O que pretendo analisar aqui, sobre
o que ocorreu no dia 8 de janeiro de 2023, é o perfil daquelas pessoas que
participaram da invasão e destruição dos prédios dos 3 poderes em Brasília.
Nossa perplexidade é a de como foi possível acontecer tudo aquilo.
Aparentemente pareciam pessoas comuns. Poderia ser um vizinho nosso, um
parente, e assim por diante. Como foram capazes de participar de tamanha
destruição?
Para uma análise mais aprofundada
deste episódio lamentável, seria bom revisitarmos alguns dos clássicos
pensadores da psicologia social que se debruçaram sobre os movimentos de massa no
início do aparecimento das multidões no cenário social e político. Mas não é
nosso propósito voltar a todos eles aqui, o que nos demandaria uma análise
bastante longa e exaustiva. De qualquer modo, é bom lembrar que temos urgência
em voltar a analisar com um pouco mais de descuidado o fenômeno das
manifestações de massa e nos indagarmos sobre o perfil dos seus membros.
Retomemos tão somente o clássico de
1930, La Rebellion de las Masas, de José Ortega Y Gasset (1883-1955) (Ciudad de México, La Guillotina,
2010) que nos chamava a atenção para um fenômeno que começava a preocupá-lo
bastante, que era o aparecimento do homem-massa, aquele que estava presente em
toda parte, preenchia todos os lugares e afirmava: “O homem-massa é um tipo de
homem feito de pressa, montado tão somente numas quantas e pobres abstrações e
que, por isso mesmo, é idêntico em
qualquer parte da Europa. A ele se deve o triste espetáculo de asfixiante
monotonia que vai tomando a vida em todo o continente. Esse homem-massa é o homem
previamente despojado de sua própria história, sem entranhas de passado e, por
isso mesmo, dócil a todas as disciplinas chamadas “internacionais”. Mais do que
um homem, é apenas uma carcaça de homem constituído por meros idola fori,
carece de um “dentro”, de uma intimidade sua, inexorável e inalienável, de um
eu que não se possa revogar. Daí estar sempre em disponibilidade para fingir
ser qualquer coisa. Tem só apetites, crê que só tem direitos e não crê que tem
obrigações: é o homem sem nobreza que obriga – sine nobilitate – snob”.
Pois bem, esse esnobe de poucas
abstrações só possui apenas idola fori, ídolos do mercado ou da feira,
isto é, falsas ideias, as quais, segundo Francis Bacon, nos vêm do mau uso da
linguagem e que impede o intelecto do acesso à verdade e à ciência. Trata-se de
incorreções no uso da linguagem e que provocam muita confusão, em vez da
verdade e esclarecimento.
Desprovido de discernimento sobre
todas as coisas, porque lhe faltam ideias claras, ele estará muito afeito a
todas as novidades e aos modismos. Este é o homem comum que vemos em toda
parte, que invade todos os espaços, de tal modo que temos a sensação de que
todos os lugares estão lotados. Se ligarmos à falta de discernimento o
esnobismo, temos aqui a pitada de sal para a arrogância e a sensação de que são
todos melhores do que os demais.
O mesmo espanto que Ortega Y Gasset
tinha a respeito do homem-massa reaparece após a experiência desastrosa do
nazi-fascismo na Europa. A mesma pergunta nos fizemos. Como tudo isso pôde
acontecer? E não faltam textos para demonstrar que todas aquelas barbaridades
foram perpetradas por pessoas comuns, muito semelhantes às figuras de
homens-massa, os quais, quando participantes de uma organização, ou, no meio da
multidão, conseguem cometer barbaridades sem se darem contas das consequências
de seus atos.
Segundo Hannah Arendt (Eichmann
em Jerusalém, São Paulo, Companhia das Letras, 1999), foi o que ocorreu com
Eichmann e tantos outros como ele, os quais não eram “monstros pervertidos”,
mas “terrível e assustadoramente normais”, como bem anotou Adriano Correia em
seu ótimo artigo de inauguração da parceria da ANPOF com o Estado da Arte do
Jornal O Estado de São Paulo, de 30/06/2020. Eichmann era um funcionário carreirista, de
poucas ideias e muitos clichês, sem capacidade de reflexão e pouco conhecedor
do sistema ao qual servia. Segundo ele mesmo, deveria ter sido condecorado e
não condenado, pois foi um funcionário exemplar e cumpria todas as ordens que
recebia sem questioná-las. Eis aí a peça da engrenagem que não falha quando
acionada. Eis aí o homem-massa que nada questiona, mas que, ao fazer parte da
estrutura organizacional, atua com muita eficiência e é capaz de cometer as
maiores atrocidades.
Esta passagem inicial pela figura
do homem-massa de Ortega Y Gasset e por outras que fizeram parte da estrutura
do aparelho de estado nazista, dentre os quais o Eichmann tal como Hannah
Arendt o apresentou, tem por objetivo avançarmos nossa reflexão sobre o tipo de
homem que fez parte da invasão dos prédios dos 3 poderes em Brasília, os quais
chamaremos de homens-manada, para ilustrar o seu modo de funcionamento para
destruir as estruturas do sistema democrático brasileiro. Também os
homens-manada são homens comuns, dotados de poucas ideias, cheios de idola
fori, por isso mesmo, incapazes de desenvolverem um mínimo que seja de
reflexão, cheios de certezas absolutas, das quais não arredam pé. Será que eles
têm alguma ideia do que seja fazer política? Certamente não, pois nem mesmo sabem
o que é a política. Dialogar com eles tornou-se impossível. Com ideias fixas,
não conseguem raciocinar, não conseguem sequer fazer uma pergunta sobre o
sentido de suas posições políticas, ideológicas ou religiosas. Para eles, que
não possuem a menor noção do que seja a política, só faz sentido o confronto
com aqueles que não pensam como eles. Aliás, possuem uma concepção estranha de
política. Entram no jogo democrático para destruírem as estruturas
democráticas, mas não possuem nenhum projeto estruturado para o que deverão
fazer após a destruição do “inimigo”. Política para eles é confronto entre
“inimigos”, entre o bem e o mal, este sempre do lado oposto ao deles. Política,
para eles é como se fosse uma guerra religiosa sem tolerância. Com isso efetuam
uma aproximação entre religião e política que pode levar ao fato de evitarem a
todo custo o debate. Para eles, política, como religião, não se discute. O
enclausuramento nas bolhas das redes sociais não lhes permite pensar o diferente,
a diversidade. Por isso mesmo, as bolhas das redes são bem apropriadas a toda
sorte de fundamentalismo, inclusive o religioso.
O homem-massa de Ortega Y Gasset
era movido pelos modismos de todo tipo, pelos boatos e artigos escritos na
grande imprensa jornalística. O homem-manada possui outros ingredientes, dentre
os quais o mais poderoso é a quantidade de informações veiculadas pelas redes
sociais. Alimentados de ódio e fake News pelos vaqueiros, os homens-manada se
apresentam diariamente nos “cercadinhos” das redes sociais, prontos para as
ordens que determinariam os alvos de um novo estouro. Assim como os
homens-massa, os homens-manada não são pessoas sem cultura ou desprovidas de nenhum
tipo de formação. Eles estão presentes em todas as classes e categorias
sociais. O que nos faz pensar que não se trata de falta de conhecimentos que
deveriam ter sido adquiridos nas escolas, mas de algo bem mais profundo. Ou
então, seria o caso de questionarmos o que as nossas escolas estão fazendo com
nossos alunos. Por que chegamos a esta situação? Talvez porque a “escola” dos
tempos atuais não é mais o lugar de formação e aquisição de conhecimentos. Hoje
o conhecimento e o falso conhecimento vêm de todos os lugares com o advento da
informação pela Internet. O que, evidentemente, se impõe é uma redefinição do
papel da escola e dos professores. Esta é uma outra questão crucial que merece
uma longa discussão, mas não é o nosso caso de desenvolvê-la aqui.
Como os homens-manada são por assim
dizer avessos a qualquer ideia que seja diferente da que defendem, como estão
fora de qualquer tentativa de diálogo, é de se esperar também que estarão
sempre prontos a novas investidas. Só estão aguardando as ordens dos vaqueiros.
Por onde a boiada estoura faz-se
terra arrasada. A boiada já está passando pela Amazônia e só agora nos demos
conta do estrago monumental com a crise do genocídio yanomami. A boiada passou
nos palácios dos 3 poderes, e podemos aguardar que haverá novas investidas, ou
novos estouros provocados. Não nos espantemos que tentem jogar a boiada para
cima das universidades públicas, para cima das escolas, e de outras
instituições que representem uma tentativa de recuperação dos espaços
democráticos violentamente atacados pelos homens-manada. E não há muito do que
se fazer nesses casos, porque o que temos é o uso da legislação, com as devidas
punições aos culpados. O processo de aprendizagem dos homens-manada virá pelo
recurso à legislação. E, a longo prazo, por intermédio de um trabalho que tenha
como propósito repensar o papel das escolas no mundo contemporâneo.
Evidentemente, sempre houve pessoas
com pouca capacidade de reflexão e excessivamente ingênuas a ponto de tomarem
qualquer notícia como verdadeira. O que é espantoso é o crescimento vertiginoso
do seu número com o aparecimento das redes sociais. O efeito manada vem
crescendo assustadoramente. E, no futuro, teremos que lidar com ele e encontrar
saídas para superá-lo, se não quisermos ser atropelados.
O uso da expressão homem-manada e
homens-manada, neste artigo, poderá parecer extremamente forte para alguns e
certamente o é. Não podemos nos esquecer que manada é incompatível com
diversidade. A ideia de igualdade na manada faz tábula rasa das diferenças. Porque
os vaqueiros, que comandaram a manada rumo aos palácios dos 3 poderes, não
querem apenas ter uma pequena manada no seu cercadinho, mas sim que todos os
brasileiros se transformem numa boiada e numa massa informe de manobra, o que,
certamente, estava prestes a acontecer, caso não tivesse ocorrido a resistência
que tornou possível a eleição do atual
presidente. Mas não sejamos ingênuos, enquanto a manada continuar sendo
alimentada, outros estouros podem acontecer. Daí a necessidade de rapidez de
atitudes e de raciocínio para a obtenção de mecanismos legais e institucionais
que impeçam a ampliação da manada e a ocorrência de novos estouros.
Há muitas diferenças entre o
homem-massa e o homem-manada e muitas aproximações também. O que os aproxima é
o fato se serem todos homens rasos, medíocres. O homem-manada ganhou força com
o aparecimento do homem-bolha das redes sociais. Este novo homem raso não
consegue distinguir o verdadeiro do falso. Apega-se ao vazio como se fosse a
única tábua de salvação. E o preenche com os alimentos que recebe diariamente
em seu cercadinho.
MILTON MEIRA DO NASCIMENTO é
professor aposentado do departamento de filosofia da USP.