Distensos verões: memórias,
de Miriam Vieira da Cunha, é um conjunto de textos evocativos – narrativas,
descrições, devaneios – que compõem um mural significativo do que a autora
confidenciou serem suas “estrepulias pelo mundo”. Livro de leitura fluente e
agradável, mas que para além de sua superfície nos proporciona material para
refletir acerca de questões humanas, demasiado humanas.
Em primeiro lugar, não se trata de uma
autobiografia, pelo menos no sentido convencional do termo. Geralmente uma
autobiografia busca, por meio da organização cronológica de eventos da vida de
uma pessoa, construir uma “trajetória”, um percurso quase sempre linear e ancorado
num “sentido” objetivo. Uma pretensão que muitas vezes resvala para a
autoidealização, quando não para a autopromoção (até o Justin Bieber tem
autobiografia!). Quase sempre as autobiografias carregam uma certa dose de
cabotinismo, de presunção.
Já a escrita memorialística, embora não
flerte necessariamente com o compromisso da objetividade, com o “sentido” das
coisas, pode ser uma excelente oportunidade de debruçar-se sobre si mesmo, de recuperar
trajetórias e incidentes, de avaliar escolhas (e talvez desculpá-las), de rever
– ainda que mentalmente – algumas das pessoas que foram determinantes em
aspectos de nossa vida. Como observou Walter Benjamin, “a memória não é um
instrumento para a exploração do passado; é, antes, o meio. É o meio onde se
deu a vivência, assim como o solo é o meio no qual as antigas cidades estão
soterradas.” Em sintonia com essa perspectiva, Distensos verões nos
convida a passear pelas vivências da autora, a escavar com ela o solo de suas
reminiscências. Nessa arqueologia recuperamos sons, cheiros, pessoas, captadas
em quadros que se sucedem na forma de capítulos do livro, recompensas que a
escavação de Miriam nos proporciona, aquilo que Benjamin descreve como “as
imagens que, desprendidas de todas as conexões mais primitivas, ficam como
preciosidades nos sóbrios aposentos de nosso entendimento tardio, igual a
torsos na galeria do colecionador.”
O livro alterna passagens evocativas, que
descrevem ou enumeram pensamentos, músicas, cheiros ou paisagens, evocando
climas e ambientes, com passagens mais propriamente narrativas, que encadeiam
ações mais localizadas ou um conjunto de acontecimentos com ligação entre si. Um
bom exemplo do primeiro tipo de passagem encontra-se no capítulo “Sampa, um dia
qualquer, anos 80”, onde ela se pergunta “Onde o equilíbrio? As coisas mais
bonitas estão nos limites? As que não chegam a lugar nenhum, mas se sustentam
entre dois mundos, como nós?” Já os capítulos com características mais
narrativas nos brindam com histórias vividas, singulares ou banais, com aquele
ar de “causo” que os bons contadores sabem emprestar ao seu texto: de driblar o
bilheteiro do trem em Estocolmo; de dormir na praia, em Salvador; de tentar
entrar de penetra numa festa de indianos em Moçambique – tudo ganha certo ar de
aventura.
Por outro lado, essa memória pessoal só
tem sentido no contexto de uma memória social mais ampla. Nesse sentido, o
livro possui marcas de uma determinada geração, a de Miriam e de muitos amigos,
que vivenciaram o ambiente opressivo da ditadura no Brasil, independentemente
ou não de militância política, e que fizeram da viagem, da exploração de outras
terras, uma oportunidade de respirar mais livremente e viver mais plenamente. Mas
esse clima de época não era exclusivamente restritivo – havia toda uma produção
artística e cultural que envolvia as pessoas e os ambientes retratados por
Miriam, que possuía um elemento de vibração própria, ampliada pelas trocas
afetivas e intelectuais entre os amigos.
Estas trocas afetivas e intelectuais são
também a chave para leitores de outras gerações construírem suas “afinidades
eletivas” com a autora. Em muitas passagens, me senti saboreando os mesmos
pratos que a autora descreve, ou participando das conversas nonsense que
brotam nas conversas com amigos – quem nunca? Mas pessoalmente o que mais me
marcou em termos de construção de uma empatia existencial foi a música –
elemento sempre presente nas memórias evocadas. Nesse sentido, Miriam é uma
apreciadora de amplo espectro e muito bom gosto (vai aí uma certa presunção de
quem se identificou com o repertório): Gismonti, Piazzola, Pink Floyd, Milton
Nascimento, Marley, Caetano, Chet Baker, Djavan, Keith Jarrett, Dylan, Melodia
... a lista é grande, e garante ao livro uma “trilha sonora” de primeira linha.
Finalmente, vale lembrar que um livro de
memórias também é um gesto de generosidade: a autora compartilha conosco seus
tesouros pessoais, franqueando-nos o acesso as suas reminiscências. Saímos da
leitura de Distensos verões com a nostalgia do que não vimos nem vivemos
pessoalmente, mas como se as paisagens e os amigos de Miriam também fossem
nossos.
MARCO ANTONIO DE
ALMEIDA é professor do departamento de educação da Faculdade de Filosofia,
Ciências e Letras de Ribeirão Preto