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Ronald Raminelli - 3 - Junho de 1995
Visão do Renascimento
Foto do(a) autor(a) Ronald Raminelli

Visão do Renascimento

 

RONALDO RAMINELLI

RONALD RAMINELLI
O Renascimento
Teresa Aline Pereira de Queiroz Edusp, 152 págs. R$ 29,75
Em O Renascimento" -livro que inaugura a coleção de text-books" da Edusp-, Teresa Aline Pereira de Queiroz escreveu uma bela narrativa sobre a relação entre a arte e a política nas cidades italianas. A obra possui o mérito de divulgar alguns estudos clássicos sobre o Renascimento para além das fronteiras da universidade. Entretanto, nela inexistem avanços historiográficos, ou aprofundamento dos debates sobre o tema.
No primeiro capítulo, Considerações sobre a idéia de renascimento", a autora procurou demonstrar que, desde o século passado, os historiadores se preocuparam em focalizar as inovações na arte e na política das cidades italianas. Em meados do século 19, o suíço Jacob Burckhardt concebia o Quattrocento" italiano não só como uma recuperação do legado clássico, mas também como renovação da vida e da consciência humana. Desde então, a historiografia percorre os caminhos traçados pelo mestre suíço, seja para desenvolver sua abordagem, seja para contestar seus pressupostos.
O holandês Johan Huizinga refletiu sobre a existência ou não de um Renascimento e concluiu que o mundo medieval ainda exercia grande influência sobre o pensamento dos italianos. Lucien Febvre chegou a um resultado semelhante ao constatar a importância da religiosidade na obra de Rabelais. Apesar disto, a análise de Burckhardt ganhou adeptos na historiografia do século 20 e as inovações dos mestres italianos foram abordadas nos estudos de Erwin Panofsky, Pierre Francastel e Michael Baxandall, entre outros.
Longe de ser uma categoria imutável e ideal, o Renascimento sobreviveu na diversidade de metodologias históricas e na compreensão possível da contemporaneidade" (pág. 33). Em sua reflexão historiográfica, porém, a autora não incluiu alguns estudos fundamentais, de que cito apenas dois: O Homem do Renascimento", de Agnes Heller, e A Perspectiva Como Forma Simbólica", de Erwin Panofsky.
No segundo capítulo, O homem, medida de todas as coisas. Os humanistas", percorrem-se as inovações do Renascimento na política, na teologia, nas artes plásticas e na arquitetura, enfatizando-se a complexidade das transformações ocorridas na Itália dos séculos 15 e 16. Os mestres renascentistas conceberam o homem como parte da natureza, com relação à qual ele perdeu a antiga supremacia, e buscaram proporções naturais entre as formas humanas e o meio circundante. As pesquisas de Leonardo da Vinci demonstram a preocupação com a anatomia humana e a necessidade de conceber as imagens por meio do rigor matemático. Em outros aspectos, os humanistas pouco diferiram dos pensadores medievais, pois acreditavam que a filosofia estava de acordo com os ensinamentos da religião. Torna-se, então, impossível conceber os humanistas como precursores da modernidade.
Em seguida (terceiro e quarto capítulos, As cidades e o poder. O caso de Florença" e Política, criação intelectual e artística"), a autora centra a análise na cidade de Florença para destacar a importância política no florescimento das artes, sem se esquecer das inovações da arte veneziana. A partir do século 12, as comunas italianas afastaram-se paulatinamente das autoridades religiosas e expandiram-se para além dos limites da cidade. O processo viabilizou o aparecimento de uma consciência cívica local.
A independência de Florença contribuiu para a criação intelectual e estética, pois o próprio civismo criaria uma coerência estético-política. O modelo florentino influenciaria as demais cidades italianas e os centros da Europa ocidental; nele, a arte renascentista ganha nova racionalidade: o gênio artístico deixa de ser um dom divino e torna-se o resultado da conjuntura própria às cidades italianas do Quattrocento", onde a elite citadina concebia a arte como forma de expressar o poder presente e a glória dos antepassados.
Nesse momento, inicia-se um processo de clivagem social: o povo não mais desfrutaria das inovações artísticas, o luxo e a ostentação representariam as fronteiras entre os donos do poder e o povo. Os ricos construíram, então, palácios cercados de áreas privadas e isolados da rua. Fenômeno semelhante acometeu o relacionamento entre intelectuais e poderosos. Os humanistas florentinos eram políticos ou viviam sob a tutela dos governantes, pois a política se fechava para a maioria dos cidadãos e se tornava um ofício de poucos, restava aos intelectuais ou a bajulação ou o refúgio no platonismo, na melancolia, na vida privada" (pág. 85). Maquiavel foi uma vítima célebre desse sistema.
O Renascimento transbordou das fronteiras italianas e favoreceu o surgimento de manifestações intelectuais e artísticas originais (assunto tratado no quinto capítulo, As relações da Itália com a Europa"). Drer, Shakespeare, Erasmo e Lutero respiraram as brisas vindas do sul e renovaram, segundo os princípios do norte, o pensamento do século 16 europeu. Porém, a autoridade dos textos antigos, das ruínas e das escrituras permaneceu intacta, e a religiosidade não foi abalada com as inovações dos mestres italianos. A onipresença de Deus ainda determinaria as obras dos homens. No entanto, conclui a autora, a sensação de abandono, de impotência diante do universo parece ser mais consciente" em Leonardo e Michelangelo (pág. 141). Deste modo, o livro contesta, em parte, as teses de Burckhardt e procura demonstrar que os italianos promoveram inovações nas artes e na política sem romper com as tradições religiosas do medievo.
A tarefa de traduzir os códigos acadêmicos para uma linguagem clara e acessível é, porém, árdua, e enfrenta obstáculos quase intransponíveis. No intuito de facilitar a comunicação, acaba-se por desconsiderar conceitos e minimizar a complexidade dos eventos, construindo um texto que, apesar de belo, discorre sobre generalidades.
O resultado final é de boa qualidade, mas há senões: preocupado em mostrar as diversas facetas do fenômeno histórico, o trabalho não chega, entretanto, a esclarecer de modo satisfatório conceitos da maior importância para um entendimento adequado do tema. Assim, a autora superestimou a capacidade do público leigo em compreender expressões como virtú civile" (pág. 85); figuração matemática do espaço (pág. 94); condottiere" (pág. 97); trompe-l'oeil" (pág. 107) e neoplatonismo (passim), que não são explicados no texto. Estes, no entanto, são problemas inerentes às obras dedicadas a leitores pouco habituados com debates acadêmicos.

RONALD RAMINELLI é professor de história da Universidade Federal do Paraná 

Ronald Raminelli é professor de história da Universidade Federal do Paraná.
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