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Roberto Bolzani - 8 - Novembro de 1995
Volta aos gregos
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Volta aos gregos

 

ROBERTO BOLZANI FILHO

Paidéia - A Formação do Homem Grego
Werner Jaeger Tradução: Artur M. Parreira Martins Fontes, 1413 págs. R$ 48,00

Eis um daqueles estudos que se consagraram como fundamentais não apenas pelo que dizem, mas, também, e principalmente, pelas indagações que provocam no leitor. Algumas dessas indagações merecem registro, particularmente porque tocam em temas sempre presentes no horizonte do helenista.
Sem dúvida, uma característica instigante e polêmica da obra, reconhecida por Jaeger no "Prólogo à Segunda Edição Alemã", é seu método, que esporadicamente se explicita sem jamais receber tratamento específico ou sistemático. Para entendê-lo, é já ilustrativa a advertência para o sentido da palavra "paidéia", normalmente traduzida por "educação": termo de significação demasiado ampla, não expressa um "adestramento em função de fins exteriores", mas sim a "essência própria da educação" (pág. 14). Pode-se inferir daí que não estamos diante de uma "história da educação na Antiguidade", no sentido de uma exposição descritiva das formas, mecanismos e instituições de educação, coligidos à maneira de um agregado. O objetivo será apreender uma "essência", uma "idéia", um tipo que, para além da mudança histórica, "permanece o mesmo" (pág. 3).
Esse tipo é definido como um ideal de homem, um ideal de formação ("Bildung") que, ao longo da história da cultura grega, vai ganhando contornos cada vez mais claros. Essa cultura nada mais é do que a expressão, correspondente às diversas condições históricas, daquele ideal, que permite ao homem "alcançar o fim autêntico da sua vida" (pág. 571). Evocar tal "paidéia" será, assim, aludir a uma "essência humana" (pág. 14), à "imagem do Homem genérico na sua validade universal normativa" (pág. 15), a "leis inevitáveis da natureza humana" (pág. 456), a um "destino vital" (pág. 7), que se vão expressando nesse "locus" privilegiado que é a literatura, no sentido amplo de obra escrita, e que será então objeto de análise. A história da cultura grega é, nessa medida, uma "história do espírito", espírito que é "o único elemento permanente da História" (pág. 476), cuja unidade a noção de "paidéia" permite capturar. Parece valer para Jaeger o que ele próprio afirma de Tucídides e sua concepção de política: "Um mundo regulado por peculiares leis imanentes, que só se podem descobrir se considerarmos os acontecimentos, não isoladamente, mas em ligação com o seu curso total" (pág. 449).
Essa história do espírito é também a história de uma tomada de consciência, de um "ethos consciente e educador" (pág. 231) cada vez mais explícito na produção artística escrita, onde os gênios criadores de cada época sempre expressam o mundo que os cerca sob o prisma, mais ou menos sofisticado e consciente, daquele ideal. Estamos diante de uma evolução: de Homero a Demóstenes, passando pela poesia, pelo discurso político, retórico ou filosófico, é invariavelmente uma solução de continuidade que se encontra; mesmo com algumas inflexões, deparamos com desenvolvimentos, nunca com rupturas radicais. Mas para Jaeger não temos aí uma "evolução no sentido seminaturalista que a investigação histórica costuma empregar" (pág. 60). É sempre um único e mesmo tipo espiritual que vai permanentemente se desdobrando. Não há superação -"o molde que vinha sendo usado até uma certa época não era jogado fora como inútil, mas sim renovado" (pág. 479). Há talvez um refinamento, que encontra seu acabamento no discurso filosófico, o qual, no entanto, permanece tributário de um conteúdo já presente nos arcaicos (págs. 33-36).
Trata-se, então, de pura abstração? Jaeger não o pretende. Esse rótulo valeria para uma leitura "classicista", que pensa uma "humanidade intemporal e absoluta" (pág. 15), negligenciando o caráter eminentemente político do homem grego e as "forças históricas" (pág. 478) que o envolvem. Em suas análises Jaeger procura chamar a atenção para o fato fundamental da "polis", sem o que a noção mesma de "paidéia" não teria sentido (págs. 106-8, 337).
Trata-se, isso sim, de uma abordagem em retrospectiva, prontamente reconhecida (pág. 12) e pautada pelo pensamento de Platão, o "verdadeiro filósofo da paidéia" (pág. 477), "o primeiro a encarar a essência da filosofia como formação de um novo tipo de Homem" (pág. 190). É o momento da plena tomada de consciência do ideal de formação, que já se encontra com nitidez nos sofistas, com quem "a paidéia, no sentido de uma idéia e de uma teoria consciente da educação, entra no mundo e recebe um fundamento racional" (pág. 348), e em Sócrates, "o mais espantoso fenômeno pedagógico da história do Ocidente" (pág. 512). O platonismo, coroando a cultura anterior ao mesmo tempo em que a retoma e organiza, determina também o caminho daquilo que virá (págs. 117, 353, 476). Mesmo Isócrates, "antítese clássica" do platonismo (pág. 1.060), só pode expressar-se como sua negação (pág. 1.204). A grande e difícil tarefa consistirá, portanto, em iluminar, com uma intuição que parece certeira no caso do socratismo-platonismo e de seu pano de fundo (3º e 4º livros), todo o amplo leque da literatura anterior, da poesia arcaica a Tucídides (1º e 2º livros).
Não é difícil interpretar as considerações histórico-metodológicas de Jaeger e sua terminologia no sentido de uma filosofia da história que, aos olhos do historiador e do helenista, seria altamente discutível, para não dizer datada. Importa, contudo, delas retirar um tema de reflexão que a eles certamente interessa: ainda é possível e pertinente uma abordagem da cultura grega em que as idéias como as de "unidade", "universalidade" e "evolução" tenham lugar? Questão apenas aparentemente banal se dirigida a uma postura intelectual excessivamente especialista, que muitas vezes condena como extravagantes análises totalizantes como essa. Vale a pena considerar se um "ideal de rigor", que prescreve recortar com economia objeto e método, necessariamente deve proibir-nos semelhantes objetivos.
Nem por isso o monumental estudo de Jaeger deixa de fornecer material de trabalho ao especialista. Mesmo torcendo-se o nariz para os pressupostos, poder-se-ão apreciar, em cada disciplina, os resultados. A busca do todo, aqui, não significa prejuízo das partes, não há redução grosseira. Do alto de uma vastíssima erudição nunca usada inutilmente, a obra tem vários interlocutores. Assim, a literatura encontrará uma concepção de poesia e uma análise, sucinta mas relevante, dos poemas de Homero, e ainda os líricos, as principais tragédias e comédias; a sociologia, a teoria política e a história poderão se debruçar sobre uma interpretação da função e do sentido da "polis", do discurso político de Sólon e Péricles, da retórica e de Tucídides; para a filosofia, um tratamento do clássico tema da relação entre mito e razão, do tradicional "problema de Sócrates" e -verdadeiro livro dentro do livro- uma interpretação do platonismo e cada um dos diálogos, com exceção do "Timeu". Eis por que, até ironicamente, a "Paidéia" pode ser lida, sem maiores dificuldades, como obra de consulta.
Uma última observação, que talvez permita introduzir mais uma pergunta e explicar o próprio procedimento de Jaeger: não estamos diante de motivações puramente "teóricas". Retomar os gregos, aqui, é também refletir sobre o que somos ou o que nos tornamos: "Quando a nossa cultura toda, abalada por uma experiência histórica monstruosa, se vê forçada a um novo exame dos seus próprios fundamentos, propõe-se outra vez à investigação da Antiguidade o problema, último e decisivo para o nosso próprio destino, da forma e do valor da educação clássica" (pág. 20). É com os olhos voltados para o presente e para a possibilidade de um "futuro humanismo" (pág. 17) que se retorna ao passado para recuperar esse ideal clássico de "formação".
Também neste caso muitos poderão dar de ombros, agora talvez com um leve e solidário sorriso para esse otimismo singelo, pois estamos em 1936... Mas não poderão se furtar a reconhecer que nos encontramos perante mais um desafio que a "Paidéia" nos lança: faz sentido ainda empreender uma "volta aos gregos"? O estudo da Antiguidade pode nos proporcionar subsídios para pensar os problemas de nossa época, ou estamos irremediavelmente fadados a vê-la com lentes de enciclopédia? Saudável interrogação que às vezes assalta o helenista e que Jaeger, à sua maneira e em sua época, procurou responder. 

Roberto Bolzani é professor do departamento de filosofia da USP.
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