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Paula Gabriela Mendes Lima - 119 - Abril de 2021
Tocqueville e o pauperismo
O marchar para uma pobreza de massa
Foto da capa do livro Democracia e miséria
Democracia e miséria
Autor: Helena Esser dos Reis (Org.)
Editora: Almedina/Discurso Editorial - 208 páginas
Foto do(a) autor(a) Paula Gabriela Mendes Lima

PAULA GABRIELA MENDES LIMA

TOCQUEVILLE E O PAUPERISMO

O marchar para uma pobreza de massa

DEMOCRACIA E MISÉRIA

Helena Esser dos Reis (Org.)

EDITORA ALMEDINA/DISCURSO EDITORIAL, 2020, 208 p.

No início do século XIX, o capitalismo já se manifestava como prosperidade e abundância de riquezas em diversas nações, mas, ao seu lado, crescia um tipo de pobreza de massa, uma nova espécie de miséria. Alexis de Tocqueville, pensador crítico do estado social moderno democrático e de suas ambiguidades, analisa esse fenômeno aparentemente paradoxal e inexplicável no seu texto Ensaio sobre o Pauperismo, traduzido pela primeira vez para o português pela professora Helena Esser dos Reis e publicado, em 2020, na obra Democracia e Miséria. O primor da tradução do texto tocquevilliano nessa obra se complementa com uma seleção de artigos de renomados estudiosos sobre o pensamento de Tocqueville, abrindo espaço para um debate fundamental do nosso tempo que é pensar o capitalismo e a justiça social.

O Ensaio sobre o Pauperismo é um texto pouco conhecido pelo leitor brasileiro. Ele foi escrito entre 1835 e 1837, período em que o Livro I de A Democracia na América foi publicado e Alexis de Tocqueville se preparava para escrever o Livro II dessa obra. Marcelo Jasmin, no prefácio de Democracia e Miséria, destaca que o ensaio tocquevilliano é um desdobramento das reflexões do filósofo em relação à igualdade de condições como fato primordial da democracia moderna e a experiências que ele observa do capitalismo, especialmente em viagens pela Inglaterra.

Tocqueville divide o ensaio em duas partes. Na primeira, em diálogo com o pensamento de Rousseau, o filósofo apresenta uma breve história sobre o desenvolvimento progressivo do pauperismo na modernidade e reflete sobre alguns meios que foram utilizados para combatê-lo. Ele remonta às origens das sociedades humanas, historicizando a desigualdade social em diversas forma de sociedade, e conclui que essa “nova” pobreza de massa do estado moderno democrático é necessariamente produzida pelo sistema capitalista.

Anteriormente à sociedade moderna, a população vivia sem muitas necessidades e, na maioria das vezes, a terra bastava. No decurso do tempo, novas necessidades, gostos e prazeres foram introduzidos no mundo. Todos buscavam mais conforto e bem-estar com prazeres materiais que os séculos precedentes não conheciam, afirma Tocqueville. Nessa busca, muitos trabalhadores abandonavam a agricultura, migravam para as atividades nas indústrias localizadas em centros urbanos e aceitavam viver e trabalhar em condições precárias na esperança de alcançar uma vida com maior conforto. Os grandes proprietários buscam uma vida mais ordenada e com mais supérfluos, e a classe industrial se fortalece e se enriquece sobremaneira.

Para Tocqueville, todo este movimento é uma marcha inevitável que decorre do crescimento econômico voltado para a alta produção de bens destinados a satisfazer as novas necessidades de bem-estar. Quanto mais próspera economicamente uma nação, observa o filósofo, mais ela ostenta vidas de conforto para uma parte da população e mais produz novas misérias para a outra parte, que não consegue ter suas necessidades atendidas. É um movimento inevitável, afirma Tocqueville, mas que pode ser amenizado não com a institucionalização de um sistema legal de caridade, mas com soluções que ele apresenta no segundo ensaio, não acabado e não publicado, como a participação dos lucros das fábricas pelos operários, a criação de caixa de poupanças dos pobres e o estabelecimento de bancos de créditos.

O professor Jean-Louis Benoît, grande referência sobre o pensamento Tocqueville, inicia o debate da obra Democracia e Miséria, refletindo sobre o contexto desse Ensaio sobre o pauperismo brevemente apresentado acima. Para Benoît, é fundamental considerar que o termo pauperismo é utilizado na Inglaterra para referir-se ao novo fenômeno causado pelas mudanças que decorrem das sociedades industriais. O pauperismo refere-se ao operário ou indigente – o proletário – que não possui nada e diferencia-se do camponês que, mesmo pobre, pode satisfazer suas necessidades pela terra. Essa nova figura instiga Tocqueville a pensar medidas para amenizar suas condições, e suas reflexões inserem-se num contexto da vida do filósofo em que ele busca começar uma carreira política e realiza efetivas intervenções na luta contra a pobreza e a miséria como a defesa da realização da linha Paris-Cherbourg.

Benoît nos apresenta um Tocqueville que pensa demandas de justiça social e que suscita questões como as que Marta Nunes coloca em seu artigo sobre como determinar o princípio da assistência como direito, como ver o “outro” – o pobre que muitas vezes é objeto do desejo de eliminação do horizonte de visibilidade –, como dar uma possível solução para a pobreza diante do sucesso do progresso e consolidação do sistema capitalista. Esses são pontos fundamentais e contemporâneos para pensarmos a experiência do nosso tempo.

Também refletindo a partir de uma interrogação, Helena Esser, no seu artigo que compõe a obra Democracia e Miséria, questiona as condições para a conservação de uma democracia num estado social fortemente marcado pela pobreza. Para Helena, o pauperismo viola a própria democracia que, nos termos do pensamento tocquevilliano, se sustenta na harmonia entre a igualdade e a liberdade, pois a miséria da população viola tanto a igualdade social como impede as condições políticas de liberdade.

Karlfriedrich Herb traz no seu artigo reflexões sobre os argumentos de Tocqueville em relação à democracia e sua base de sustentação nessa harmonia entre igualdade e liberdade, apresentando um pouco da recepção do autor na Alemanha atual. E Julián Sauqillo evidencia como o tema da miséria pode ser visto metodologicamente no contexto do pensamento tocquevilliano.

E, por fim, a partir da leitura do Ensaio sobre o pauperismo, Eric Keslassy e Juan Manuel Ross irão abordar nos seus artigos reflexões econômico-políticas do pensamento tocquevilliano como um problema-chave do seu tempo. Tocqueville tem consciência da importância do crescimento industrial da sociedade moderna e sabe que paradoxalmente, este crescimento gerará agruras como o latente desenvolvimento de uma pobreza de massa. Para Keslassy, não se está debatendo apenas um problema do passado, mas também perigos do futuro.

Juan Ross afirma que Tocqueville desvia dos otimistas liberais do início do século XIX em relação ao progresso das sociedades capitalistas e industriais, e apresenta remédios para o pauperismo muito próximos dos associativismos republicanos. É um autor que cada vez mais, para os estudiosos de seu pensamento, se apresenta como um pensador que não defende uma tradição liberal ou republicana, mas dialoga com elas a fim de apresentar um pensamento crítico da sociedade moderna que é a sociedade política de nosso tempo.

PAULA GABRIELA MENDES LIMA é pós-doutoranda do Departamento de Filosofia da Universidade Federal de Minas Gerais, doutora em filosofia política e mestre em direito pela Universidade Federal de Minas Gerais e consultora em direito constitucional da Assembleia Legislativa do Estado de Minas Gerais.

 


Paula Gabriela Mendes Lima
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