A exemplo de outros filósofos de sua geração, como Condillac e Rousseau, ou de literatos um pouco mais velhos, como Voltaire ou Gottsched, Hume inquietou-se com o declínio da oratória na Europa moderna. Ou, melhor seria dizer, indagou-se sobre as razões de seu quase total desparecimento.
No ensaio “Da eloquência”, publicado em 1741, ele escreve: “Nos tempos antigos, considerava-se que nenhuma obra de gênio requeria dotes e capacidades tão grandes quanto falar em público, e escritores eminentes declararam que até os talentos de um grande poeta ou filósofo seriam de natureza inferior aos requeridos para tal façanha” (p. 71). Alude, assim, a uma tópica da literatura antiga que andava em voga entre os modernos: a vinculação entre o florescimento da oratória e a forma de governo republicana ou democrática. Essa tópica é proposta, entre outros, por Tácito, no Diálogo dos oradores, e por Longino, no tratado Do sublime. Ambos viveram sob a autoridade dos imperadores romanos e contemplaram à distância, com uma pitada de saudosismo, os tempos em que o talento prosperava de mãos dadas com a liberdade política.
À época do ensaio em questão, Hume mal contava 30 anos, e era, à sua maneira, um cético aguerrido, não somente em matéria filosófica, mas também histórica. Sem contestar a vinculação apontada por Tácito e por Longino, autores que, de resto ele tinha em altíssima conta, restringe-se a apontar uma exceção moderna à regra antiga. “De todas as nações polidas e letradas, só a Inglaterra tem um governo popular ou admite em sua legislatura assembleias numerosas o bastante para que, assim se supõe, possam ser submetidas ao domínio da eloquência. Mas o que tem a Inglaterra para ostentar nessa matéria?”. (p. 72). Com efeito, nada; a nos fiarmos por Hume, que, em sua correspondência, não se cansa de depreciar a baixa qualidade da eloquência parlamentar britânica. Da Antiguidade à Modernidade, mudaram os tempos, a natureza humana permaneceu a mesma, mas as pessoas e os governos são outros. O que valia como regra geral para Tácito e Longino deixou de sê-lo para os analistas políticos da Europa do século XVIII atentos às novas circunstâncias. No fundo, é absurdo esperar por uma oratória tal como a antiga, em um mundo alheio às condições em que ela reluziu.
Tendo partido de um lugar-comum, Hume não hesita em multiplicar a alusão a outros tantos, ao longo desse pequeno, mas caudaloso ensaio. Na passagem citada, ele fala em assembleias “submetidas ao domínio da eloquência”. O que instaurava esse regime de submissão? A força da palavra, tal como ela aparece na elocução, registro supremo da linguagem verbal, governado por uma arte dificílima. Um pouco mais à frente, o ensaísta acrescenta: “quão absurdo não pareceria, em nossos oradores calmos e comedidos, o uso de uma figura como a nobre apóstrofe empregada por Demóstenes” para justificar “a malograda batalha de Queroneia”? (p. 73) As figuras são investidas de energia, quando enunciadas com a veemência necessária, requerida pelo assunto da oração. “Quem suportaria”, prossegue Hume, em pleno modo retórico, “uma figura tão forte e tão poética como a empregada por Cícero para descrever, nos termos mais trágicos, a crucificação de um cidadão romano”? (pp. 73-74). O sentido figurativo do verbo “suportar” (to support) é utilizado numa acepção tal que comporta a alusão ao significado literal de: aguentar uma carga, um peso, com a resistência do próprio corpo, mas com força suficiente para atirá-la ou lançá-la, para frente ou acima – no caso, jogá-la para uma assembleia atônita.
No momento da peroração, o orador é corpo em movimento, que age. Chegamos, assim, ao lugar-comum que nos interessa, cuja provável fonte é Cícero (Bruto, caps. 37-39). Nessa passagem, a discussão das figuras de linguagem (tropos) remete à das figuras de pensamento (askhmata), ou à capacidade que o grande orador tem de esquematizar suas ideias: “para Antônio, todas as ideias vinham em mente, cada qual em seu lugar e onde pudessem produzir mais efeito e ter mais valor” (cap. 37). “Não só essas qualidades havia em Antonio, mas ainda uma ação singular; se esta deve ser dividida em gesto e voz, o gesto lhe era não o que exprime as palavras, mas o que concorda com o pensamento” (cap. 38). Da concepção à expressão, passando pela enunciação, o orador se faz unidade, arrematada por uma “gravidade soberana” temperada por “urbanidade”, “graça”, “elegância” e “ausência de afetação” (cap. 38, 142). Por essa razão, o treino do orador incluía, como observa o mesmo Cícero, ainda no Bruto, os exercícios físicos, para que o corpo adquirisse uma força e uma agilidade condizentes com a da concepção.
Hume não espera que os parlamentares britânicos cultivem o corpo com exercícios atléticos. Ele sabe que esses homens não são os mesmos que realizam o serviço militar. As duas funções, outrora conjugadas, encontram-se agora separadas, num exemplo da divisão do trabalho que será comentado por seu amigo Smith no livro 5 da Riqueza das nações.
Para além do diagnóstico de época – hábito que, diga-se de passagem, Hume cultiva com parcimônia –, há, no entanto, algo ainda mais interessante: uma tese filosófica, que poderíamos resumir nos seguintes termos (pautando-nos pela seção I.4.6 do Tratado da natureza humana, dedicada à ideia de identidade pessoal). Essa ideia filosófica, de identidade pessoal, é uma ficção, que a imaginação produz, compondo, à revelia das impressões dos sentidos, totalidades empíricas – ditas “organismos” – que, no entanto, teriam de ser consideradas, a partir do caráter atomizado das percepções, como “agregados”, ou sistemas contingentes e variáveis ao sabor da experiência. Um indivíduo que pertença à espécie de animal dita humana nada mais é que uma sucessão de impressões desconexas que a memória liga umas às outras, compondo, com isso, a ideia de uma totalidade unificada e coerente.
Essa concepção esquizofrênica do “eu” tem, é certo, interesse considerável para a psicanálise, mas o que interessa a Hume é deslocar a ideia da unidade do eu da metafísica para a pragmática, ou, se quisermos, da psicologia racional para a “arte da composição”. Hume não utiliza esse termo. Se o emprego aqui, é porque permite reunir a arte oratória, tão louvada pelos antigos, numa mesma classe que o gênero de composição privilegiado pelos modernos, a arte de escrever. O orador, como vimos, se faz corpo diante de uma plateia que acompanha a sua ação, torna-se unidade provisória, que, com suas performances memoráveis, adquire aos poucos uma identidade. Hume faz questão de dizer: todos acudiam a Atenas para ver Demóstenes e a Roma para acompanhar Cícero, o caráter desses indivíduos era o efeito das suas realizações artísticas. Em nossos dias, ele acrescenta, ninguém pensaria em perder a hora do almoço com as tediosas intervenções realizadas diariamente pelos oradores na Casa dos Comuns, em Londres.
É preciso ler outros ensaios, como “Da simplicidade na arte de escrever” ou “Da tragédia” para se dar conta de que o talento moderno é empregado em outra parte. Todos admiram Molière e Racine, Addison e Pope, todos eles mestres da arte de escrever bem: “A arte de escrever com finura consiste, de acordo com o sr. Addison, em sentimentos que são naturais sem ser óbvios. Não pode haver definição mais justa e mais concisa dessa arte”. (“Da simplicidade e do refinamento na arte de escrever”, p. 157). Quem quisesse substituir a discrição da voz que se exprime na escrita pelo estrondo da antiga oratória cometeria uma inadequação que beira o grotesco.
Seria o escritor moderno um descarnado? Longe disso. Mudou a relação entre o corpo, a enunciação e a voz. O lugar da ação deslocou-se para o ato de escrever, complementado pelo da leitura (para Hume, um soletrar das palavras pela imaginação). O orador forte e ágil, que espera pelo efeito retumbante imediato de suas palavras, dá lugar ao escritor fino e preciso, que sabe esperar pelos efeitos silenciosos, mas não menos profundos, da sua arte.
Mas estaria enganado quem pensasse que Hume abandona sem mais a velha arte oratória. Se ele abre mão do gênero, é para recuperar e remodelar a sua doutrina, a arte retórica, tornando atuais os seus preceitos. No elogio citado da definição de Addison, ele a qualifica como “justa e concisa”, critérios ciceronianos que se aplicam às figuras de pensamento bem como às de linguagem, sem esquecermos a ação.
A própria ideia de uma diferença intrínseca entre a arte oratória e a arte de escrever, na relação com o corpo, é uma tópica herdada de Longino, que a desenvolve na célebre seção X, 1-2, em que cita um poema de Safo (“Parece-me igual aos deuses ser aquele que, diante de ti se senta...”, p. 60; ver na edição de Safo a trad., substancialmente diferente, à p. 142). Qual seria o interesse de Longino por essa passagem?
Como explica Jackie Pigeaud em sua lúcida introdução: “o concurso das paixões, Safo traz para um mesmo lugar, que não é mais o seu corpo, mas o corpo constituído do poema. Safo é capaz de fazer uma composição por eleição a partir de si mesma. Ela escolhe em si mesma seus próprios sentimentos, e os isola. O sublime está aí, na capacidade de se desprender de si e de constituir um outro corpo [...], de reduzir o número à unidade, articulando-o em um corpo vivo” (trad., p. 24). Reencontramos no poema de Safo a mesma unidade que Hume banira da percepção e, isto não surpreende, reintroduzira na abertura do livro II do Tratado, dedicado às paixões, quando a existência destas é referida a um “eu”. É que agora fica claro que essa unidade não é causa, mas efeito que resulta da atuação das paixões sobre os mesmos órgãos sensíveis que abalam a escritora Safo, a mesma que os controla no poema, no qual ela poderá, eventualmente, contemplar-se a si mesma com toda tranquilidade.
Essa experiência não é estranha a Hume, que, em sua autobiografia, “Minha própria vida”, escrita à beira da morte, reconhece que a “paixão governa” de sua existência foi a “fama literária”, enumerando, em seguida, os fracassos e os êxitos de sua carreira como escritor. Quando redigiu essa peça, Hume tinha a intenção de afixá-la à edição póstuma de seus escritos, logo na abertura, para que o leitor assim pudesse de saída identifica-lo, saber quem ele foi. Não um “eu” abstrato, mas um corpo, feito de músculos, nervos e ossos, que padeceu de uma paixão e tomou as medidas cabíveis para revertê-la em prol da construção de uma identidade pessoal.
Quanto a isso, a escrita não é muito diferente da oratória. Ambas, no fundo, são sublimes, propõem uma ideia de corpo que só tem sentido a partir do que ela permite pensar, retroativamente, como um efeito sensível. É porque as peças de Cícero ou de Safo realizam o propósito de criar, na imaginação do leitor, a ideia de um todo orgânico coerente, que concordamos que elas foram compostas por essas pessoas, às quais, inclusive, não hesitamos em atribuir uma identidade. O corpo como metáfora literária, a obra de arte como signo da fisiologia que a realiza enquanto tal. No sublime retórico, Hume parece encontrar a chave para a solução dos enigmas colocados pela filosofia.
PEDRO PAULO PIMENTA é professor de história da filosofia moderna na USP. Traduziu de Hume, entre outros, a História da Inglaterra (seleção; editora da Unesp, 2015) e Dissertação sobre as paixões (inclui a História natural da religião; editora Iluminuras, 2021).
Obras citadas ou mencionadas
Cícero, Brutus. Introdução, tradução e notas de José Seabra Filho. Belo Horizonte: Nova Acrópole, 2013.
Hume, A arte de escrever ensaio. Organização e tradução de Pedro Paulo Pimenta e Márcio Suzuki. São Paulo: Iluminuras, 2011.
Tratado da natureza humana. Tradução de Deborah Danowski. 2ª edição. São Paulo: Unesp, 2018.
Longino, Do sublime. Tradução de Filomena Hirata, introdução de Jackie Pigeaud. São Paulo: Martins Fontes, 1996.
Safo de Lesbos, Hino a Afrodite e outros poemas. Organização e tradução de Giuliana Argusa. São Paulo: Hedra, 2021.
Tácito, Diálogo dos oradores. Tradução de Antonio Martinez Resende e Júlia Batista Castilho de Avellar. Belo Horizonte: Autêntica, 2014.