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Paula Gabriela Mendes Lima - 123 - Fevereiro de 2023
ENSAIO
Há uma subjetividade política singular da mulher?
Foto do(a) autor(a) Paula Gabriela Mendes Lima

            Este ensaio é uma provocação para pensarmos sobre o lugar social da mulher como sujeito político. Adianto-lhes que não é uma resposta à indagação posta no título, mas uma reflexão sobre a pergunta em si. Quer-se pensar se há efetivamente algo de singular na construção da subjetividade da mulher que justifique a sua experiência política atual e qual é este algo. Esta questão nos leva a outras como se essa é uma pergunta forte dentro da filosofia política e da teoria política e por que é importante fazermos esta pergunta hoje.

            Os movimentos feministas apontam para a importância de dar visibilidade e voz às mulheres como agentes de ação política. Hoje temos 91 mulheres eleitas para o cargo de deputadas federais e, no estado de Minas Gerais, onde atuo, são 15 mulheres eleitas como deputadas estaduais. Esses são números que se destacam, ainda que não estejamos num cenário ideal. Fato, entretanto, é que há muito mais mulheres que fazem política nos seus cotidianos, nos seus grupos, nas suas comunidades, mas não exercem cargos públicos, políticos ou de autoridades. Há muitas que nem vislumbram a possibilidade de candidaturas; outras se candidatam, mas não chegam a ter votação suficiente para o exercício desses cargos. E há, ainda, mulheres que conseguem se eleger, mas têm muita dificuldade de estar no espaço público como autoridade. Algumas desistem pelo excesso de vulnerabilidade que esse lugar as coloca, outras adoecem e muitas não resistem à agressividade do modelo atual do nosso espaço político.

            Esses fatos parecem colocar a investigação sobre a subjetividade da mulher na política em destaque e explicitam que há algo do cotidiano da sociedade, algo estrutural, que, muitas vezes, não é tão evidente, mas obstaculiza permanentemente o gozo efetivo dos direitos políticos das mulheres. Ela não se manifesta apenas nos atos ilegais nos termos definidos pelo ordenamento jurídico, especialmente nos códigos eleitoral e penal, mas se manifesta, também, em condutas habitualmente vivenciadas e que são normalizadas. Condutas que violam, reduzem ou aniquilam a efetividade dos direitos de as mulheres votarem ou serem votadas, dos direitos políticos de participação e ação política no espaço público ou, ainda, que obstaculizam, negligenciam ou silenciam questões referentes à experiência feminina no espaço público.

            Há um fenômeno que parece entrar num espaço de sutileza ou do não dito, mas ele é real e pode ser pensando a partir da observação da construção da subjetividade da mulher, dando destaque à sua singularidade. Ele decorre da forma como a figura feminina é construída ao longo do seu processo histórico-social e como ela se constitui no seu processo de formação. Ele explicita o lugar de inferioridade, opressão e silenciamento da mulher ao longo da história da humanidade, bem como manifesta a constituição da mulher como o Outro na sua experiência de individuação. Para compreender melhor este fenômeno, é preciso apreender a experiência da mulher ao longo do tempo histórico, o que será apresentado de maneira breve.

            A história da mulher pode ser descrita aqui a partir do período da civilização da Grande Deusa, em que a figura feminina era sacralizada e associada à fertilidade da terra. É uma época descrita como um tempo de vida coletiva e observação dos ciclos naturais. As sociedades se organizavam de forma integrada no espaço natural e, Engels, em Origem da família, da propriedade privada e do Estado, sublinhou o fato de que nelas não existiam instituições classistas, as mulheres ocupavam uma posição relevante, gozando de grande liberdade e independência, em flagrante contraste com o papel subordinado e degradante que lhes destinou a sociedade de classes.

            Na Antiguidade Grega, inicia-se uma outra relação com a mulher, pois há uma nova organização social e política sendo instituída. E nela, é fundamental definir quem são os gregos. O grego é o ideal e sua identidade se construía em relação à diferenciação com os bárbaros e estrangeiros. Eles dividiam a sociedade em gregos/não gregos, em gregos/barbarum. O grego era o lado positivo, perfeito, localizado no centro da sociedade, eles representavam o ideal de povo educado com o seu idioma grego que lhe permitia acessar arte, ciência e vida política. Eles eram considerados inteligentes, fortes e cultos. Do outro lado, têm-se os bárbaros, o lado negativo, na periferia da sociedade, considerados pejorativamente. Eram simbolizados pelo barbarismo e pela animalidade, eram rudes. Além disso, bárbaros eram os antepassados primitivos que ainda eram muito ligados à physis, à natureza. O grego, que se compreendia pelo logos, era o presente. Cabe questionar onde está a mulher nesta operação? A mulher está no lado negativo, do não grego. A sua condição feminina a aproximava do barbarismo, da animalidade, da escravidão da reprodução, da conexão com a physis (animais, plantas e deuses). A sabedoria de algumas mulheres não era necessariamente ligada à linguagem racional. Elas não representam o lado positivo, da cultura, da ciência e da política.

            O processo de diferenciação gregos/bárbaros seguiu-se com o expansionismo, mas com outro paradigma. O lado grego deixa de ser representado pelo cidadão da pólis grega e a condição do lado positivo passa a ser reivindicada aos romanos. Neste período, os bárbaros são aqueles que não apreendiam a cultura romana e eram considerados preguiçosos e grosseiros. Assentia-se, entretanto, a possibilidade dessa condição ser transformada, o que é uma considerável mudança em relação à perspectiva grega. Abre-se, nesse contexto, a possibilidade de aperfeiçoamento da personalidade das mulheres para que elas recebam tratamentos humanos. E pode-se verificar neste início da Idade Média alternativas de mudanças para a situação das mulheres, ainda que se refiram a um grupo específico delas.

            Após esse período, têm-se novas diferenciações, conforme o contexto. O lado positivo passou por diversas representações simbólicas, caracterizando, por exemplo, o lado positivo do Imperador Romano e o lado divinitas, formado por um corpo místico com autofundação espiritual e política. Na alta Idade Média, o lado positivo focava-se numa comunidade de fiéis em que se incluía através do batismo. E o lado barbarum, negativo, simbolizava os bárbaros, os estrangeiros, os criminosos, os magos, os hereges, etc. Aqueles que, excluídos da condição de homem, não se submetiam à proteção jurídica de seus direitos, pois nem eram considerados sujeitos. 

            Pergunta-se, novamente, onde e como estavam as mulheres nessas operações da Idade Média. As mulheres que, no início desse período começam um processo de igualização decorrente de seu aperfeiçoamento e da sua possibilidade de aproximar da divinitas, reivindicam no final do medievo a condição de humanidade e de sujeito ocupante do lugar positivo das assimetrias sociais. Entretanto, o que se tem é que os homens eram definidos como seres mais próximos de Deus e mais abertos à perfectibilidade do que as mulheres. Elas tinham, em efeito, pouco espaço e eram consideradas seres mais decaídos.

Marca o período medieval, de um lado, o processo de cristianização dos contos de fadas, estruturas simbólicas que se tornam recursos linguísticos para se afirmar a condição feminina. Eles trazem recursos internos e mensagens que apresentam e invadem o contexto social e o inconsciente feminino, provando transformações e possibilidade de fantasias sobre o ser mulher. Os contos têm esse efeito social de fixar uma subordinação moral da mulher. Eles revelam uma forma de ver o mundo em que a mulher se caracteriza de determinada forma e utilizam um recurso em que a figura feminina está sempre num lugar de redenção e salvação de um homem. Nesse mesmo período, afirma Martha Robles, “criam-se fadas e criam-se bruxas”, referindo ao final do medievo em que se observa o lapso conhecido como caça às bruxas.

Nesse tempo, destaca-se a elaboração do Mallus Maleficarum (ou o famoso Martelo das Bruxas) pela Igreja que era, naquele momento, o vértice político e espiritual da sociedade, constituindo-se como fonte de fundação cultural, social e jurídica. Estava-se instituindo um sistema normatizador de condutas que determinou a bruxaria como crime sob o seu controle. No Mallus Maleficarum a mulher é representada como um objeto de intervenção do Estado e é definida como um ser conectado à natureza, à carne, ao sexo e ao prazer. Tem-se nele um arranjo entre os discursos jurídico, médico e teológico para fins de controle da mulher.

 Ele criminalizou, especialmente, as situações relacionadas à sexualidade da mulher, o que contribuiu tanto para um discurso negativo sobre a relação da mulher com o prazer quanto para a definição de comportamentos considerados padrões de feminilidade na modernidade como ser recatada, disciplina e contida. Esse silenciamento da vagina e a repressão da sexualidade feminina visa atingir o psicológico das mulheres fortemente e criar obstáculos para a construção da mulher como sujeito desejante. A mulher segue sendo, historicamente, objeto de desejo e não sujeito desse sujeito. Naomi Wolf descreve em seu livro Vagina, uma biografia pesquisas sobre a relação entre essa situação e dificuldade da mulher de falar em público, rebelar-se e até mesmo de se posicionar e de se afirmar como sujeito. Ela cita a mutilação genital feminina e as agressões sexuais nas guerras como uma estratégia de manter as mulheres silentes e inertes, evitando-se a formação de grupos fortes femininos de contra-ataque.

Além disso, as ofensas à mulher a partir de sua condição sexual são realizadas de forma simultâneas à criação de regras de feminilidade já citadas. Institui-se socialmente a figura da mulher ‘boa’, virgem, pura, recatadas, disciplinada, contida, etc. e, em contraste, institui-se a mulher má ou ingovernável, sexualizada, líder de movimentos de resistência, que falam alto e forte. E este é um dos fortes paradoxos ou ambiguidades que constitui a mulher em seu processo de formação.

Esse discurso cristianizado na Idade Média parece continuado, de certa forma, na modernidade pelo discurso da clínica, especialmente marcado por como médicos e psicanalistas veem e retratam a representação da mulher. E, em que pesem as críticas realizadas à leitura da mulher pela psicanálise, fato é que o discurso da clínica fortaleceu na modernidade o debate sobre o controle dos corpos femininos. Ao criar definições sobre a mulher a partir do discurso sobre a sexualidade, a clínica visa falar da regulação do corpo, de regimes de visibilidade, de definição de formas de alianças e círculos de afetos e desejos. E falar, também, de instituições, hierarquias, normas sociais e sujeições. O discurso clínico parece uma modalidade guiada pela economia, contribuindo para o discurso capitalista sobre o trabalho, a disciplina, a produção linear, muito bem regulada pela medicalização da vagina que, em regra, diminui o contato da mulher com a sua ciclicidade e com a sua libido e gozo. E é guiada pela política, pois traz bastantes normas de hierarquias de sujeição patriarcal, mantendo a mulher numa posição inferior ou sempre em movimento de uma sexualidade que é masculina.

Esse contexto histórico, especialmente criado pelo discurso masculino, é o acontecimento que justifica a inferioridade e submissão da mulher na sociedade. Criaram-se mitos, tabus menstruais, justificações das ações femininas apenas na natureza, no mistério e nada disseram sobre o erotismo e a sexualidade feminina. Códigos se estabeleceram ao longo do tempo contra elas e elas foram se constituindo concretamente como o Outro. Diz Simone de Beauvoir que “o certo é que hoje é muito difícil às mulheres assumirem concomitante sua condição de individuo autônomo e o seu destino feminino. (...) É, provavelmente, é mais confortável suportar uma escravidão do que trabalhar para se libertar.”. Essa situação da mulher ou do feminino não são imutáveis, mas ela é ainda mais reforçada pelo “fundo comum sobre o qual desenvolve toda a existência feminina singular”. No Segundo Tomo de O segundo Sexo, Beauvoir descreverá esse fundo comum, enunciando as ambiguidades do processo de formação do ser mulher. Ela expõe os processos de cada fase da vida como a infância, a juventude, a iniciação sexual, o casamento, a maternidade, a vida social e a velhice.

            Como afirma Simone de Beauvoir, isso tudo faz com que as mulheres sejam herdeiras de um pesado passado e que faça com que haja uma busca enorme delas para se forjar um novo futuro. Entretanto, o presente ainda é de a situação da mulher ser constituída a partir da ambiguidade, do silenciamento e da opressão, especialmente se pensarmos nos espaços públicos. Ela permanece no paradoxo de subsistir nas incertezas e indeterminações como um sujeito que, na maioria das situações e na sua efetividade, é objeto, bem como compreende-se como lado negativo do discurso político e jurídico dominante, de não homem, como um segundo sexo ou um sexo que não é sexo. Lado esse que parece fundar o status social da mulher, a sua subjetiva política.

            E a proposta aqui é apenas levantar essas questões para pensarmos numa singularidade antropológica da mulher a qual se quer dar a voz na política. É fundamental o compreendermos como um debate estrutural para fins de acompanharmos com olhares atentos as novas legislaturas femininas, observando seu contexto, suas demandas, seus esforços e seus obstáculos. Não são homens ou não homens nos espaços políticos, são mulheres constituídas de toda uma singular construção social e histórica. Fiquemos atentos!

 

 

BEAUVOIR, Simone de. Segundo Sexo. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, Vol. 1, 2019.

______________. Vol. 2, 2019

 

ENGELS, Friedrich. Origem da família, da propriedade privada e do Estado. Rio de Janeiro: Editora Civilização Brasileira, 1982.

WOLF, Naomi. Vagina, uma biografia. São Paulo: Geração Editorial, 2013.

 

PAULA GABRIELA MENDES LIMA é Professora de Filosofia do Programa de Pós-Graduação Interdisciplinar em Direitos Humanos da Universidade Federal de Goiás – PPGIDH/UFG. Doutora em Ética e Filosofia pela UFMG. Consultora Legislativa da Assembleia Legislativa de Minas Gerais.

 


Paula Gabriela Mendes Lima
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