As teorias políticas e as filosofias políticas francesas do início do século XIX, representadas especialmente por autores como Chateaubriand, Guizot, Staël, Tocqueville e Constant, influenciaram as práticas sociais e políticas da nossa atualidade, mas se trata de uma linguagem ainda pouco explorada pelos pesquisadores brasileiros. O livro de Felipe Freller Quando é preciso decidir – Benjamin Constant e o Problema do Arbítrio visa contribuir com essa lacuna ao apresentar o pensamento de Constant, reavaliando as representações de algumas de suas obras, contextualizando-as e dando voz a esse filósofo, tanto em diálogo com pensadores clássicos como Maquiavel, Rousseau e Locke, quanto com intérpretes contemporâneos. Freller percorre textos fundamentais da obra de Constant, esclarecendo o contexto intelectual e social com o qual o filósofo buscava intervir. Nesse percurso, o autor foca no que ele denomina como problema do arbítrio e da decisão, questão fundamental a ser enfrentada em face da experiência política do nosso tempo. Seguindo o pensando de Constant, considera-se o arbítrio como a decisão que decorre de lacunas das leis e não é determinada 10JR 124 | JUL 23 por princípios gerais, ou seja, trata-se de uma determinação prática realizada em face da contingência política e das situações particulares. No decorrer da leitura do livro, foi perceptível a aproximação da questão de Felipe Freller à investigação clássica sobre o decisionismo proposta por Carl Schmitt. Schmitt é uma referência essencial para a compreensão da semântica do decisionismo e é um teórico político fundamental para pensarmos sobre as condições de decisão em contextos de normalidade e exceção. Freller não se escusa do diálogo com o teórico alemão, mas percorre o tema da decisão e do arbítrio a partir de outros pressupostos teóricos, caraterizados como decisionismo moderado, o que é mais uma de sua singular contribuição para o debate intelectual brasileiro. O trabalho de Freller é “erudito, claro e imparcial”, como diz Pierre Manent no prefácio da obra, e traz luz para o tema do arbítrio e a decisão não apenas como questões afetas ao estudo da soberania e da decisão jurídica. Seu trabalho perpassa pela compreensão de outros fenômenos, como os complexos períodos históricos do Diretório, o fim do Terror e o golpe de Estado de Frutidor, bem como pela apreensão de tradições teóricas como o liberalismo de ordem, o republicanismo do início do século XIX, a monarquia constitucional etc. Esse caminho original é apresentado a partir de leituras finas, profundas e sistematizadas do pensamento de Benjamin Constant. Freller propõe que o arbítrio é o “verdadeiro problema político que Constant procura enfrentar ao longo da sua vida” e, fundamentando essa hipótese central, o autor confronta leituras do pensamento desse filósofo, as quais o posicionam apenas como um teórico que rejeita o arbítrio, bem como leituras sobre o poder neutro e outras que insistem na instabilidade teórica desse pensador. Parece que, em que pese não haver uma defesa da unidade do pensamento de Constant, Felipe reforça a existência de uma teoria política consistente em Constant que influencia a política moderna. No Capítulo 1, o autor analisa o problema do arbítrio no período do 11JR 124 | JUL 23 Diretório (1795-1797). Trata-se da análise do pensamento de um jovem Constant que quer salvar a República, sendo as medidas arbitrárias estratégias temerárias em face do contexto de uma Revolução Francesa que não estava terminada e havia o perigo da reação. Nesse capítulo, Felipe Freller faz uma breve apresentação da história precedente do arbítrio no âmbito da filosofia política, focando no diálogo com Locke e Rousseau, e descreve as precárias bases do governo revolucionário no período que decorre até o estabelecimento de uma nova ordem constitucional, momento em que Constant e Madame de Staël chegam em Paris. Ambos irão realizar um grande debate político sobre a nova Constituição e sobre as ideias de Roederer, Lezay-Marnésia e Necker, que inspiram o liberalismo da ordem e associam a garantia da ordem e a força do Executivo. Freller nos mostra como Constant enfrentou essas ideias, levantando o problema do arbítrio, defendendo a independência da República em relação à maioria nacional e o problema da soberania do povo. Neste primeiro contexto, afirma o autor, Constant rejeita a possibilidade do arbítrio e se compromete com as formas legais, pois para o filósofo seria a solução possível para frear eventuais tendencias despóticas. No capítulo 2, tem-se os reflexos do golpe do 18 Frutidor e Constant percebe a necessidade de mudar os seus discursos sobre o problema do arbítrio. O filósofo irá reformular e complexar o seu pensamento para incorporar o arbítrio na autoridade discricionária do poder neutro. Propõe-se um desenho constitucional que irá amparar um sistema político institucionalizado capaz de neutralizar o arbítrio. Destaco, nesse capítulo, a análise dedicada de Freller em relação ao pensamento de Madame de Staël, que é uma grande interlocutora de Constant e que merece ser evidenciada nas análises sobre o pensamento do filósofo. O autor expõe pontos de aproximação e de debates entre eles, demonstrando a afinidade intelectual e a preocupação de ambos com a política estabelecida na França. Considerando Madame de Staël, bem como 12JR 124 | JUL 23 reflexões de Roederer, Sieyés e Necker, Benjamin Constant caminha para a defesa da incorporação institucional do arbítrio por uma autoridade discricionária com funções preservadoras do sistema constitucional e político proposto. No Capítulo 3, Freller demonstra uma nova virada no pensamento de Constant, especialmente a partir da leitura do lugar do arbítrio na obra Principes de politique applicables à tous les gouvernements, escrito em 1806, período em que se tem o fim da República e a filiação de Constant a uma filosofia liberal que prioriza liberdades individuais. O autor analisa com calma essa obra de Constant, concluindo que o filósofo considera a insuficiência da lei para a garantia da liberdade, introduzindo novas instâncias de decisão para além do poder neutro. Ele discute a instituição do júri e o direito de graça, encontrando um arbítrio fundado em decisões alicerçadas em julgamentos morais. Essas decisões são postas como competência dos membros da comunidade política e o arbítrio, e, assim, passam a compor a esfera do julgamento moral individual, o que suscita fundamentos para uma desobediência civil. O capítulo 4, descreve a relação do pensamento de Constant com o advento da monarquia constitucional a partir de 1814. Ele apoia essa monarquia, mas propõe debater a sua natureza. O filósofo realiza este debate escrevendo um projeto constitucional que será adotado por Napoleão. Afirma Freller que a nova constitucional teria o apelido de “la Benjamine”. Nesse novo modelo constitucional o arbítrio seria concentrado em um poder neutro, a quem cabe frear os demais poderes em face das ofensas ao texto constitucional. Além disso, define-se o arbítrio como uma categoria política estabelecida no interior do arcabouço constitucional, na forma de julgamento moral individual. O percurso de Quando é preciso decidir – Benjamin Constant e o Problema do Arbítrio demonstra que não há solução total para questões que tangem a contingência política, mas é claro nessa obra que Constant 13JR 124 | JUL 23 é um teórico político que busca possíveis soluções para o seu contexto político e, a partir de suas soluções, torna explícitas as possibilidades para ressignificarmos a questão da decisão e do arbítrio nas sociedades modernas. Felipe Freller, nessa obra, inscreve Constant como um autor essencial para a repensar o tema do arbítrio e da decisão, elucidando a consistência de um decisionismo moderado. Trata-se de uma hipótese original e defendida com primor, o que justifica a sua premiação no Prêmio Capes de Tese de 2021 da área de Ciências Política e Relações Internacionais, com o Grande Prêmio Capes de Tese de 2021 da área de Ciências Humanas, Linguística, Letras e Artes e Ciências Sociais Aplicadas e com Menção Honrosa no Prêmio Tese Destaque USO – 10 ª edição (Grande Área: Ciências Humanas).
PAULA GABRIELA MENDES LIMA é professora de Filosofia integrante do PPGIDH/UFG
e doutora em Filosofia Política pela UFMG.