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Fernando Haddad - 28 - Julho de 1997
Vozes dissonantes
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Vozes dissonantes

 

FERNANDO HADDAD

Uma ameaça ronda o mundo: a ameaça da mudez. O capitalismo clássico não podia passar sem ideologia, o que, como todo discurso, não se sustenta sem uma audiência mais ativa e atenta. Depois do colapso do sistema soviético, também conhecido por socialismo realmente existente, o capitalismo pode se dar ao luxo de abrir mão daquele elemento outrora indispensável e adotar uma postura simplesmente cínica, que dispensa interlocutores. Nesse contexto pobre de espírito em que vivemos, a crítica parece impossível e a única coisa que se ouve, na mídia, é o riso frouxo e o blablablá do capital e dos seus gestores, dirigidos a uma audiência entediada.
Dessa perspectiva, "Vozes do Século" aparece, a princípio, como um livro saudosista. Trata-se de uma reunião de entrevistas feitas com os principais representantes do melhor pensamento de esquerda, publicadas entre as décadas de 60 e 80 na mais importante revista socialista contemporânea -a "New Left Review". Na década de 60, podia-se ainda dizer, como o fez Isaac Deutscher numa das entrevistas publicadas, que, se os Estados Unidos se petrificassem num estado de conservadorismo social, "alguns cientistas políticos, talvez de Harvard, teriam de desenvolver a teoria do 'capitalismo em um país'±", numa alusão à teoria stalinista do socialismo em um só país. Ou afirmar, como Lukács, que, "quando tudo tiver sido dito e feito, restarão apenas três pensadores incomparáveis e verdadeiramente grandes no Ocidente: Aristóteles, Hegel e Marx". Na década de 90, entretanto, década do "socialismo em nenhum país, se Deus quiser", vamos indo mesmo de Heidegger e Wittgenstein.
Contudo, vendo de um outro ângulo, aprende-se muito lendo este livro. Em primeiro lugar, num plano mais rasteiro, pode-se dizer que nos ensina a entrevistar um intelectual. As entrevistas coligidas são de uma qualidade a que o leitor brasileiro não está acostumado -exceção feita a poucas boas entrevistas publicadas, entre nós, em revistas acadêmicas e cadernos de cultura-, qualidade essa, diga-se, que não se deve exclusivamente ao nível de excelência dos entrevistados, mas também, como não se deixará de notar, ao brilho dos entrevistadores, dentre os quais, Perry Anderson (editor da NLR durante 25 anos), Paul Ricoeur (que entrevista Lévi-Strauss), Simone de Beauvoir (que faz uma entrevista com Sartre acerca do feminismo) etc.
Num plano mais geral, o livro também tem seus méritos, além, é claro, do evidente valor histórico do material reunido. Lidas com cuidado, as entrevistas revelam a posição dos intelectuais sobre temas da maior relevância e atualidade. A relação sempre problematizada entre filosofia e ciência é explorada por dois estruturalistas franceses, o filósofo Louis Althusser e o antropólogo Claude Lévi-Strauss, e, em certa medida, pelo filósofo húngaro Georg Lukács. O potencial emancipador intrínseco da linguagem é abordado, ainda que superficialmente, pelo linguista Noam Chomsky e pelo teórico da ação comunicativa, Jürgen Habermas.
O anacronismo ou não do conceito de nação é tematizado por Régis Debray, que faz da força desse conceito o pilar de seu questionamento do marxismo, e por Isaac Deutscher, teórico trotskista de orientação internacionalista. Uma avaliação da natureza do Estado soviético é feita pelo economista belga Ernest Mandel, assunto ao qual os historiadores, inexplicavelmente, têm dado pouca atenção. Além disso, encontram-se no livro discussões interessantes sobre as obras literárias e teóricas de Sartre, Gore Vidal, Raymond Williams e Edward Said feitas com esses mesmos autores. Numa das entrevistas com Sartre -ao todo são três- discute-se a relação entre duas das suas principais obras filosóficas, a "Crítica da Razão Dialética" e "O Ser e o Nada", obra recentemente traduzida para o português.
Desse conjunto de entrevistas, 17 no total, as que mais sobressaem são as duas de Habermas e as duas de Lukács. A entrevista intitulada "Um Perfil Filosófico-Político", feita com Habermas, é material importante para os cada vez mais numerosos estudiosos da obra desse autor. Nessa entrevista, que não é inédita em português -foi publicada pela revista "Novos Estudos Cebrap" em 1987-, Habermas mapeia as principais influências que ajudaram a moldar seu pensamento, cujo leque inclui autores como Peirce e Kohlberg, Adorno e Horkheimer, Wittgenstein e Austin, Schütz e Heidegger etc.
Outra entrevista digna de nota é aquela em que Lukács aborda aspectos de seu último trabalho, "Ontologia do Ser Social", obra parcialmente traduzida para o português que tem despertado a atenção de alguns importantes teóricos brasileiros. Nessa obra, Lukács busca reavaliar o relacionamento entre necessidade e liberdade a partir de uma discussão do conceito de trabalho humano, que se distingue do trabalho animal por não ser determinado biologicamente. "A noção de alternativas", diz Lukács, "é básica para o significado do trabalho humano, que por conseguinte é sempre teleológico -ele assinala um objetivo, que é o resultado de uma escolha. Expressa, portanto, a realidade humana. Mas essa liberdade só existe quando se põem em funcionamento forças objetivas, que obedecem às leis da causalidade do universo material".
Por fim, deve-se dizer que o título do livro está envolto numa terrível ironia. Isso porque as vozes do século, de certa forma, jamais foram ouvidas. O mundo padecia, então, de uma surdez de caráter ideológico. Sabe-se, é claro, do namoro de Sartre com o maoísmo, e Lukács chega mesmo a afirmar que "a pior forma de socialismo é melhor para se viver do que a melhor forma de capitalismo", frase que, no Ocidente só teve força retórica com a substituição do binômio socialismo/capitalismo pelo binômio democracia/ditadura. Contudo, todos os entrevistados comungavam um sentimento antistalinista bastante acentuado, o que os colocava numa situação política relativamente isolada. Na orelha do livro, lê-se a expressão que talvez a caracterize melhor: vozes dissonantes. É realmente disso que se trata e é disso que sentimos falta hoje. 

Fernando Haddad é professor de ciência política da USP
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