Logotipo do Jornal de Resenhas
Vinicius Dantas - 64 - Julho de 2000
De Titanic em Titanic
Foto do(a) autor(a) Vinicius Dantas

Obra do poeta alemão Hans Magnus Enzensberger toca o âmago da vida contemporânea 
De Titanic em Titanic

VINICIUS DANTAS

Hans Magnus Enzensberger escreveu um "O Naufrágio do Titanic" em Cuba, em 1969 -um esboço a ser retrabalhado. Os originais se extraviaram, logo após tentou retomá-los e acabou concluindo, em 1977, em Berlim, outro poema. A despeito de continuar agudo e cáustico como nos anos 50 e 60, o poeta que arrematou a obra não era mais o marxista heterodoxo e agitador de antes. Insatisfeito com suas próprias insatisfações, inquieto com seus pressentimentos de que o comunismo desmoronava, cético em relação às expectativas do Terceiro Mundo, enquanto via o progresso capitalista agravar os problemas não resolvidos do passado, Enzensberger, armado mais de imaginação poética que de teoria, reescreveu "O Naufrágio do Titanic", permitindo que o poema expusesse as marcas desse processo de composição interrompido, cuja maturação correspondia, mais que à trajetória pessoal do autor, à consumação do século.
Uma das belezas do texto é esse reprocessamento de materiais que, como não poderia deixar de ser, no caso de um escritor radical como ele, também suscita uma reconsideração de sua própria poesia, tudo cercado pelo horizonte de falta de expectativas e pela dinâmica cega da desagregação. O projeto do poema longo, além de resultado de disciplina poética e rigor artístico, é índice da ambição de tocar em alto estilo o nervo da vida contemporânea. Essa solução literária expressa a ambição algo desmedida, mas certeira, de organizar (inquietações), intuições, vivida sem tempos e lugares variados, em vez de enlatar esperança ou chorar os baluartes derrubados.

Livro profético
Enzensberger acordou cedo -estamos nos anos 70- para uma explicação sistêmica, absolutamente inesperada, da crise contemporânea. A partir dos sinais, poucos, de abalo ou ebulição, emitidos sobretudo pelas transformações econômicas e técnicas do capitalismo, ele correlacionou os dois sistemas mundiais numa dinâmica unificada. "O Naufrágio do Titanic" é, portanto, um livro profético, capaz de registrar poeticamente a eternização do mal-estar civilizatório que se rotinizaria, em meados da década seguinte, com a vitória do neoliberalismo e a consequente derrocada comunista (para que se situe o leitor, lembro que o poeta publicou o livro de Robert Kurz, "O Colapso da Modernização", na coleção "Uma Outra Biblioteca", por ele dirigida). Tudo o que veio a seguir só lhe daria razão -escutem a passagem do canto terceiro:
"A ilha de Cuba/ não vacilava sob nossos pés. Parecia-nos/ que algo estava no ar,/ algo que cabia a nós inventar./ Não sabíamos que a festa acabara havia muito/ e que todo o resto era assunto/ para os diretores do Banco Mundial/ e os camaradas do serviço de segurança,/ exatamente como em nosso país e onde mais fosse".
Glosada no canto seguinte: "Como era agradável ser cândido!/ Não queria admitir/ que a festa tropical já terminara./ (Mas que festa? Era só penúria,/ ó ignorantão, penúria e necessidade)".
Estamos pois diante de evento raro: o poeta consagrado que se atira qual impávido estreante a um enfrentamento de risco. O desafio de atualização, com tudo que possa deixar à mostra de limites e precariedade, é enfrentado às claras, com honestidade artística. Essa é a primeira e óbvia lição desse "Naufrágio", escrito para escancarar a crise econômica e social que, levando de roldão o último esforço coletivo de corresponder a uma noção substantiva de progresso (o comunismo), exige agora uma reavaliação crítica do ciclo da modernização que se completou (sugiro que nesse sentido se compare o exemplo do alemão com os poetas brasileiros, seus companheiros de geração).

Totalização bufa
Se, em 1962, o jovem escritor dizia que preferia ver as coisas de perto, nos detalhes, na maturidade só lhe importaria o plano geral de um destino comum, e é aí que entra justamente a totalização bufa e amarga do Titanic enzensberguiano. É preciso, portanto, celebrar a ambição artística e intelectual, poeticamente formulada, dessa percepção de que o progresso, após recriar ou simplesmente devastar o planeta, alcançara um estado de normalidade indissociável da subversão e do desastre, como se vivêssemos hoje de Titanic em Titanic...
A força do poema depende de uma arquitetura aparentemente caótica e fragmentária, com um escopo verdadeiramente ensaístico de movimentos, paradas e retomadas que, contrariando a expectativa, se organizam em crescendo. Enzensberger muda constantemente a direção da exposição e, passo seguinte, incorpora outro ângulo ou versão do que foi visto, adensando a reflexão. Temos assim uma sucessão de quadros paradoxais que se espelham e só se completam na mente do leitor. Por exemplo: o quadro da opressão e sufocamento dos que desesperam num desastre, tanto náufragos quanto deportados para um campo de extermínio, muda do canto 11 para o 12 para a ordem, a indiferença e a frieza dos que no naufrágio se apegam à diferença social para assegurar o direito de salvamento; a descrição da infiltração da água, uma teoria dos líquidos até a morte por asfixia, de tão minuciosa quase chega a se metaforizar, a tal ponto que o canto seguinte, o 15, a corrige, numa cena de discussão em que participa o próprio autor, cuja obra é acusada de "metáforas encharcadas de profundidade" etc.
A construção em abismo joga desse modo com relatos poéticos e antipoéticos de todo tipo, os quais interrompem, adiam ou modificam a corrente principal. Lêem-se assim, nessa gama prodigiosa de materiais, descrições, inclusive de quadros, diários, relatórios técnicos, telegramas da imprensa, poemas-piada, pastiches de hinos religiosos e canto folclórico, roteiro de cinema.
A composição do poema, cujo subtítulo é "Uma Comédia", mais parece a de uma colagem, pela descontinuidade de texturas, mas a amarração secreta que existe precisa ser descoberta sob o espetáculo grandioso da alegoria. A fragmentação gerada pela mudança de registro, ou alternância de ponto de vista, não torna inconsistente o conjunto, cada recurso sendo utilizado para iluminar uma variação narrativa ou para ponderação crítica. Os 33 cantos se encaixam, formando uma peça inteiriça, por sinal bastante diferente do espírito de poemas modernos longos, como "Paterson", "The Cantos" ou "Invenção de Orfeu", que são quebradiços e proliferam por muitas vertentes.
À medida que essa arquitetura de efeitos opera, a colagem perde sua característica e permite que a alegoria funcione como um "trompe l'oeil" de tipo novo e de pós-vanguarda. Já não importa tanto a textura do material, a quebra de ilusão, a exposição do veículo, pois, por sobre os fragmentos, se sobrepõe um efeito épico unitário, que aplaina as diferenças. A tessitura do conjunto não se esgarça, conquanto a diferença de textos, estilos e assuntos seja estonteante; agora o "papel colado" é alusivo, enriquece o conteúdo pela força do documento, da informação, ou principalmente pelo viés narrativo da dramatização.

Tramas da tradução
Tudo isso pode ser lido na tradução de José Marcos Macedo que, apesar de muita jaça, tem nível. Com certeza, das traduções em português, seu Enzensberger é o mais fluente pelo domínio do coloquialismo, pelo andamento palpável das idéias e argumentos, pelo cuidado com o corte dos versos e as guinadas de tom que estruturam a exposição narrativa. Enzensberger é um autor fácil em seu verso direto, porém isso não significa necessariamente que o poeta adianta o serviço para o tradutor. Antes pelo contrário, a antipoesia quase não é praticada na literatura brasileira, menos ainda hoje, quando a própria poesia tende à expressão ornamentada e, raramente, aguenta o tranco de uma exposição seca de raciocínios, com subentendidos, ironia e nenhuma demagogia discursiva.
Macedo assegurou a nitidez dessa trama referencial e vocal sem barateamento, inventando em português um tecido misto de poesia e debate de grande eficiência. Ele também enfrentou radicalmente, com graus diversos de êxito, a questão da inteligência chã do coloquialismo, buscando a equivalência de expressões feitas, às vezes até regionais, num exercício de recriação de um poema que em linguagem de todo dia se lança a planos altos de complexidade. Observe-se, porém, que, se a equivalência da expressão pode muitas vezes dar certo, a equivalência cultural não acontece, como por exemplo no dito do canto final: "(...) "Doch keiner weiss", heule ich, "in welchem Jahr,/ und das ist, und das ist, wund erbar'", em que a resignação chorosa e fim-de-linha ao desastre se transforma em "carpe diem" brasílico: ""O Juízo Final", berro, "ninguém/ sabe em que ano será, então relaxe, então relaxe e peça outra cerveja'".
Aliás, o problema ocorre sempre nas tentativas abertamente recriativas, como as dos cantos 13 e 20, cujo pastiche de hino religioso e de balada folclórica em português não me convenceu. Baseado num ideal de fluência de prosa, Macedo prefere a armação do conjunto à eficiência da fórmula verbal, mas isso é o que permite que o leitor acompanhe plenamente os lances expositivos tão essenciais ao texto.
Aqui e ali, alguma coisa soa falso (a adjetivação e os verbos acústicos parecem às vezes mais empolados que no original, a virgulação trava a imaginação do verso, o recurso à sinonímia atenua o gosto pela repetição); em compensação o tradutor se sai bem em muitos passos embaraçosos. Assinalo alguns momentos bons como solução: o andamento neoclássico do início do canto 21, o fragmento "O Adiamento", o canto 27, as visões do iceberg nos canto 3 e 5 e muitas passagens fulgurantes entremeadas ao andamento argumentado do naufrágio:
"Não tenho nada a perder. Ocupo-me/ com os radiogramas, com o cardápio, com os cadáveres de afogados. Eu os recolho,/ os cadáveres, das águas/ negras e geladas do passado". Ou: "(...) Ó fato empírico!/ Estou à beira da loucura! Ó eterna discórdia/ dos peritos! Ai dos versados na matéria!/ Ah, bibliógrafos, como me fazeis pena!/ Também vós afundareis, mas ninguém/ vos considerará dignos de investigação séria,/ afundai, pois sem glória, amém!".


 

Vinicius Dantas é poeta, ensaísta e tradutor.

Vinicius Dantas é ensaísta, poeta e tradutor.
Top