Os
leitores que se ressintam da falta de um enfoque macroeconômico real e não
apenas “econométrico” das questões econômicas serão talvez os que mais venham apreciar
as lições das Considerações sobre as consequências da redução do juro[1],
que o filósofo John Locke publicou ainda no século XVII e a República do
Livro acaba de publicar. Digo isto, porque é evidente hoje no Brasil o
anseio por análises da conjuntura político-social que levem em consideração as
necessidades e os papeis de todos os agentes econômicos e não, como é comum
entre nós, apenas os dos grandes possuidores de capital, de dentro e de fora do
país. Determinado pela sua biografia
intelectual a não se deixar paralisar pela ditadura de um objeto de estudo em
particular, Locke abre espaço, na sua pauta de investigação científica da
economia, a temas políticos e morais. Há muitos exemplos a conferir nesse
sentido. Um deles: ao mesmo tempo em que exalta a importância estrutural das
categorias de agentes econômicos que fazem a grandeza da Inglaterra do seu
tempo, ele critica os desvios em que incorrem as ‘elites do atraso’ do seu
tempo, que deixam de observar regras de conduta moral, dentre as quais se
destacam as regras do trabalho, obrigatório a todos, e da frugalidade.
Assim,
o valor da categoria dos emprestadores de dinheiro é exaltado; mas, em nome do
combate à usura e de uma possível elevação artificial da taxa do juro daí
decorrente, privando a economia como um todo dos recursos necessários ao seu
funcionamento, a concentração do dinheiro em mãos de poucos nos centros
financeiros é criticada. Trata-se de um desejo criminoso de ter (amor
sceleratus habendi) e deve ser contido, mediante fixação em lei de uma taxa
que seja calculada para ficar próxima do juro corrente, aquele determinado pelo
encontro entre demanda e oferta de dinheiro de empréstimo, em um ambiente em
que esta não fique concentrada nas mãos de poucos. E seja suficiente, tanto
para remunerar de maneira justa o emprestador como para ajudar o tomador de
empréstimo a operar lucrativamente o seu negócio[2]. Do mesmo modo, exalta a
importância da categoria dos proprietários de terra, mas condena os que gastam
seus lucros em consumo supérfluo, ignorando a regra da frugalidade, o que os
leva a se tornarem inadimplentes e a clamarem pela ajuda do Estado; estes, diz
Locke, devem sofrer as penalidades da lei. Seria o pensador, tido como “pai do
liberalismo”, também um regulacionista? No mesmo espírito, ao referir-se a
outras categorias de agentes econômicos, como os mercadores (responsáveis pelo
comércio de exportação), os comerciantes lojistas, os artífices das manufaturas
e os trabalhadores do campo, ele vai fazendo reparos para compor a sua visão do
papel, das necessidades funcionais e dos comportamentos de cada segmento da
sociedade como um todo. Com certeza, é uma das razões para que a economista
americana Karen Iversten Vaughn tenha escolhido para o seu livro o sugestivo
título: Locke: economista e cientista social. Sensível ao objetivo de
alargar o papel da Economia Política, trazendo para ajudá-la outras ciências
humanas, talvez o reverenciado economista Thomas Piketty concorde com o juízo de
Karen a respeito do perfil intelectual do autor das Considerações. Pois,
assim como Locke, ele acredita que não basta desenhar modelos abstratos de
economia ¾seja
capitalista, socialista ou misto¾ se, ao fazê-lo,
perdemos de vista as questões de fundo da disciplina, aquelas que dizem
respeito a interesses e necessidades reais do conjunto da sociedade, e não
somente de grupos de interesse; pior ainda, se perdemos de vista o tipo de
racionalidade que deve estar na base dos conhecimentos econômicos. Respeitar a
natureza das coisas, sim, mas com prudência. Muita prudência.
WALTER PAIXÃO é ex-analista tributário da Receita Federal do
Brasil
[1] Some Considerations of the
Consequences of the Lowrering of Interest, John
Locke, 1692, traduzido para o português e anotado por mim (República do Livro,
2022)
[2] A
propósito, em seu livro JUSTIÇA, Michael Sandel faz citação de Obama: “Estamos
na América. Aqui não menosprezamos a riqueza. Não invejamos ninguém por ter
sucesso. E certamente acreditamos que o sucesso deva ser recompensado. Mas o
que deixa o povo frustrado – é ver executivos recompensados pela incompetência,
principalmente quando essas recompensas são subsidiadas pelos contribuintes dos
Estados Unidos.”