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Fernando Antonio Pinheiro - 70 - Janeiro de 2001
Vultos e sombras da modernidade
Foto do(a) autor(a) Fernando Antonio Pinheiro

Vultos e sombras da modernidade

Teoria Social e Modernidade no Brasil
Leonardo Avritzer e José Maurício Domingues (orgs.)
Editora da UFMG (Tel. 0/xx/31/3499-4650)
238 págs., R$ 30,00

FERNANDO PINHEIRO

Mais do que um problema sociológico, a modernidade constitui o contexto mesmo do desenvolvimento da sociologia -ao menos para as narrativas que procuram compreendê-la como resposta intelectual para o mundo que emerge do esfacelamento da tradição, conduzido pelas revoluções Francesa e Industrial. O contraste radical entre passado e presente e a consequente sensação de mal-estar num mundo desprovido de uma ligação orgânica entre os quadros de referência para a ação e seu universo social de concretude seriam fenômenos típicos da nova configuração histórica, exigindo uma nova representação da (des)ordem social.
Nesse tipo de construção do sentido da sociologia, a teoria contemporânea permanece às voltas com seus antigos dilemas. No entanto, a modernidade tardia tem notas próprias, com o agravamento do desenraizamento mencionado, que conduz ao investimento da existência social em indivíduos atomizados, com ligações mais e mais abstratas e horizontes de vida tendendo à universalização.
O conjunto de dez artigos que compõem o livro acima realiza um balanço crítico dos instrumentos analíticos desenvolvidos recentemente pela teoria social, tendo como fio condutor a questão da democracia entendida em sentido amplo: não apenas uma forma de governo, mas um tipo de procedimento para a tomada de decisões na esfera pública, o que remete aos temas da cidadania, dos direitos, do reconhecimento, do multiculturalismo e seus correlatos, tratados em profundidade e com riqueza de nuances ao longo dos textos.
Os marcos teóricos adotados surgem do diálogo com a problemática da racionalidade instaurada pela teoria crítica nos anos 30, visando renová-la com a introdução do paradigma da comunicação, que substitui a metafísica do sujeito pela idéia de intersubjetividade. Não por acaso, o grande interlocutor da quase totalidade dos articulistas é Jürgen Habermas.
Do ponto de vista de uma teoria da justiça, o problema fundamental desloca-se da consideração substantiva dos princípios que guiam a distribuição dos direitos, permitindo avaliar o dispositivo como justo, para as condições de formação do consenso que obtenha livremente as regras de repartição dos bens sociais e sua eventual revisão, por meio de discussão pública em que a norma encontre universalidade pelo assentimento de todos os participantes. Esse aspecto do pensamento habermasiano é combatido no trabalho de José Eisenberg que, por intermédio do enfrentamento do viés lógico da questão, procura demonstrar que o autor confunde os processos de produção de consenso e validação de normas.

Um espaço ético
Mas, além de espaço dramatúrgico de manifestação, a esfera pública é também um espaço ético de reconhecimento e o ponto de vista procedimental liga a justiça às condições reais de comunicação política, já que ela depende no limite da possibilidade de dar publicidade aos temas considerados relevantes. Esse aspecto do reconhecimento é tratado por Leonardo Avritzer, que resguarda a virtude reflexiva das mídias modernas que não logram controlar a articulação pelo receptor do sentido das mensagens. Nessa perspectiva, a violência estrutural de uma comunicação sistemicamente limitada pelos interesses corporativos das empresas é relativizada, contornando assim o tema da colonização do mundo da vida pela lógica autonomizada dos sistemas, tão cara a Habermas.
Na mesma direção, José Maurício Domingues reprova a separação sistema/mundo da vida porque, evitando a teoria do valor, se afasta das abstrações reais -cujo conceito cuidadosamente reconstituído a partir de suas fontes é entendido como distintivo da sociedade moderna.
O veio principal da temática do reconhecimento vincula-se à construção de identidades, pondo em cena o dilema entre igualdade e diferença e seu impacto nas noções de cidadania e direito. Josué Pereira da Silva aponta a ancoragem da teoria do reconhecimento na luta moralmente motivada por uma experiência negativa de desrespeito para, admitindo sua dimensão genética, estendê-la à idéia de cidadania que aparece em seu argumento não apenas como ideal normativo, mas estatuto obtido pelo embate social travado pelos excluídos. Se o reconhecimento é vital para a constituição do "self" entendida como intersubjetiva, no plano político é condição para o exercício de uma liberdade positiva.
A partir desse núcleo desdobra-se o problema do multiculturalismo, tratado com diferentes entradas nos textos de Céli Pinto, Jessé Souza e Sérgio Costa e Denilson Werle: dada a pluralidade de grupos com identidade cultural própria nas sociedades complexas, vários deles vítimas de discriminação, a afirmação dos direitos e da formação mesmo da pessoa deve se fundar no princípio liberal de igualdade ou na reivindicação do traço distintivo?
Para os liberais, a aquisição da condição de sujeito de direitos é logicamente anterior à inscrição social específica do indivíduo, devendo o Estado evitar a promoção de qualquer direito que não seja universal. Em outra ponta, os comunitaristas defendem a prioridade da cultura sobre o indivíduo, denunciando a tese liberal como assunção sub-reptícia de uma forma de vida particular que é naturalizada -se não há formação do "self" exterior à comunidade, o Estado deve ser arena de reconhecimento de direitos especiais para identidades culturais historicamente desfavorecidas, como condição para a promoção de uma igualdade efetiva.
Todo o problema, então, remete ao tipo de demanda publicamente justificável e ao modo de representação dos grupos minoritários, cuja viabilização pode chocar-se com a estrutura do Estado democrático. O que é mais dramático quando a injustiça simbólica da ausência de reconhecimento da diferença se alia à desigualdade econômica, como no caso dos negros no Brasil.
O campo dos fluxos entre individual e social é ainda abordado por Héctor Leis e Sérgio Costa, que argumentam que qualquer projeto normativo em relação à esfera da intimidade, mesmo em nome de uma transparência que incremente a reflexividade, destrói a lógica de um espaço fundado na certeza de que os códigos criados são exclusivos; e por Myrian dos Santos, que, a partir do papel da memória na modernidade, recoloca com inventividade a clássica tensão entre teorias da ação e teorias do sistema. Ou mesmo no texto de Gabriel Cohn, que, ao marcar afinidades e distâncias entre Weber e Tocqueville, revela o enraizamento social de um projeto intelectual evitando qualquer tipo de reducionismo.
No conjunto, o livro atesta a maturidade da produção do grupo, mas não deixa de marcar alguns limites. Assim a ausência de contraponto para a perspectiva crítica dominante. Luhmann seria aqui seu porta-voz mais radical, atribuindo à teoria sociológica o pressuposto da reconciliação possível de todas as despossessões, herança iluminista anacrônica convertida em obstáculo epistemológico para a compreensão de um mundo em que mesmo as estruturas da intersubjetividade se desintegrariam sob a regulação da complexidade social por mecanismos de controle autônomo dos processos supostamente participativos. Sente-se também a ausência de referências mais consistentes à realidade brasileira, o que acaba mitigando o louvável esforço de tomar o presente histórico como base empírica -para que a gramática do raciocínio sociológico escape à pura especulação, não pode se afastar da semântica da narrativa histórica. Enfim, dilemas de um tipo de trabalho que precisa se equilibrar entre as coisas da lógica e a lógica das coisas, na expressão de Bourdieu.


Fernando Antonio Pinheiro Filho é doutorando em sociologia na USP.

Fernando Antonio Pinheiro é professor de sociologia da USP.
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