Temos a grata satisfação de ter em mãos e apresentar aos nossos leitores o resultado do belíssimo trabalho de comentário, tradução e notas realizado por Carlos Berriel, professor de História Literária da Unicamp, organizador e coordenador do Centro de Pesquisas sobre utopias. Acompanhada de um aparato crítico muito bem documentado, com a apresentação das demais obras de Campanella, das edições em que se apoiou, esta tradução possui um valor inestimável e certamente torna-se referência aos estudiosos sobre as utopias do período renascentista. A história conturbada de Tommaso Campanella bem que mereceria um filme, pois esse monge dominicano, nascido em Stilo, na Calábria, em 5 de setembro de 1568, viveu poucas e boas e mesmo assim conseguiu passar desta vida para a outra aos 70 anos, em Paris, em 21 de maio de 1639. Como poeta, teólogo, filósofo, astrólogo, possui uma obra vastíssima e é considerado um dos grandes intelectuais da Renascença, ao lado de Galileu e Giordano Bruno. Nascido pobre, porém, dotado de uma inteligência 21JR 124 | JUL 23 extraordinária, começou a se destacar logo nos primeiros anos de seu aprendizado. Pelas suas qualidades excepcionais, a família queria que ele fosse estudar direito, mas, aos 14 anos de idade, decidiu entrar para a ordem dos dominicanos, na qual permaneceu até o final da vida. Passou 27 anos preso, acusado de conspiração contra a monarquia espanhola, que, naquela época, ocupava a região da Calábria. E só não foi condenado à morte porque se fingiu de louco, pois os inquisidores não levavam à pena capital aqueles que comprovadamente eram atestados com a marca da loucura. Antes dessa prisão por conspiração, ele já havia sido preso por acusação de heresia, por contrapor-se aos princípios da doutrina aristotélica encampada por Thomas de Aquino. Mais especificamente, por pregar uma filosofia fundada na natureza, contra os princípios abstratos de Aristóteles. Sua prisão por conspiração contra a monarquia espanhola foi a mais longa e deixou nele marcas profundas, principalmente pelo procedimento da tortura, a que foi submetido várias vezes. Sem contar as condições precárias da prisão em que ficou confinado. Em meio a acusações pesadas e muitas traições de seus companheiros de rebelião, Campanella acabou confessando, porém com algumas nuances importantes, como, por exemplo, o fato de afirmar que queria organizar uma rebelião para unir a cristandade em torno do papa e do rei da Espanha. Evidentemente, tratava-se de uma confissão para livrar-se da condenação, o que não foi suficiente, porque as autoridades civis e eclesiásticas estavam sempre desconfiando dele. Criar uma república comunista, que conseguisse reunir toda a cristandade, atraindo inclusive a adesão dos protestantes, primeiramente com sede nas montanhas da Calábria e depois irradiando-se pelos demais territórios, era a ideia do nosso dominicano rebelde. Mas o que é mais interessante ainda é que, nos primeiros anos de prisão, desta fase, Campanella logo redigiu aquela que se tornaria uma verdadeira obra prima da literatura universal, a Cidade do Sol, uma verdadeira república comunista cristã. Já nos autos de sua defesa, antes de redigir a Cidade do Sol, Campanella afirma em sua “Primeira linha de defesa”, que “a república cristã, reunindo todas as nações em uma suprema felicidade, sob um único 22JR 124 | JUL 23 chefe, vai se tornar efetiva antes do fim do mundo, que, no entanto, está próximo...Os poetas escreveram sobre o século de ouro desejado por eles; os filósofos, sobre o estado perfeito com que sonhavam sem poder realizá-lo; os profetas, sobre a Jerusalém reconstruída na serenidade, na paz e na glória, mas suas promessas não se verificaram. O bom Deus irá realizar os desejos e as promessas dos justos e responder à expectativa universal”. Embora Campanella não se considerasse um milenarista, suas posições às vezes são bem parecidas, pois a ideia de realização da república universal cristã antes do final do mundo que está próximo é típica do pensamento milenarista. De certa maneira, a construção fracassada de uma república comunista cristã nas montanhas da Calábria é que dará o mote para a construção de sua república ideal na Cidade do Sol. Dessa forma, a cidade imaginada erguer-se-á também numa colina, tal como a cidade desejada. Ela divide-se em sete círculos e recintos que recebem os nomes dos 7 planetas que até então se tinha conhecimento da existência. Cada um desses círculos se liga aos outros por intermédio de 4 passagens com 4 portas voltadas para os pontos cardeais. A construção da cidade foi muito bem pensada para se tornar praticamente inexpugnável. Para conquistá-la, os invasores teriam que superar esses 7 círculos, todos eles guarnecidos por defesas de toda sorte, como torres, fossos e máquinas de guerra. No cume da colina ergue-se um templo maravilhoso, com colunas e uma abóbada central, na qual se encontram pintadas estrelas de todas as grandezas, marcadas pelo nome, acompanhadas de três versículos que revelam a influência que cada estrela exerce sobre as coisas terrenas e as vicissitudes humanas. Não nos esqueçamos de que Campanella, além de poeta, filosofo e teólogo, era também astrólogo, pois acreditava piamente na influência dos astros sobre a vida em geral, não só a humana, mas também de todas as outras criaturas e plantas e sobre isso elaborou várias teorias. Tudo na Cidade do Sol é muito bem-organizado, de tal modo a propiciar a todos, desde a mais tenra idade, o acesso aos conhecimentos necessários para a vida, isto é, o conhecimento da realidade astronômica, das ciências em geral e das artes úteis. Sobre as pareces dos muros podemos ver expressões matemáticas, 23JR 124 | JUL 23 elementos de geografia, como rios, montanhas, plantas e animais, metais, pedras preciosas, répteis, etc., cada um com seu nome, para que as crianças aprendam tudo isso simplesmente caminhando e olhando para todas essas peças que devem dar conta de todos os conhecimentos necessários para a vida e para a maior felicidade de todos, como se estivéssemos diante de uma enciclopédia ilustrada. Ao contrário da Utopia de Thomas Morus, que se caracteriza por um projeto irrealizável, um lugar distante, a cidade de Campanella parte da convicção de que já houve no passado da humanidade uma felicidade natural que um dia retornará, reunindo toda a humanidade sob a autoridade de uma só autoridade. O retorno dessa felicidade natural já estava anunciado nas estrelas. Por isso mesmo, a organização política da Cidade do Sol possui uma estrutura bem peculiar e apropriada aos propósitos desse reencontro da felicidade natural. A autoridade suprema leva o nome do próprio Sol, ou ainda denominado “Metafísico”. E é cercado por três superministros ou príncipes: Pon (Potência), Sin (Sabedoria) e Mor (Amor). Cada um desses príncipes se encarrega de um tipo de atividade. Pon se ocupa com a guerra e a paz, Sin encarrega-se das ciências, das artes em geral e Mor cuida da geração, da educação da farmácia, das culturas, da alimentação e do vestuário. Os demais ministros ou oficiais são todos escolhidos pelos quatro comandantes, por intermédio de uma lista de candidaturas examinadas por um conselho. Tudo é feito por escolha e nada de forma hereditária. Quanto ao mundo do trabalho, todos aprendem todos os ofícios e cada um escolhe aquele com o qual tem mais afinidade. O ponto alto a destacar na Cidade do Sol é a ausência da propriedade privada. Lá, tudo é comum, tudo pertence a todos e cada um recebe o que lhe é necessário para a subsistência e ninguém passa fome. Para justificar essa prática, Campanella lembra os primeiros cristãos, Cristo e os apóstolos e também as comunidades dos monges que vivem muito bem sem propriedade. Nosso autor invoca uma gama enorme dos chamados Pais da Igreja para justificar a defesa da propriedade comum, porém, esbarra numa questão delicada que é a propriedade comum das mulheres. É interessante como Campanella assume uma tradição milenar de que os escravos e as 24JR 124 | JUL 23 mulheres também faziam parte da propriedade dos senhores. Se não temos certeza de que os primeiros cristãos praticavam a propriedade comum das mulheres, na Cidade do Sol não só as mulheres fazem parte da propriedade comum, como também os filhos, de tal modo que não existe ali a ideia de família como conhecemos hoje, não existem laços afetivos entre pais e mães e filhos. De tal modo que tudo é comum. Ao colocar também as mulheres como parte da propriedade comunal, Campanella pratica um ato de ousadia extrema. Contraria todas as ortodoxias até então em vigor. Não é à toa que foi durante toda a vida alvo da Inquisição. Ao justificar a partilha comum de todos os bens de que se tem notícia, Campanella propõe um comunismo total, sem dar margem a meias interpretações. O que os solarianos dividiam? Dividiam o conhecimento, os ofícios, a agricultura, os filhos, o cuidado com os enfermos, o culto religioso, embora este fosse conduzido sempre pelo “Metafísico”. E dividiam também as mulheres, num processo altamente organizado. Mas não era uma vida de licenciosidade e promiscuidade, pois o Mor, o responsável pela geração, cuidava de tudo. Para todo processo de união havia regras muito rigorosas a serem seguidas. Citaremos uma passagem desse episódio sobre a propriedade comum das mulheres e sobre a organização das práticas de acasalamento para indicar que Campanella possuía até mesmo um verdadeiro projeto de eugenia. “E assim, estando bem lavados, se dão ao coito a cada três noites; e não se acasalam senão as mulheres grandes e belas com homens grandes e virtuosos, e as gordas com magros, e as magras com gordos, para trazer equilíbrio. À noite, vão os jovens e se recolhem aos leitos, em seguida dormem, conforme ordena o mestre e a mestra. Não se entregam ao coito senão após a digestão, e antes fazem orações, e dispõem de belas estátuas de homens ilustres, que as mulheres admiram. Depois saem à janela, e oram a Deus para que lhes dê uma boa prole. Dormem em duas celas, separados, até a hora em que se devem conjugar, e então a mestra abre a passagem de uma e outra cela. Essa hora é determinada pelo Astrólogo e Médico; e cuidam sempre de escolherem o omento em que Mercúrio e vênus estejam a oriente do Sol, em casa favorável, e que seja observado bom aspecto em 25JR 124 | JUL 23 Júpiter, Saturno e Marte. E da mesma forma o Sol, assim como a Lua, que muitas vezes estão afetos. E, além disso, desejam ter Virgem em ascendente; mas muitas vezes evitam que Saturno e Marte estejam em ângulo, porque todos os quatro ângulos com oposições e quadrantes contaminam, e nesses ângulos está a raiz da força vital e da sorte, dependente da harmonia do todo com as partes”. Se algumas mulheres não engravidam, elas passam para outros parceiros. Se são estéreis, podem servir a outros encontros, mas são discriminadas, pois não serão referenciadas na assembleia de geração, nem na mesa, nem no templo. Se alguém imaginar que a comunidade das mulheres seria sinônimo de orgia está muito enganado. Além disso, na relação entre homens e mulheres, o máximo que poderia haver era amizade pura e simples. Amor paixão nem pensar. A prática sexual com mulheres estéreis e grávidas era permitida para evitar a sodomia, considerada como antinatural e como crime passível de punição severa. No Anexo intitulado “Quarta questão sobre a ótima república”, Campanella explicita a sua afirmação que citamos acima, da seguinte maneira:“Todo pecado contra a natureza destrói o indivíduo ou a espécie, ou é ordenado para a sua destruição, segundo São Tomás: o assassinato, o furto, as rapinas, a fornicação, o adultério, a sodomia são contra a natureza pelo fato de que causam danos ao próximo ou impedem a geração ou, então, são ordenados para isso. Todavia, a comunidade das mulheres não destrói as pessoas e não impede a geração e, portanto, não é contra a ordem natural, mas, vice-versa, resulta mais vantajosa aos indivíduos e à geração e à república, como resulta claro do texto.” O recurso à autoridade de São Tomás e de outros pais da Igreja é recorrente ao longo da obra. Campanella quer mostrar que a religião não é incompatível com a ciência, que a razão e a fé podem caminhar juntas. Ele professava uma ciência racional fundada na natureza. E esta era considerada como o espelho de Deus, chegando muito próximo ao Deus de Espinosa. Uma das características que podemos destacar ainda aqui, dentre muitas outras que deixamos de lado para deleite do leitor, que deverá experimentá- 26JR 124 | JUL 23 las no decorrer da leitura, é o fato de que na Cidade do Sol não há lugar para as individualidades, não há lugar para o interesse particular, não há lugar para a família como reduto de sentimentos particulares. Tudo é visto em função da comunidade, da totalidade, do interesse comum, da felicidade pública. É como se ali todos fossem irmãos, todos se interessassem por todos e ninguém olhasse para si mesmo e para seus amigos com interesses particulares. O Campanella da Cidade do Sol está na contramão da modernidade, na qual o indivíduo ocupa cada vez mais um lugar de destaque. Está aí um verdadeiro precursor do comunismo utópico, no qual todas as pessoas vivem felizes, no qual todos trabalham para a comunidade como se estivessem trabalhando para si mesmos. Enfim, trata-se de uma verdadeira comunidade de homens virtuosos, de uma verdadeira comunidade de cristãos.
MILTON MEIRA DO NASCIMENTO é professor aposentado do departamento de filosofia da USP