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Milton Meira do Nascimento - 123 - Fevereiro de 2023
ENSAIO - O estouro da boiada
O estouro da boiada de 8 de janeiro de 2023
Foto do(a) autor(a) Milton Meira do Nascimento

O que pretendo analisar aqui, sobre o que ocorreu no dia 8 de janeiro de 2023, é o perfil daquelas pessoas que participaram da invasão e destruição dos prédios dos 3 poderes em Brasília. Nossa perplexidade é a de como foi possível acontecer tudo aquilo. Aparentemente pareciam pessoas comuns. Poderia ser um vizinho nosso, um parente, e assim por diante. Como foram capazes de participar de tamanha destruição?

Para uma análise mais aprofundada deste episódio lamentável, seria bom revisitarmos alguns dos clássicos pensadores da psicologia social que se debruçaram sobre os movimentos de massa no início do aparecimento das multidões no cenário social e político. Mas não é nosso propósito voltar a todos eles aqui, o que nos demandaria uma análise bastante longa e exaustiva. De qualquer modo, é bom lembrar que temos urgência em voltar a analisar com um pouco mais de descuidado o fenômeno das manifestações de massa e nos indagarmos sobre o perfil dos seus membros.

Retomemos tão somente o clássico de 1930, La Rebellion de las Masas, de José Ortega Y Gasset  (1883-1955) (Ciudad de México, La Guillotina, 2010) que nos chamava a atenção para um fenômeno que começava a preocupá-lo bastante, que era o aparecimento do homem-massa, aquele que estava presente em toda parte, preenchia todos os lugares e afirmava: “O homem-massa é um tipo de homem feito de pressa, montado tão somente numas quantas e pobres abstrações e que, por isso mesmo, é idêntico  em qualquer parte da Europa. A ele se deve o triste espetáculo de asfixiante monotonia que vai tomando a vida em todo o continente. Esse homem-massa é o homem previamente despojado de sua própria história, sem entranhas de passado e, por isso mesmo, dócil a todas as disciplinas chamadas “internacionais”. Mais do que um homem, é apenas uma carcaça de homem constituído por meros idola fori, carece de um “dentro”, de uma intimidade sua, inexorável e inalienável, de um eu que não se possa revogar. Daí estar sempre em disponibilidade para fingir ser qualquer coisa. Tem só apetites, crê que só tem direitos e não crê que tem obrigações: é o homem sem nobreza que obriga – sine nobilitate – snob”.

Pois bem, esse esnobe de poucas abstrações só possui apenas idola fori, ídolos do mercado ou da feira, isto é, falsas ideias, as quais, segundo Francis Bacon, nos vêm do mau uso da linguagem e que impede o intelecto do acesso à verdade e à ciência. Trata-se de incorreções no uso da linguagem e que provocam muita confusão, em vez da verdade e esclarecimento.

Desprovido de discernimento sobre todas as coisas, porque lhe faltam ideias claras, ele estará muito afeito a todas as novidades e aos modismos. Este é o homem comum que vemos em toda parte, que invade todos os espaços, de tal modo que temos a sensação de que todos os lugares estão lotados. Se ligarmos à falta de discernimento o esnobismo, temos aqui a pitada de sal para a arrogância e a sensação de que são todos melhores do que os demais.

O mesmo espanto que Ortega Y Gasset tinha a respeito do homem-massa reaparece após a experiência desastrosa do nazi-fascismo na Europa. A mesma pergunta nos fizemos. Como tudo isso pôde acontecer? E não faltam textos para demonstrar que todas aquelas barbaridades foram perpetradas por pessoas comuns, muito semelhantes às figuras de homens-massa, os quais, quando participantes de uma organização, ou, no meio da multidão, conseguem cometer barbaridades sem se darem contas das consequências de seus atos.

Segundo Hannah Arendt (Eichmann em Jerusalém, São Paulo, Companhia das Letras, 1999), foi o que ocorreu com Eichmann e tantos outros como ele, os quais não eram “monstros pervertidos”, mas “terrível e assustadoramente normais”, como bem anotou Adriano Correia em seu ótimo artigo de inauguração da parceria da ANPOF com o Estado da Arte do Jornal O Estado de São Paulo, de 30/06/2020.  Eichmann era um funcionário carreirista, de poucas ideias e muitos clichês, sem capacidade de reflexão e pouco conhecedor do sistema ao qual servia. Segundo ele mesmo, deveria ter sido condecorado e não condenado, pois foi um funcionário exemplar e cumpria todas as ordens que recebia sem questioná-las. Eis aí a peça da engrenagem que não falha quando acionada. Eis aí o homem-massa que nada questiona, mas que, ao fazer parte da estrutura organizacional, atua com muita eficiência e é capaz de cometer as maiores atrocidades.

Esta passagem inicial pela figura do homem-massa de Ortega Y Gasset e por outras que fizeram parte da estrutura do aparelho de estado nazista, dentre os quais o Eichmann tal como Hannah Arendt o apresentou, tem por objetivo avançarmos nossa reflexão sobre o tipo de homem que fez parte da invasão dos prédios dos 3 poderes em Brasília, os quais chamaremos de homens-manada, para ilustrar o seu modo de funcionamento para destruir as estruturas do sistema democrático brasileiro. Também os homens-manada são homens comuns, dotados de poucas ideias, cheios de idola fori, por isso mesmo, incapazes de desenvolverem um mínimo que seja de reflexão, cheios de certezas absolutas, das quais não arredam pé. Será que eles têm alguma ideia do que seja fazer política? Certamente não, pois nem mesmo sabem o que é a política. Dialogar com eles tornou-se impossível. Com ideias fixas, não conseguem raciocinar, não conseguem sequer fazer uma pergunta sobre o sentido de suas posições políticas, ideológicas ou religiosas. Para eles, que não possuem a menor noção do que seja a política, só faz sentido o confronto com aqueles que não pensam como eles. Aliás, possuem uma concepção estranha de política. Entram no jogo democrático para destruírem as estruturas democráticas, mas não possuem nenhum projeto estruturado para o que deverão fazer após a destruição do “inimigo”. Política para eles é confronto entre “inimigos”, entre o bem e o mal, este sempre do lado oposto ao deles. Política, para eles é como se fosse uma guerra religiosa sem tolerância. Com isso efetuam uma aproximação entre religião e política que pode levar ao fato de evitarem a todo custo o debate. Para eles, política, como religião, não se discute. O enclausuramento nas bolhas das redes sociais não lhes permite pensar o diferente, a diversidade. Por isso mesmo, as bolhas das redes são bem apropriadas a toda sorte de fundamentalismo, inclusive o religioso.

O homem-massa de Ortega Y Gasset era movido pelos modismos de todo tipo, pelos boatos e artigos escritos na grande imprensa jornalística. O homem-manada possui outros ingredientes, dentre os quais o mais poderoso é a quantidade de informações veiculadas pelas redes sociais. Alimentados de ódio e fake News pelos vaqueiros, os homens-manada se apresentam diariamente nos “cercadinhos” das redes sociais, prontos para as ordens que determinariam os alvos de um novo estouro. Assim como os homens-massa, os homens-manada não são pessoas sem cultura ou desprovidas de nenhum tipo de formação. Eles estão presentes em todas as classes e categorias sociais. O que nos faz pensar que não se trata de falta de conhecimentos que deveriam ter sido adquiridos nas escolas, mas de algo bem mais profundo. Ou então, seria o caso de questionarmos o que as nossas escolas estão fazendo com nossos alunos. Por que chegamos a esta situação? Talvez porque a “escola” dos tempos atuais não é mais o lugar de formação e aquisição de conhecimentos. Hoje o conhecimento e o falso conhecimento vêm de todos os lugares com o advento da informação pela Internet. O que, evidentemente, se impõe é uma redefinição do papel da escola e dos professores. Esta é uma outra questão crucial que merece uma longa discussão, mas não é o nosso caso de desenvolvê-la aqui.

Como os homens-manada são por assim dizer avessos a qualquer ideia que seja diferente da que defendem, como estão fora de qualquer tentativa de diálogo, é de se esperar também que estarão sempre prontos a novas investidas. Só estão aguardando as ordens dos vaqueiros.

Por onde a boiada estoura faz-se terra arrasada. A boiada já está passando pela Amazônia e só agora nos demos conta do estrago monumental com a crise do genocídio yanomami. A boiada passou nos palácios dos 3 poderes, e podemos aguardar que haverá novas investidas, ou novos estouros provocados. Não nos espantemos que tentem jogar a boiada para cima das universidades públicas, para cima das escolas, e de outras instituições que representem uma tentativa de recuperação dos espaços democráticos violentamente atacados pelos homens-manada. E não há muito do que se fazer nesses casos, porque o que temos é o uso da legislação, com as devidas punições aos culpados. O processo de aprendizagem dos homens-manada virá pelo recurso à legislação. E, a longo prazo, por intermédio de um trabalho que tenha como propósito repensar o papel das escolas no mundo contemporâneo.

Evidentemente, sempre houve pessoas com pouca capacidade de reflexão e excessivamente ingênuas a ponto de tomarem qualquer notícia como verdadeira. O que é espantoso é o crescimento vertiginoso do seu número com o aparecimento das redes sociais. O efeito manada vem crescendo assustadoramente. E, no futuro, teremos que lidar com ele e encontrar saídas para superá-lo, se não quisermos ser atropelados.

O uso da expressão homem-manada e homens-manada, neste artigo, poderá parecer extremamente forte para alguns e certamente o é. Não podemos nos esquecer que manada é incompatível com diversidade. A ideia de igualdade na manada faz tábula rasa das diferenças. Porque os vaqueiros, que comandaram a manada rumo aos palácios dos 3 poderes, não querem apenas ter uma pequena manada no seu cercadinho, mas sim que todos os brasileiros se transformem numa boiada e numa massa informe de manobra, o que, certamente, estava prestes a acontecer, caso não tivesse ocorrido a resistência que tornou possível a  eleição do atual presidente. Mas não sejamos ingênuos, enquanto a manada continuar sendo alimentada, outros estouros podem acontecer. Daí a necessidade de rapidez de atitudes e de raciocínio para a obtenção de mecanismos legais e institucionais que impeçam a ampliação da manada e a ocorrência de novos estouros.

Há muitas diferenças entre o homem-massa e o homem-manada e muitas aproximações também. O que os aproxima é o fato se serem todos homens rasos, medíocres. O homem-manada ganhou força com o aparecimento do homem-bolha das redes sociais. Este novo homem raso não consegue distinguir o verdadeiro do falso. Apega-se ao vazio como se fosse a única tábua de salvação. E o preenche com os alimentos que recebe diariamente em seu cercadinho.

MILTON MEIRA DO NASCIMENTO é professor aposentado do departamento de filosofia da USP.


Milton Meira do Nascimento
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