Para que serve o estudo da filosofia política hoje? O engajamento dos intelectuais não parece assegurar a vida da democracia. Debates públicos, artigos acadêmicos, resenhas críticas, palavras transformadoras, ações conscientes e esclarecidas, de que mais precisamos? Os conceitos examinados nesse livro são de Jean-Jacques Rousseau, filósofo combativo e original que viveu na França antiga, quero dizer, anterior à Revolução. Encontrei numa biblioteca francesa de pequeno porte esta divisão nas estantes de livros: de um lado, o que vem antes, de outro, o que vem depois da Revolução de 1789, ano da tomada da Bastilha. É como se o povo nas ruas, decidindo sobre o futuro das civilizações, combatendo o Antigo Regime, subvertendo a ordem dos senhores proprietários dos antigos feudos, se erigisse em marco zero da comunidade política mundial. A ênfase no pensamento de Rousseau não é casual. Milton M. do Nascimento considera importante analisar a comunidade política e trazer diagnósticos sobre a situação política concreta a partir dos conceitos 15JR 124 | JUL 23 filosóficos. Seu foco recai sobre a teoria do contrato social, pela qual se instaura uma nova ordem, a ordem dos princípios do direito político. Será isso suficiente para a ação política? Segundo o autor, o estudo da filosofia política serve como escala de medida, facilitando a tarefa da ação política, mas sem pretender aplicar os conceitos como uma camisa-de-força ou algo absoluto e inalterável. Com os princípios do direito político examinados, não se tem pretensão objetivista, como ocorria com o antigo direito natural, nem tem base na autoridade religiosa, afastando o estatuto divino que se conferia ao poder do rei e à sua vontade. Não há subterfúgios. É como se, entre o indivíduo e a sociedade política, nada pudesse se interpor. A autoridade pertence ao indivíduo, a cada um do nós: quando reunidos somos povo, tomados isoladamente, cidadãos. Milton Meira do Nascimento é filósofo político e jornalista, professor aposentado da USP no Departamento de Filosofia, sempre ativo no mercado editorial e nos debates entre acadêmicos. Resultam suas ideias de um método de leitura e interpretação de texto que é primoroso. Rigor, clareza e objetividade são suas principais qualidades. Sempre se tratou, antes de tudo, de fazer uma análise interna da obra estudada. Sendo assim, na maior parte desses textos do Prof. Milton Meira do Nascimento, encontramos apresentação de conceitos e explicitação de estruturas e esquemas conceituais. A divisão principal de suas ideias, seguindo a trilha de J.-J. Rousseau, reside na distinção entre plano do direito e plano do fato. Assim, o esquema é claro. De um lado, do ponto de vista do direito, temos os conceitos filosóficos, muitas vezes, considerados por demais abstratos, como os de vontade geral, soberania, liberdade metafísica, pacto da alienação total, cidadão, corpo político, direito político, direito natural, leis fundamentais etc. 16JR 124 | JUL 23 De outro lado, do ponto de vista do fato, que o autor considera também como plano do concreto, da realidade, da sociedade empírica, temos tudo o mais que se encontra na vida política “como ela é”: despotismo, usurpação, leis, dominação, povo, poder, terror, governo, opinião pública, reforma dos costumes, democracia, pacto proposto pelo rico e assim por diante. “Ordem da harmonia”,“ordem dos conflitos”,“forma” e “matéria”. Seriam esses pares conceituais reflexos da diferença entre, de um lado, as ideias e conceitos e, de outro, as ações e a vida política? Não exatamente. Esses dois planos se interpõem, ambos pertencem à realidade empírica, ao plano das ações na vida concreta. Deixemos, pois, de lado os esquemas, pouco servem hoje à ação. Os objetivos de Milton M. do Nascimento nessa coletânea de artigos científicos e ensaios filosóficos é lançar luz sobre questões fundamentais da filosofia política que impactam na vida de todos nós hoje. Centrado na polêmica sobre a representação na obra de Rousseau, os textos nos levam a considerar o que está em jogo no exercício da soberania, como se dá efetivamente a participação ativa na vida política. A soberania é inalienável, o que por si mesmo gera desconfiança quanto à possibilidade de representantes políticos atenderem de fato as demandas voltadas aos interesses coletivos. Cabe à redação das leis e ao debate público aproximar teoria e prática, ação política e princípios do direito. Não há liberdade possível fora do Estado, sem a união das forças na comunidade política, sem a fixação da vontade geral nas leis fundamentais. O dinamismo nas leis fundamentais acompanha, de certo modo, os movimentos na vida concreta. É repensado e recriado incessantemente o bem comum e, por consequência, a vontade geral, da qual aquele é objeto. As leis são dinâmicas, acompanham a evolução dos tempos. Os corpos políticos mudam, crescem e perecem. É preciso acompanhar as mudanças sucessivas por que passam as 17JR 124 | JUL 23 sociedades para bem fixar sua vontade, a vontade geral, nas leis e nos costumes. Não há receita do bolo. Trata-se para o autor de reforçar a importância da participação popular nas questões mais fundamentais de interesse comum. O estímulo ao debate público seria, por assim dizer, a grande missão dos intelectuais e jornalistas, do escritor político e do filósofo político. Outra boa motivação para ler esse livro são os fatos em cena: a Revolução Francesa e seu desvio de 1793, a querela da introdução do teatro em Genebra, a oposição a todo espírito de clube por parte do chamado Círculo Social (outra especialidade de Milton M. do Nascimento), as edições de jornais da época, como o La Bouche de Fer, considerado como a voz do povo, ou o La Chronique du Mois, a criação da Confederação Universal dos Amigos da Verdade, os comentários sobre o Contrato Social no Palais Royal, a admiração de Robespierre por Rousseau, o trajeto das cinzas de Rousseau ao Panthéon, enfim, toda a simbologia, os estudos e discursos relacionados à luta contra o Antigo Regime, contra a opressão, que fazem também a força dessa coletânea de Milton M. do Nascimento. Sua erudição é incrível. Mais de 100 autores citados, entre estudiosos anteriores e filósofos clássicos, por exemplo: Salinas Fortes, Hobbes, Voltaire, Proudhon, Marx, Goldschmidt, Diderot, Aristóteles, Pufendorf, Grotius, Jean Bodin, Maquiavel, Althusser, Derathé, Montesquieu, Lebrun, Michel Launay, Condorcet, Tocqueville, Hannah Arendt, Baczko, Barbeyrac, Binoche, Beyssade, Ernst Bloch, Bourdieu, Burke, Burlamaqui, Cassirer, Darnton, Foucault, Goulemot, Goyard-Fabre, Hochart, Pierre Manent, Masters, Mauzi, Carlos Arthur Ribeiro do Nascimento, Polin, Bento Prado Jr., Proust, Starobinski, L. Strauss, Tuck, Villey, para restringir a litas aos mais conhecidos. Há uma longa tradição de interpretações da obra do filósofo genebrino. Sobre a teoria do contrato social, nomes de peso, como L. Althusser, G. Lebrun, Jean-Fabien Spitz. Nesta trajetória, que é coletiva, Milton M. do 18JR 124 | JUL 23 Nascimento sempre foi original na leitura dos textos de Rousseau, uma autoridade no assunto. Em suas ideias percebe-se uma valorização da força das palavras na luta e engajamento dos intelectuais e jornalistas por uma sociedade mais justa e melhor organizada. Por isso mesmo, pela riqueza de referências e interpretações, pela quantidade de nomes e obras citadas, relendo hoje toda a coletânea, senti a ausência de referências à nossa comunidade acadêmica, sim, a de hoje, que forma a materialidade e a tecitura deste real que hoje vivemos. Nos diálogos com colegas e alunos do Departamento de Filosofia e de outras áreas, não apenas na USP, mas em Universidades espalhadas por todo o Brasil, indo para outros países e continentes, na promoção do debate de ideias, organização e participação em palestras, estímulo aos grupos de estudos, Milton Meira do Nascimento sempre foi vanguarda. Não poderia deixar de citar, então, seus vários alunos que continuam e alimentam o debate público. Porém, sob o risco de esquecer alguns nomes, restrinjo-me a retomar algumas palavras de Thiago Vargas, sob indicação de Thomaz Kawauche. Ambos fazem parte de uma geração que está ainda, neste momento agora, ralando pela democracia. Revolução ou reforma política? Eis a questão. Toda essa diferença entre o plano do direito e o plano do fato, ressaltada por Milton M. do Nascimento, da qual se segue uma decalagem entre o escrever e o agir, leva também à pergunta de Thiago Vargas,“não seria mais uma das contradições com as quais se poderia acusar Rousseau de paradoxal?” Para responder, recomendo a leitura desse livro do Milton M. do Nascimento e também a edição recém-lançada de Textos de Intervenção Política, de Rousseau, com o escrito de apresentação de Thiago Vargas, “Revoluções imperceptíveis: Rousseau e a concretude política”, de onde 19JR 124 | JUL 23 retomo as palavras do próprio Rousseau, sobre a Córsega, no final do Contrato Social, que muito hoje nos serve: “O valor e a constância com a qual esse bravo povo soube recobrar e defender sua liberdade bem mereceriam que algum sábio homem lhe ensinasse a conservá-la”. Quem será esse sábio homem?
NATÁLIA MARUYAMA é doutora pelo departamento de filosofia da USP e
autora de Rousseau e Helvetius, dentre outros livros.