temas que
sustentam a vida intelectual do próprio homenageado: o problema do
conhecimento, a questão da tecnologia, as exigências éticas, a história da
filosofia, a filosofia no Brasil e a vida intelectual. Intercalados e
articulados entre si de maneira complementar, esses eixos temáticos ilustram
uma vida intelectual fecunda, como o leitor de pronto notará, com a ajuda dos
depoimentos e das análises dos colegas e amigos que convivem com ele ao longo
das décadas.
Com efeito, cada um dos textos reunidos na Festschrift – fato que os editores logo constataram à
medida que os iam recebendo – comprova que Ivan Domingues, como intelectual e
colega, está entre aqueles que mantiveram um vínculo honroso com o mundo, tanto
pelos dons pessoais que lhe são facilmente imputados e reconhecidos, quanto
pelas circunstâncias que lhe coube viver e que incluem, obviamente, os nomes
que agora lhe rendem tributo – além de tantos outros. Esse livro reflete essa
harmonia tensionada entre um homem (um intelectual) e o seu mundo (as
circunstâncias sobre nas quais se abasteceu o seu pensamento). No caso do Ivan,
esse pensamento o tornou universal, sendo também nacional. Desde suas primeiras
pesquisas, realizadas em terras além-mar, ele parece nunca ter perdido esse
vínculo terrenal ou, antes, local, devido às suas raízes neste canto do globo.
Escreveu sem sotaque, mas com vocabulário próprio, falando do Brasil com amor
pátrio – não esse, que está em voga agora, cego, intolerante e impudico, mas
aquele de Mário de Andrade que é “acaso de migrações”, em meio a um “sentimento
pachorrento” que ele irá constatar em suas viagens por diferentes pontos do
país e como tema permanente em suas pesquisas de etnografia e em suas obras de
ficção, como contista, rapsodo e poeta, culminando no seu genial Macunaíma,
em que vemos o espelho de nossa identidade fraturada, com o moderno preso ao
arcaico, inclusive São Paulo.
Descobrindo
o país como um lugar para ser feliz, como terra de imigrantes e de acolhimento,
mas que se viu ao longo dos séculos estorvado pelas heranças do escravismo
colonial, com a casa-grande & a senzala e suas iniquidades no centro da vida
nacional até hoje, Ivan tornou esse ideal prosaico – o ideal do bem-viver e a
busca da justiça – um motivo de pensamento e um desafio maior como intelectual.
É o que celebra o título do livro em sua homenagem, ao festejar seus 70 anos:
debruçado nessas minas como quem bebe
à fonte e mirando o horizonte como
quem toca o porvir, Ivan filosofou e, ao mesmo tempo, mostrou como se filosofa.
Em sua obra, ele refletiu sobre o que é fazer filosofia e, ao mesmo tempo, já o
fez. Esse “já o fez”, contudo, deveria ser entendido como uma espécie de
projeto: com vários livros publicados, atuando na UFMG ao longo das décadas e com
grande inserção nacional e ainda internacional, o homenageado soube, como
poucos, olhar para a história do pensamento (leia-se, história da filosofia; e
a filosofia no Brasil) e daí, como quem vê o antigo filósofo à beira do fogo
(ou da fonte), entender quais seriam, agora e depois, os problemas cruciais da
filosofia. Pensador de horizontes largos, como o antigo intelectual humanista
de velha e boa cepa, sua obra abarca vários campos disciplinares da filosofia, algo
que é possível reconhecer nas perguntas que orientam e resumem seu pensamento:
o que é pensar , o que é conhecer , o que é fazer e o que é viver [ética]. Com esses temas, o
pensamento abre-se ao horizonte próprio da filosofia que ele desenvolve a
partir do lugar onde pisa (Belo Horizonte),
conectando-se com o que está lá fora (a internacionalidade, a
transdisciplinaridade, os temas de fronteira). Como quem volta às próprias
minas para beber antigas águas, o livro reúne amigos e discípulos que relembram
fatos, discutem argumentos, reabastecem as energias e seguem adiante. É assim
que ele serve para a viagem: como quem olha o horizonte aberto, as estradas que
se desdobram em muitas possibilidades e riscos, o livro tem suas orientações, delineadas
a partir da vida e obra do homenageado. Seus seis eixos antes referidos (conhecimento,
tecnologia, ética, história da filosofia, filosofia no Brasil e vida
intelectual) expressam essa intenção de chegar às raízes do local e, no mesmo
passo, descortinar os horizontes das Minas da região metalúrgica das Montanhas,
bem como os Geraes da região do Cerrado ou, antes, dos Sertões de Guimarães
Rosa, de sorte que a partir do regional e do local possa se chegar ao universal
ou ao global. Quem sabe que tem porto, navega para mais longe. Quem sabe que
tem minas, singra por horizontes mais largos.
O título
do livro, por isso, é uma fórmula para evitar que a homenagem seja apenas uma
espécie de volta no tempo. O livro não é, de jeito nenhum, um regresso, nem um retrocesso.
Sua constatação é de alguém que, ao pensar, tem a sensação constante de começar
tudo de novo. O nome disso é filosofia
– um amor penetrante e nunca satisfeito do qual Ivan Domingues, com sua vida,
nos dá chance de conhecer e o livro, como monumento desse amor, nos deixa
experimentar. E se o amor do pensar destrói, como escreveu Arendt, a “força da
solidão” com o fundamento imprevisto da sociabilidade, esse amor não pode ser
descrito a não ser como uma tentativa de fazer morada ali, perto de fontes
caudalosas e extensos horizontes. É aí que sua vela há de clarear o tamanho da
escuridão que nos rodeia – e convoca – a todos.
JELSON OLIVEIRA é professor e coordenador do programa de pós-graduação em filosofia da PUC-PR
[1]
Disponível em: https://youtu.be/aG4qLES7esU
[2]
ROSSET, C. Lógica do pior. Rio de Janeiro: Espaço e Tempo, 1989, p. 7.