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Marco Antonio de Almeida - 120 - Setembro de 2021
Uma escrita memorialística
Viagens e recordações de uma bibliotecária singular
Foto da capa do livro Distensos verões: memórias
Distensos verões: memórias
Autor: Miriam Vieira da Cunha
Editora: Insular - 242 páginas
Foto do(a) autor(a) Marco Antonio de Almeida

Distensos verões: memórias, de Miriam Vieira da Cunha, é um conjunto de textos evocativos – narrativas, descrições, devaneios – que compõem um mural significativo do que a autora confidenciou serem suas “estrepulias pelo mundo”. Livro de leitura fluente e agradável, mas que para além de sua superfície nos proporciona material para refletir acerca de questões humanas, demasiado humanas.

Em primeiro lugar, não se trata de uma autobiografia, pelo menos no sentido convencional do termo. Geralmente uma autobiografia busca, por meio da organização cronológica de eventos da vida de uma pessoa, construir uma “trajetória”, um percurso quase sempre linear e ancorado num “sentido” objetivo. Uma pretensão que muitas vezes resvala para a autoidealização, quando não para a autopromoção (até o Justin Bieber tem autobiografia!). Quase sempre as autobiografias carregam uma certa dose de cabotinismo, de presunção.

Já a escrita memorialística, embora não flerte necessariamente com o compromisso da objetividade, com o “sentido” das coisas, pode ser uma excelente oportunidade de debruçar-se sobre si mesmo, de recuperar trajetórias e incidentes, de avaliar escolhas (e talvez desculpá-las), de rever – ainda que mentalmente – algumas das pessoas que foram determinantes em aspectos de nossa vida. Como observou Walter Benjamin, “a memória não é um instrumento para a exploração do passado; é, antes, o meio. É o meio onde se deu a vivência, assim como o solo é o meio no qual as antigas cidades estão soterradas.” Em sintonia com essa perspectiva, Distensos verões nos convida a passear pelas vivências da autora, a escavar com ela o solo de suas reminiscências. Nessa arqueologia recuperamos sons, cheiros, pessoas, captadas em quadros que se sucedem na forma de capítulos do livro, recompensas que a escavação de Miriam nos proporciona, aquilo que Benjamin descreve como “as imagens que, desprendidas de todas as conexões mais primitivas, ficam como preciosidades nos sóbrios aposentos de nosso entendimento tardio, igual a torsos na galeria do colecionador.”

O livro alterna passagens evocativas, que descrevem ou enumeram pensamentos, músicas, cheiros ou paisagens, evocando climas e ambientes, com passagens mais propriamente narrativas, que encadeiam ações mais localizadas ou um conjunto de acontecimentos com ligação entre si. Um bom exemplo do primeiro tipo de passagem encontra-se no capítulo “Sampa, um dia qualquer, anos 80”, onde ela se pergunta “Onde o equilíbrio? As coisas mais bonitas estão nos limites? As que não chegam a lugar nenhum, mas se sustentam entre dois mundos, como nós?” Já os capítulos com características mais narrativas nos brindam com histórias vividas, singulares ou banais, com aquele ar de “causo” que os bons contadores sabem emprestar ao seu texto: de driblar o bilheteiro do trem em Estocolmo; de dormir na praia, em Salvador; de tentar entrar de penetra numa festa de indianos em Moçambique – tudo ganha certo ar de aventura.

Por outro lado, essa memória pessoal só tem sentido no contexto de uma memória social mais ampla. Nesse sentido, o livro possui marcas de uma determinada geração, a de Miriam e de muitos amigos, que vivenciaram o ambiente opressivo da ditadura no Brasil, independentemente ou não de militância política, e que fizeram da viagem, da exploração de outras terras, uma oportunidade de respirar mais livremente e viver mais plenamente. Mas esse clima de época não era exclusivamente restritivo – havia toda uma produção artística e cultural que envolvia as pessoas e os ambientes retratados por Miriam, que possuía um elemento de vibração própria, ampliada pelas trocas afetivas e intelectuais entre os amigos.

Estas trocas afetivas e intelectuais são também a chave para leitores de outras gerações construírem suas “afinidades eletivas” com a autora. Em muitas passagens, me senti saboreando os mesmos pratos que a autora descreve, ou participando das conversas nonsense que brotam nas conversas com amigos – quem nunca? Mas pessoalmente o que mais me marcou em termos de construção de uma empatia existencial foi a música – elemento sempre presente nas memórias evocadas. Nesse sentido, Miriam é uma apreciadora de amplo espectro e muito bom gosto (vai aí uma certa presunção de quem se identificou com o repertório): Gismonti, Piazzola, Pink Floyd, Milton Nascimento, Marley, Caetano, Chet Baker, Djavan, Keith Jarrett, Dylan, Melodia ... a lista é grande, e garante ao livro uma “trilha sonora” de primeira linha.

Finalmente, vale lembrar que um livro de memórias também é um gesto de generosidade: a autora compartilha conosco seus tesouros pessoais, franqueando-nos o acesso as suas reminiscências. Saímos da leitura de Distensos verões com a nostalgia do que não vimos nem vivemos pessoalmente, mas como se as paisagens e os amigos de Miriam também fossem nossos.

 

MARCO ANTONIO DE ALMEIDA é professor do departamento de educação da Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras de Ribeirão Preto

 

Marco Antonio de Almeida
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