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Pedro Fernandes Galé - 122 - Julho de 2022
Uma delicada cartografia da modernidade
Foto da capa do livro A paixão da igualdade
A paixão da igualdade
Autor: Vinicius de Figueiredo
Editora: Relicário Edições - 276 páginas
Foto do(a) autor(a) Pedro Fernandes Galé

Mudam-se os tempos, mudam-se as vontades

                                                                    Muda-se o ser, muda-se a confiança;

Todo o mundo é composto de mudança,

                                                                    Tomando sempre novas qualidades

(Camões, Sonetos, LII)

 

O livro A paixão da igualdade, de Vinicius de Figueiredo, é daqueles que nos inserem em uma história cujo primeiro impulso se apresenta na forma de pergunta: “Como foi que chegamos a essa combinação entre igualdade e liberdade que, de tão familiar, põe em xeque nossa identidade como sujeitos toda vez que se vê ameaçada?” (p. 9). Ao explorar os arranjos desse binômio, o que o leitor pode acompanhar, quase que a contrapelo, é a formação de aspectos centrais do que chamamos de subjetividade moderna. Não se trata de mergulhar nas vias do espírito, mas de acompanhar, diante de um recorte muito singular “as relações existentes entre processo social e esquemas discursivos” (p.10). Esse arranjo, que se faz desdobrar desde o século XVII, apresenta aspectos centrais da formação de uma concepção de sujeito que se desenha, entre caminhos e descaminhos, ordenamentos e inversões, num trajeto que coloca em cena momentos e movimentos dos mais singulares. A obra em questão parece estar afinada com os dizeres do saudoso Professor Luiz Roberto Monzani na apresentação aos Diálogos sobre a pluralidade dos mundos, de Fontelle: “é praticamente impossível compreender com clareza todo o desenvolvimento da problemática conceitual do século XVIII se não acompanhamos o conjunto lento de uma dilaceração conceitual que acontece nesse hiato onde o clássico convive com o novo e novas formas de percepção emergem lenta mas inexoravelmente” (Op. Cit. p. 9). Ao investigar a emergência do indivíduo moral na França o livro salienta diversos aspectos desse dilaceramento que está na base do que se convenciona chamar de moderno ou modernidade.

            Esse viés que, já desde o subtítulo, “uma genealogia do sujeito moral na França”, poderia indicar uma genealogia da subjetividade que visasse as sendas do espírito, ou ainda mergulhos sucessivos em diversas facetas do sujeito, se faz diante do diapasão de modelos filosóficos, e até mesmo teológicos, que se apresentam como que de modo a afinar a sucessão de mudanças sociais e alterações do horizonte normativo nas quais os interagentes se veem inseridos, ainda que sem qualquer sorte de sujeição. Livros desse tipo devem ser observados em sua totalidade; escapando a qualquer tipo de censura de especialista que ele possa mobilizar, seu lastro é apresentado no todo e é a penas diante do todo, ou seja, do trajeto para o qual a mola propulsora, tensionada entre liberdade e igualdade, parece nos projetar, que podemos apreciar os movimentos demonstrados pela grande gama de aspectos levantados. Longe de tratar de uma sequência de teorias e de a partir disso construir um panorama, o livro parece caminhar e buscar mover objetos dos mais sortidos para que se figure um tipo de sujeito que se vai formando num constante jogo de afastamento e aproximação em relação a uma série de sistematizações e de modelos discursivos e sociais.

O que parece estar em curso aqui é um tipo de abordagem na qual o autor, como nos indica, mais uma vez, o professor Monzani em sua introdução ao Desejo e prazer na idade moderna, busca “seguir um filão [...] trabalhando retroativamente, como um detetive que constrói uma história” (1995, p.15). É diante desse compromisso, de tratar uma questão que se desenvolve historicamente, que os movimentos e análises do livro de Vinicius de Figueiredo ganham sabor e nos compelem a seguir seus passos diante de suas indicações de vias e transformações da trama conceitual. As caracterizações se desenvolvem e recuam diante de um sujeito que a cada passo se vê transformado. Diante desse intenso sobrevoo (conforme a descrição do trajeto feita pelo autor em sua conclusão), o leitor se vê alçado a um tipo de tratamento das questões que se coloca à prova diante dos mais diversos objetos, tais como pinturas, tragédias, romances e, é claro, obras dos filósofos.

Em nenhum dos casos acima citados podemos dizer que o tratamento se dê no âmbito ilustrativo ou exemplar diante de qualquer movimento conceitual, muito menos estamos diante de um quadro epistemológico em vias de confirmação. As tragédias de Corneille e Racine, as pinturas de Le Brun e Watteau, os romances de Madame de La Fayette não nos são apresentados como que constrangidos nos círculos propostos pelas obras de Descartes, Pascal, Rousseau e Diderot. O aspecto artístico, na falta de uma palavra melhor, não se apresenta de modo a exemplificar mudanças conceituais já estabelecidas. Obras de arte são elencadas como lugares de tratamento e investigação; elas participam, são parte dessa transformação. Elas são como que a apresentação sensível de uma sucessão de mudanças e de suas respectivas reações. E é na apreciação dada individualmente a cada um desses lugares, provenientes tanto do elemento artístico como do teórico, que poderia residir o calcanhar de Aquiles do livro, porém, e outra vez retomamos as palavras de Monzani, mesmo sabendo que “o especialista neste ou naquele autor poderá sentir-se decepcionado com o tratamento a eles conferido”, devemos ter “consciência dessa limitação, mas é a consequência de inserir um autor ou texto numa determinada questão que se desenrola historicamente” (1995, p. 15).

É pela própria inserção de autores, textos, escolas e quadros num trajeto histórico que a obra deve ser lida, não se deve buscar, em obras desse caráter, uma concordância unívoca entre os autores de filosofia e os artistas, entre aspectos sociais e discursivos. Devemos julgar a cartografia não pelo vão detalhe, mas pela apresentação das vias percorridas. Não estamos aqui a dizer que haja um tratamento insuficiente de qualquer dos objetos tratados, mas indicando que é na força dos argumentos e de sua ordenação que reside a grande virtude do livro e não no esgotamento de questões que nos acometem diante da indicação de autores e artistas. Não devemos ler A paixão da igualdade como se lê um livro de comentários a sistemas e textos; o livro trata de uma investigação, por vezes difusa e por vezes contraída, acerca de aspectos cruciais da idade moderna. A questão base sobre a modulação entre liberdade e igualdade ganha nessas linhas as mais diversas facetas e se vê metamorfosear em questões das mais destacadas acerca da modernidade: sujeito e sociedade, formas e normas, subjetividade e intersubjetividade. Questões que embora mantenham um substrato comum, avançam na direção de um indivíduo moral que, no mais das vezes, embora tenha nascido na França, parece adquirir sua certidão e cidadania em terras germânicas.

Essa história que nos mostra a grande gama de possibilidades de se dizer o indivíduo moderno, segundo Vinicius, tem, entre seus motes, a ascensão e o declínio do herói clássico. Nessa construção acompanhamos inicialmente como “tanto o herói corneilliano quanto o virtuoso cartesiano atuam no sentido de instaurar ordem ali onde prevalece a arbitrariedade do mecanismo e a contingência da matéria” (p. 79). Esse, digamos, substrato clássico não trataria da retomada de valores antigos e de um mundo que os contempla e permite que sua ação virtuosa se imponha. Os heróis aqui indicados se veem diante de um mundo novo, de uma trama conceitual e socialmente diversa.

Diante dessa apresentação, quase que à contraluz, um traço muito rico, e pouco explorado (não por qualquer sorte de falha do texto, mas por não passar de uma indicação colateral), se coloca: o fato de O Cortesão, de Baltasar Castiglione dar lugar ao O herói, de outro Baltasar, o Gracián, na preferência do público leitor (cf. p. 67). Eis aqui um exemplo claro de como, na posição de leitores, podemos ser mesquinhos diante de uma obra como A Paixão da Igualdade; ao analisar esse aspecto, indicado por Peter Burke, o autor não nos indica um outro texto de Gracián, que segue a linha iniciada em O herói, a saber, O discreto, no qual o autor, um jesuíta sui generis, declara ao final algo que jogaria água no moinho do livro que estamos a comentar: “Importa muito a prudente reflexão sobre as coisas, pois o que em primeira instância passa como que em voo, depois se alcança em revista.” (Op. Cit., XXV).

Esse preterimento de Castiglione, para além da reação com o poder, também se dá, no sentido de que a apresentação deste discreto, que se vê humildemente postado diante da grandeza de Nosso Senhor, tem na reflexão uma de suas mais importantes características. A sprezzatura, algo como uma pretensa displicência que “oculte a arte e demonstre que o que se faz e diz é feito sem esforço e quase sem pensar” (O cortesão, 2018, p. 43) de Castiglione parece dar lugar a algo medido e refletido, num modelo que indica, nas palavras de Vinicius de Figueiredo, o “uso pessoal da reflexão como fator de direcionamento das paixões” (p. 134). É claro que, se lembrarmos que uma das tópicas mais caras à prosa de Gracián seja a do desengaño, um tal quadro não se apresentaria como isento de outras novas problematizações. Não nos faltariam subterrâneos a indicar nesse quadro histórico de superfície apresentado numa “genealogia” e conduzido sob a propulsão tensionada entre a liberdade e a igualdade. Caberia aos leitores, em seus diversos pontos de partida e universos de referências, dar ainda mais corpo a essa história tão bem traçada no livro, ainda que a contrapelo.

Consistiria em erro grave se um desavisado leitor, a partir dessa indicação subterrânea, se colocasse a buscar falhas e fissuras nas caracterizações apresentadas, assim como nos movimentos empreendidos pelo texto. Nesse tipo de obra, a intenção nunca é a de esgotar ou fechar as questões; tal sorte de livro, a despeito da adesão ou não a suas indicações, opera no mais das vezes como incitação ao leitor, transbordando suas passagens para além de suas próprias fronteiras, indicações e arranjos, fermentando no leitor uma série de outros desdobramentos que o livro não indica (e nem deveria indicar!), mas que enaltecem a grandeza desse tipo de construção. Aquilo que numa leitura mesquinha pode ser entendido como lacunar, deve ser entendido como convite; e essa série de convites que a obra apresenta constitui, talvez, a maior de suas grandes virtudes.

Os sucessivos flancos a que o autor nos projeta, nos quais entramos por conta própria ao extrapolarmos os limites a que a obra se vê circunscrita, só nos remetem ao que o trajeto tem de fundamental, servir de mapa, indicar muitas possibilidades. Isso se deve ao adensamento hercúleo que uma obra desse tipo tem de colocar em prática. Buscar ranhuras na construção, ato míope por excelência, impediria que o leitor siga as veredas que uma obra dessa sorte tem o mérito de indicar. O caminho a que somos levados se faz de modo que a cada novo passo uma gama de inquietações assole o leitor. Grosso modo, poderíamos expor em linhas muito generalizantes essa riquíssima via em seus grandes cruzamentos: da dupla conceitual e variegada em seus arranjos, liberdade e igualdade, o autor nos leva ao que chama de moral de relevo, destacando, no passo seguinte, um indivíduo nivelado que se vê cônscio da desmedida entre ele e a natureza que o cerca, seguindo, então, para o exame das virtudes de superfície do século XVIII, frutos de certo desacordo entre a afirmação do sujeito e o seu cotidiano, desembocando ao final numa inversão do dualismo operada por Rousseau e Diderot (diante deste último, o autor de Jacques o Fatalista, é notável o esforço para se fazer ressoar um materialismo que mantenha algum tipo de ligação com o dualismo). Esse percurso não se faz de modo pacífico e sem problemas a serem percebidos, mas mantém seu vigor enquanto senda especulativa pela perspicácia dos movimentos conceituais sugeridos em suas linhas. Nesse sentido, podemos dizer que A paixão da igualdade, se lança sempre para além de suas próprias caracterizações a cada nova leitura, a cada novo leitor.

Ainda uma palavra – pois não estamos a pretender qualquer sorte de análise exaustiva deste livro, que é, em última análise, por sua amplidão, irresenhável – sobre os passos dados diante de algumas das obras artísticas, ou ainda, obras que não se pretendem conceituais. Vinicius de Figueiredo parece estar afinado com a célebre declaração de Habermas sobre Schiller de que “a própria arte é o médium pelo qual o gênero humano se forma para a verdadeira liberdade política” (O discurso filosófico da modernidade, 2002, p. 66). Digo afinado, pois aqui há uma expansão, a arte também parece manter relações claras com a igualdade, ou melhor, com o arranjo movente entre liberdade e igualdade; os móbiles do livro, como já sabemos. É diante do trato com as obras, sejam elas tragédias clássicas francesas, novelas galantes, pinturas do que se convencionou chamar de rococó, ou até mesmo os contos filosóficos de Voltaire, que percebemos marcas distintivas de uma modernidade em construção, ou ainda, da eclosão de uma subjetividade em constante consolidação e desarranjo com o mundo.

Longe de tratar as obras como apresentações artisticamente determinadas da mudança em curso, é a partir delas que se desenvolvem argumentações que visam indicar mudanças no plano político, conceitual e social descortinadas de modo a admitir um espírito de época figurado ou poetizado. Esse espírito se apresenta, na construção da argumentação, de modo mais eficaz nas artes que na teoria usualmente a ele vinculada; nas palavras de Vinicius: “Nelas , porém, assim como ocorre na discussão de alguns quadros e romances, os deslocamentos semânticos que culminam na reinterpretação de conceitos são mais perceptíveis precisamente porque as escolhas efetuadas não são orientadas por uma aplicação estritamente doutrinal. Visto aí serem estilizadas, tornam-se mais evidentes.” (p. 25).

Em algumas das mais belas linhas do livro, as sobre Watteau, o autor parece lançar mão desse recurso prolífero diante da imagem, uma espécie de exegese que se ampara num “solo comum da humanidade” que “ganha contornos específicos” (p. 135). O que nos apareceria nas imagens do pintor de Peregrinação à Citera é uma apresentação de um momento presente que, apesar de ganhar o mundo estático dos quadros, “é pago à vista pelos disfrutes ocasionais” (p. 137). O pintor, a reboque desse universo pictórico que se evidencia pela “falta de cosmos”, pela caracterização da cena como se “por força de habitarem um parêntese do discurso principal, revelassem a substância dramática daquilo que é acessório, mediano e não heroico” (Ibid.), surge como dimensão pictórica de um deslocamento que faz ressaltar “dois polos complementares: fragilidade e dissipação” (p.141).

Diante desse pintor às voltas com “o potencial narrativo da vida mundana”, as “questões liberadas pela ruptura com a moral de relevo foram objeto de uma interpretação abrangente, que empregou o descompromisso da pintura de gênero para identificar, sob a aparência do prosaico, a novidade do indivíduo sem pertencimento” (p.143). É diante desse novo regime da imagem que o livro nos encaminha para a categoria da composição – e esta já nos é indicada desde as suas primeiras linhas, quando na apresentação lemos a seguinte linha: “O indivíduo virtuoso é aquele que se posiciona no centro da compositio.” (p. 14). Aquilo que para Baxandall, em seu Giotto e os oradores, (2018, p. 150) tratava uma “metáfora bastante precisa que transfere à pintura um modelo organizacional proveniente da retórica”, ganha aqui uma caracterização muito diversa, ligada ao herói e a sua centralidade na pintura da história. Caracterizar essa composição pode ter sido o grande passo dado por Alberti no século XV, no seu tratado Da pintura. A relação do desenho, ou melhor, da circunscrição, com a composição pode ser entendida como a transferência, metafórica, talvez, das tópicas apreciadas pelo ambiente retórico-humanista ao ofício do pintor, enaltecendo-o pelo próprio modo como a pintura pode ser transmitida como método e doutrina: “Digo que a composição é aquele processo de pintar pelo qual as partes se compõem na obra pintada. A grande obra do pintor é a história; os corpos são partes dessa história; os membros são partes desses corpos; as superfícies são partes dos membros.” (Da pintura, 2018, p. 105).

            A composição designa em grande parte das doutrinas das artes uma hierarquia de quatro níveis em uma apresentação que, a partir do rudimentar, o desenho/circunscrição, apresenta uma estrutura que dá validade ao papel de cada elemento do quadro disposto diante do observador. Superfície, membros, corpos, história cumprem a transferência, também apontada por Baxandall (Cf. 2018, p. 151), de um conceito técnico elementar, advindo das artes do discurso, onde a palavra é usada para formar a frase, frase forma a cláusula, e a cláusula, por sua vez, funda o período. Esse modelo transfere os quesitos organizacionais do discurso, em termos de semelhança, para a superfície pintada. Ainda que concedamos que já nessas doutrinas a história seja o mais alto objeto da pintura, e se junto a isso pensarmos que em Watteau a história não seria a grande motivação, ainda assim temos dificuldades em entender que disso advenha um “pouco caso que Watteau fez do alcance ordenador da composição em relação à narrativa” (p.139).

            Se tomarmos a hierarquia estabelecida, na ordem compositiva apresentada por Alberti, pelo topo, ou seja, pela história, tais declarações ganham sentido, mas se a composição trata dos modos como a pintura pode ser organizada a ponto de cada superfície plana e cada objeto ter a sua função no esforço do artífice para gerar o efeito pretendido, não podemos pensar que as pinturas em questão não possuam um arranjo compositivo estabelecido. Tratando do quadro Pierrot ou Gilles, Vinicius declara: “A composição também é segmentada: planos distintos coexistem sem obter reconciliação – que de resto não parece ser buscada” (p. 142). Podemos pensar se tratar de um novo modo de se colocar em prática o preceito da composição, mas teríamos dificuldades em declarar seu abandono. A força e a beleza das linhas que nos apresentam Watteau e seu lugar interessantíssimo nessa história nos permite pensar, ainda que sob o risco de descambarmos em uma tópica clássica que o livro pretende afastar, que a composição mantém sua centralidade, se a pensarmos como aparentada à dispositio retórica e se lembramos que Cícero, em suas Partições oratórias, dizia ser papel do orador acomodar a disposição do discurso à finalidade da questão, poderíamos inferir que a disposição se altera toda vez que a questão se vê mudada. No caso da pintura, uma vez mudado aquilo que se busca figurar, ou ainda o assunto, muda-se o modo de composição. O afastamento da história, do herói e da ação elevada implica na mudança da questão, mas a composição, ainda que diante de um regime de verossimilhança diverso, nos parece permanecer. Mesmo diante de um novo mundo e novas referências figurativas, Watteau ainda assim compõe.

            A mudança que se vê apresentada na adesão “à jovialidade da vida cotidiana de cortesãos e burgueses médios ou de camadas altas, retratados em momentos de ócio, lassidão ou devaneio” (p. 140) não trata, acreditamos, do abandono da composição, mas de uma dissolução da hierarquia dos gêneros pictóricos e dos modos da apresentação na cena; ainda que não tenhamos a história (o que não deixaria de ser controverso, pois poderíamos reduzir, num gesto um tanto brusco, é verdade, a história à cena), ainda temos, retomando as tópicas de Alberti, superfícies e membros que em sua totalidade compõem os corpos. Mais uma vez, não se trata de mesquinhez, ou de desqualificação do excelente trabalho que aqui resenhamos, mas de apresentar mais um daqueles movimentos que, para além da adesão ou do embate, nos convidam a partir de nossas referências para buscar algo a acrescentar nessa história, ou ainda, das riquíssimas questões que se veem suscitadas nessa genealogia.

            Assim como obras hoje clássicas, como O problema do conhecimento e A filosofia do iluminismo, de Cassirer; A crise da consciência europeia, de Paul Hazard, o já citado Desejo e prazer na idade moderna, de Luiz Roberto Monzani, o livro A Paixão da igualdade, nos transforma, nos impele a acompanhar um desenvolvimento que se faz e que é apresentado nas suas mais específicas facetas. Longe de um voo panorâmico, o percurso nos faz observar aspectos e transformações em suas manifestações mais surpreendentes sem nos deixar diante de qualquer sorte de vagueza ao nos indicar suas perplexidades. Um livro raro para o qual devemos torcer por apontamentos que levem a uma reflexão ulterior de seus leitores, isso em muito faria crescer o debate acerca desse período tão rico em transformações e do qual, de algum modo, ainda somos herdeiros. A leitura de uma obra como essa deve mover seus leitores a buscarem acrescentar ainda mais matizes nesse quadro que é impressionante sem ser impressionista. Afastado de toda sorte de preciosismo, o debate que Vinicius de Figueiredo nos propõe é de muita riqueza, quer pelo próprio conteúdo do livro, quer pelas mais diversas possibilidades de desenvolvimentos a que somos convidados a enveredar. Da tensão dual entre liberdade e igualdade ao universo de questões apresentadas pela obra, o percurso percorrido não pode ser estéril em nenhuma via de leitura, até mesmo a mais canhestra. Um livro que deve ser medido, sem que se dispense o vasto e bem apresentado conteúdo de suas linhas, também pelo debate a ser suscitado por ele. Algo que diante das diversas resenhas, às quais nos somamos, parece estar já em curso. Devemos sempre celebrar empreendimentos dessa sorte, ainda mais em um momento em que, sob o olhar circunscrito de alguns especialistas, a prosa filosófica se veja tão desatrelada em relação a discursos e imagens que lhe são irmanados. Celebremos e apreciemos essa grande empresa, A paixão da igualdade – uma genealogia do indivíduo moral na França! Uma genealogia que, esperamos, traga à luz novas genealogias!

 

 

PEDRO FERNANDES GALÉ é professor na UFSCar/CAPES

 


Pedro Fernandes Galé
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