Para além dos usos que a teoria literária e o formalismo linguístico fazem das questões referentes à figura do autor ou à autoria, a noção, compreendida a partir de uma perspectiva genealógica, com seus diferentes estatutos históricos e simbólicos, torna-se tema central do funcionamento dos discursos, sejam eles tratados como problema filosófico, jurídico, histórico, literário, linguístico ou, até mesmo, bibliológico, nas suas duas acepções.
Fruto de um longo trabalho de pesquisa, que teve início com uma tese de doutorado em filosofia defendida em 2014 e premiada por diferentes instâncias, o livro Uma genealogia do autor: a emergência e o funcionamento da autoria moderna, do Prof. Marco Antônio Sousa Alves, depois de longa e ansiosa espera, é finalmente lançado pela Editora UFMG.
Ao se posicionar como um “utilizador” dos escritos diversos e fragmentados de Michel Foucault sobre a questão da autoria, Marco Antônio Sousa Alves – fiel à recomendação do filósofo francês expressa em um gesto utilitarista de apropriação do pensamento – leva adiante um projeto ambicioso, já anunciado na Ordem dos discursos, mas ainda por se realizar: o de analisar, na longa duração, a emergência do autor na modernidade.
O primeiro capítulo do livro, intitulado “Utilizando Foucault”, apresenta, quase exclusivamente, a missão de informar o leitor da recusa à condição-posição de comentador, expressando o desejo do autor de levar a cabo uma nova experiência de pensamento, guarnecida com os instrumentos foucaultianos. O primeiro deles, o mais célebre, é sem dúvida o expresso no conceito de função-autor, cujo funcionamento, em oposição explícita a qualquer tentativa de definição essencialista, é discutido no capítulo seguinte de forma circunstanciada através de três espaços relacionais: o discurso, o sujeito e o poder. Diante da imensa fortuna crítica e das inúmeras vias de apropriação do conceito (e, não raro, apenas do termo) incitadas desde a conferência “O que é um autor”, de 1969, Marco Antônio Sousa Alves, propõe uma ordem de análise, impõe limites ao excesso de discurso e prepara o terreno para a sua análise genealógica, que começa a ganhar forma no capítulo seguinte, dedicado à história da figura autoral.
Nesse momento, consciente da instabilidade das práticas de produção e circulação dos discursos, que regulam o estatuto do autor, e a despeito de sua condição mutável, Marco Antônio historiciza essa posição e propõe levar adiante a análise de uma figuração específica da função-autor no séc. XVIII, que emergiu na modernidade, traçando os termos para a sua abordagem genealógica, em um esforço consciente de generalização cujo escopo se constitui na abordagem histórico-filosófica. No capítulo que encerra a primeira parte da obra, intitulada “A autoria em questão”, de natureza mais propriamente conceitual e metodológica, os mecanismos do poder autoral são antes caracterizados como uma configuração complexa no interior da qual funciona a função-autor. Recusando a via de uma concepção puramente jurídica ou normativa, Marco Antônio se interessa pela disposição do poder, pelas estratégias empregadas para sustentar a posição-autor.
O projeto genealógico se concretiza efetivamente na segunda parte do livro, intitulada “A construção do autor moderno”. Dividida em três capítulos, que expressam as discussões metodológicas realizadas na primeira parte, a análise da emergência é realizada a partir de três modos de funcionamento dos discursos, cada um deles inscritos historicamente com a consciência do caráter instável dos elementos materiais próprios dos sistemas de produção dos textos, dos elementos de controle estabelecidos pela censura e dos aspectos mercadológicos que regulam a cultura escrita. O primeiro modo de funcionamento é caracterizado pela abertura das posições de autoridade na passagem entre o saber escolástico o saber renascentista (sécs. XIV-XV), o segundo é desenhado pela expansão inédita dos processos de circulação dos textos com o aparecimento da impressa e pela invenção de novos mecanismos de controle dos discursos (séc. XVI-XVII), o terceiro traz, finalmente, a figura do autor moderno, proprietário de sua obra no seio de transformações jurídicas, literárias, estéticas e mercadológicas. Marco Antônio Sousa Alves parece concretizar aqui – ao dar forma e realidade a uma análise matizada de cada uma dessas periodizações que compõem a sua genealogia – um projeto antigo, expresso por outros autores que se debruçaram sobre o tema, como os próprios Foucault e Chartier, mas que por diferentes razões não o levaram a cabo, talvez pela dimensão obrigatoriamente generalista.
No primeiro capítulo da segunda parte, a autoridade do autor é discutida, primeiramente, através de uma abordagem lexicográfica que circunscreve o uso do termo autor na modernidade. Em seguida – em um recuo cronológico deliberado, que parte da discussão sobre o estatuto do autor no seio do funcionamento discursivo próprio da escolástica, assim como das relações entre criação e autoridade divina – o capítulo retoma ainda parte da periodização (sécs. XIV-XV) proposta por Roger Chartier no seu ensaio “Figuras do autor”, que integra o A Ordem dos Livros, para identificar e analisar um momento fundamental da história dos regimes de distribuição dos discursos. Direcionando sua análise para o campo da materialidade dos textos, Marco Antônio Sousa Alves, também fiel aos ensinamentos de D. F. Mckenzie, para quem os discursos só existem nas suas realidades materiais – e se valendo de casos específicos desenvolvidos por pesquisadores de diferentes campos e de exemplos do jargão da história do livro – oferece ao leitor um panorama das transformações de ordem material e técnica que marcaram a regulação do mundo do escrito ainda antes do aparecimento da imprensa. Tal abertura, que não se limita ao campo exclusivamente discursivo, afeta sem dúvida seu projeto genealógico, que passa a integrar as formas de materialização do texto – na sua historicidade – para analisar a emergência e o funcionamento da autoria moderna. Com essa compreensão, e livre de qualquer determinismo tecnológico, a materialidade dos discursos incide sobre a autoridade dos textos.
Longe de se posicionar no campo historiográfico que exalta a grande revolução da cultura impressa, indicando os termos da discussão polêmica sobre o valor atribuído à passagem do manuscrito ao impresso, Marco Antônio Sousa Alves situa o segundo momento de inflexão do funcionamento dos discursos e da emergência do autor exatamente na consolidação da cultura impressa no Ocidente, entre os séculos XVI e XVII. Contudo, não nos enganemos, se, por um lado, é inegável a consolidação de um mercado livreiro que transforma radicalmente os espaços de distribuição dos discursos, por outro lado, e afastando-se da exaltação do “mito iluminista do progresso”, a expressão é do autor, sua análise vai no sentido da identificação das formas de limitação e de controle da massa discursiva que a cultura impressa coloca em circulação a partir do séc. XVI. Com essa consciência, a análise que, em um primeiro momento, evidencia as formas de proteção e consagração autoral – a partir do desenvolvimento e da institucionalização dos sistemas de privilégio e de mecenato, que passam a regular as publicações ao longo do Antigo Regime –, resvala na análise dos mecanismos de censura e da consequente afirmação do autor como transgressor, junto a outras personagens do universo de produção do impresso – editores, livreiros, mercadores ambulantes –, cujos crimes compunham a categoria do fait de lettres.
Em seu percurso genealógico, no último capítulo do livro, a figura do autor, como produtor de bens culturais, afirma-se finalmente no séc. XVIII; e à ordem da tradição se opõe e se impõe o indivíduo criador, detentor dos direitos morais e patrimoniais de sua obra. Ao encarar a questão, Marco Antônio Sousa Alves se volta, primeiramente, para a consolidação do mercado do livro no séc. XVIII, momento marcado pela emergência de um novo gênero literário, o romance, e de um novo regime estético dos discursos, que coloca em questão a longeva hierarquia de gêneros aristotélica e seus valores, sustentados, ao longo de séculos, pela noção de verossimilhança. Para além da identificação da emergência da figura do autor comercial, a expansão expressiva do mercado editorial europeu, que aparece a partir de exemplos que contemplam sobretudo o caso francês, leva Marco Antônio a se interessar pela própria figura do editor moderno, que é em seguida plenamente consolidada no séc. XIX, na era da segunda revolução do livro. É a partir deste contexto que a análise dedicada ao nascimento de direito de autor e ao copyright é desenvolvida, caracterizada respectivamente pelos casos inglês, francês e alemão. Finalmente, no seio do novo regime estético da arte de escrever, a figura do autor se afasta da legitimidade conferida pela tradição e pelo trabalho colaborativo para se afirmar no seio do ideal de singularidade, genialidade e originalidade, exaltado pelo romantismo. Para analisar essas transformações observadas no séc. XVIII, Marco Antônio se debruça sobre as mutações das concepções estéticas, nas quais a expressão se impõe à imitação.
Como o leitor poderá perceber, o alcance temático-conceitual do livro de Marco Antônio Sousa Alves vai muito além dos limites constituídos em torno da questão da autoria. A diversidade de elementos e a complexidade das realidades históricas analisadas, com todos os riscos oferecidos por uma abordagem generalista desta envergadura, fazem deste estudo crítico-genealógico um livro de rara erudição, no qual o leitor das humanidades, encontrará, sem dúvida, como quis o autor, uma experiência de pensamento.
ANA UTSCH é professora da Escola de Belas Artes da UFMG vinculada ao programa de Pós-Gradução em Letras: estudos literários – FALE|UFMG.