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Victor Knoll - 26 - Maio de 1997
Um mago das formas
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Um mago das formas

 

VICTOR KNOLL

Kandinsky ingressou na Bauhaus em 1922 a convite de Walter Gropius e nela permaneceu até os derradeiros tempos de 1933, quando, depois de já ter deixado a Rússia, abandonou a Alemanha para se instalar em Neuilly-sur-Seine, na França. De sua atuação docente resultaram dois livros: "Ponto e Linha sobre Plano", ao qual costuma-se atribuir maior importância, e "Curso da Bauhaus", que reúne os apontamentos para os exercícios e exposições feitos em aula. Enquanto o primeiro livro refere-se ao período de Weimar, o último cobre as etapas de Dessau e Berlim (do verão de 1925 até o primeiro semestre de 1933). Entretanto, em dezembro de 1911 Kandinsky já havia publicado "Do Espiritual na Arte", junto com a lendária primeira exposição de "O Cavaleiro Azul". Neste texto procura estabelecer uma teoria das cores que guarda o sentido de uma "poética": uma reflexão sobre a organização da pintura e o estabelecimento de seus princípios.
"Ponto e Linha sobre Plano", publicado em 1926, tem por meta estabelecer uma teoria das formas, que encontra em "Curso da Bauhaus" o seu detalhamento. Na fase inicial de sua atuação na Bauhaus, a preocupação de Kandinsky se concentra em uma reflexão sobre os elementos gráficos da pintura, bem como sobre os procedimentos de sua composição. Um certo caráter pedagógico é a tônica. Já se observou que "Ponto e Linha sobre Plano" é a continuação orgânica de "Do Espiritual na Arte"
Possuidor de outra índole -ainda que lidando com as mesmas preocupações-, "Curso da Bauhaus" se caracteriza como um corpo a corpo com a pintura. O livro é dominado por um teor "didático". Assim, os três livros configuram um caminho descendente: da formulação de uma "poética", passamos para um "programa pedagógico" que trata dos elementos gráficos da pintura e chegamos à "didática" dos exercícios, análises e prescrições pontuados e concretos.
Ao discutir o papel da linha na pintura, bem como ao considerar os demais elementos que a compõe, Kandinsky procura envolver em uma mesma reflexão a música e a dança, a escultura e a arquitetura e ainda a poesia. A ambição, de inspiração wagneriana, é proceder a uma compreensão "totalizante" do fenômeno artístico. Assim, não hesita em traduzir graficamente em pontos os primeiros compassos da 5º sinfonia de Beethoven. De fato, julga que há correnpondência entre as cores e os sons.
A convicção de que as artes possuem uma base comum -que assumira já ao tempo de "O Cavaleiro Azul"- era um ponto que o ligava ao espírito da Bauhaus, que postulava a união das artes plásticas e das artes aplicadas.
Na discussão que sustenta sobre as relações entre a arte e a época, distingue três formulações: 1) a arte é a imagem de sua época -quando a arte e a época são fortes e densas ou quando a época, embora forte, é decadente e a arte enfraquecida sucumbe à decadência; 2) a arte se opõe à sua época e exprime possibilidades opostas ao seu tempo; 3) "a arte supera os limites que a época quer lhe impor e exprime o espírito do futuro". Kandinsky, assumindo um certo tom visionário -solidário do clima místico de suas convicções- , reserva para a arte abstrata a terceira possibilidade.
Ingressou na Bauhaus com a dupla tarefa de dirigir o ateliê de pintura mural e dividir com Paul Klee o curso sobre o estudo das formas. Além dos propósitos ligados à composição, Kandinsky denuncia reiteradamente que o tratamento teórico da arte tem estado submetido a condutas arbitrárias e subjetivas, e proclama a necessidade de procedimentos rigorosos na análise das obras.
O ponto de partida do trabalho docente de Kandisnsky foi o programa que redigiu alguns anos antes para o Instituto de Cultura Artística de Moscou, quando montou um programa que tratava das correlações entre a pintura e a música, ao lado da análise das formas e cores elementares. Agora, complementa esse material com os estudos sobre a psicologia da forma que por aquele tempo ganhava compleição.
Uma teoria das formas se impõe para dar conta da expressão da "voz interior". O artista já não imita a natureza, mas, antes, dá expressão ao espírito. Os pontos e as linhas, suas tensões e oposições sobre o plano-base constituem a linguagem das formas, as quais, junto com as cores, "concretizam" a vida do espírito. Kandinsky é o profeta da voz interior.
Enquanto a teoria das cores tem como ponto de partida o círculo das cores -as cores primárias e secundárias-, o reconhecimento inicial para uma teoria das formas é o ponto e a linha; dois elementos que podem ser tratados de maneira infinita. O ponto equivale ao silêncio. O seu movimento gera a linha, cujo desenvolvimento produz a forma. Entretanto, há uma correspondência entre a forma e a cor, pois "não pode existir superfície nem espaço sem cores"; desde o início há um "vínculo que une a forma à cor e vice-versa".
Kandinsky está sempre preocupado em surpreender as vibrações dos elementos formais e das cores na alma humana: os efeitos das formas e das cores e de suas relações sobre o espectador é o que norteiam a sua ambição maior, que tem por meta estabelecer uma ciência da arte, um esclarecimento da construção e da composição pictóricas. A primeira tentativa de Kandinsky, de elaborar esse corpo teórico no Instituto das Ciências da Arte em Moscou, foi frustrada pela revolução e, agora, na Bauhaus, alimenta a esperança de levar adiante tal projeto. Assim, devemos reconhecer uma organicidade no trabalho reflexivo de Kandinsky. "Ponto e Linha sobre Plano" deve ser lido não só como segunda parte de"Do Espiritual na Arte", bem como em confronto com "Recordações" ("Rueckblick"), onde disserta sobre os vínculos entre a arte e a religião. Palpita em Kandinsky o coração religioso sempre presente no ânimo russo.
O livro de Worringer, "Abstração e Projeção Sentimental", desempenhou um papel fundamental para se cristalizar no pensamento e na prática de Kandinsky o reconhecimento de que a pintura não necessita de um motivo figurativo. A teoria das formas, que desenvolve em seus textos e na atividade docente na Bauhaus, é realizada em favor de fundamentar uma composição não-figurativa. Se distinguimos este lado teórico que levou Kandinsky à abstração, há também que referir outro -ainda mais uma vez- de caráter místico e ligado à tradição da cultura russa. Eis uma indicação resumida: o ícone representa, pela figuração, o sagrado. Mediante a figuração, o devoto se relaciona com os objetos da fé. Entretanto, a imagem exterior do sagrado se tornou superada a partir do momento em que Deus se fez homem; assim, tornou-se possível a relação com o sagrado não mais mediada pela imagem exterior. Dessa maneira, a imagem se desvincula da figuração. Aí temos a "motivação" mística de Kandinsky para a elaboração de sua teoria das formas, em favor de uma representação pictórica que ouve a "voz interior". Agora não mais se trata de pintar a exterioridade, mas, sim, a interioridade que se exprime por meio de formas e cores. Trata-se de pintar o espiritual e não o material ou o dado sensível. "Ponto e Linha sobre Plano" procura dar conta, de modo sistematizado, de tal expectativa ao sistematizar os elementos gráficos -ponto e linha- da composição pictórica. A teoria articulada por Kandinsky promove a "libertação" da forma em relação à figuração e, assim, consolida o desaparecimento do objeto.
Ao longo de seu trabalho na Bauhaus, Kandinsky recusa de maneira categórica qualquer atitude "impressionista" e, tendo em vista efetuar análises de obras ou encaminhar as suas concepções, assumiu procedimentos estritamente racionais.
Ponto, linha e plano são os elementos básicos para a construção da forma que tem na cor a sua materialização. Pela exploração desses elementos, Kandinsky alinhavou as suas "lições" de formas que fundamentam a sua pintura abstrata ou -como preferiu em certo momento se expressar- "concreta". 

Victor Knoll é professor do departamento de filosofia da USP.
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