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Ricardo Fabrini - 115 - Dezembro de 0012
TBC de bolso
Foto do(a) autor(a) Ricardo Fabrini

RICARDO BENZAQUEN

TBC de bolso

As transformações do ambiente cultural de São Paulo

 

 

INTÉRPRETES DA METÓPOLE

Heloisa Pontes

EDUSP

464 p., R$ 89,00

 

O livro em pauta busca examinar os vínculos que podem ser estabelecidos entre o processo de metropolização que ocorre em São Paulo de 1940 a 1968 e as variadas transformações que podem ser percebidas, neste período, em seu ambiente cultural. Não imagine o leitor, porém, que estamos aqui diante de uma narrativa sintética e totalizante, obcecada em elaborar um quadro dotado de um ponto central que desse sentido ao conjunto das questões sob investigação.

 

Ao contrário, o que salta aos olhos à medida que se percorre este magnífico trabalho é a preocupação em se qualificar, de maneira cuidadosa e delicada, tanto os temas quanto os argumentos em debate, o que faz com que o texto venha a ser dividido em duas partes: a primeira concentra-se numa dimensão propriamente intelectual, analisando o grupo de jovens que se reunia em torno da revista Clima, como Antonio Candido, Décio de Almeida Prado e Gilda de Melo e Souza, e as suas relações com a USP, que começava então a se afirmar como um dos líderes na implantação de uma cultura acadêmica no país; a segunda, por sua vez, dedica-se a estudar o surgimento e a consolidação do Teatro Brasileiro de Comédia (TBC), palco que criará condições para uma profunda reformulação da atividade dramática entre nós; ambos os cenários, cabe enfatizar, avaliados de um ângulo que privilegia o esclarecimento das relações de gênero, mais especificamente do papel desempenhado pelas mulheres no ambiente animado por essas duas instituições.

 

Condição feminina

Os dois primeiros capítulos, diretamente envolvidos com a vida intelectual, têm como ponto de partida uma comparação entre Clima e a Partisan Review, de New York, que aproxima as duas publicações quer pela seriedade acadêmica quer pela abertura para as questões típicas das metrópoles que as circundam. Por outro, entretanto, torna-se evidente a diferença no tratamento dispensado às mulheres, inclusive pela maior liberalidade, no plano dos costumes, que caracterizava o periódico norte-americano. A questão da condição feminina, aliás, será retomada no segundo capítulo pelo exame das trajetórias de Lucia Miguel Pereira, Patrícia Galvão (Pagu) e Gilda de Mello e Souza, intelectuais que pagaram um preço dos mais altos pela sua busca da dignidade profissional.

 

Do capítulo 3 em diante Heloisa Pontes se demora em uma minuciosa pesquisa acerca das modificações estéticas e sociais que tornaram possível a concretização de um projeto como o do TBC. Assim, podemos acompanhar, por exemplo, o impacto produzido pela passagem no Brasil da companhia francesa de Louis Jouvet, fundamental para a instauração de um novo entendimento da experiência dramática, no qual, contra as audições mambembes, de Boulevard, repletas de “pontos”, “cacos” e baseadas na absoluta centralidade da figura do protagonista, salienta-se a importância da integração entre o autor, o diretor e o ator, numa perspectiva sistemática que realça, em vez de restringir, o talento das grandes atrizes da época, como Maria Della Costa, Cleyde Yáconis e sobretudo Cacilda Becker.

 

 Há mais, pois esse destaque seria incompreensível se não se levasse em consideração o interesse de empresários como Franco Zampari e Alfredo Mesquita na modernização da vida cultural de São Paulo, nem o despontar de uma articulação, quase inédita, entre a crônica jornalística e o ensinamento universitário, demonstrada de forma cabal por um crítico e historiador do porte de Décio de Almeida Prado. Além disso, deve-se falar também da atuação de um número significativo de parceiros – amorosos ou não –, com frequência ligados àquele mesmo universo, na sustentação das suas carreiras. Não é à toa, portanto, que tenha se constituído por esta época um contexto capaz de permitir que mesmo atrizes oriundas de camadas “humildes” da população, como as mencionadas acima, tenham atingido um sucesso profissional e brilho pessoal de enorme intensidade.

 

A metrópole

Este conjunto de argumentos exige que se faça uma breve pausa para que se possa investigar melhor o próprio sentido conferido pela autora à idéia de metrópole. Tal procedimento se torna necessário porque ela dá a impressão de operar com uma concepção bem distante daquela que associa o cotidiano das grandes cidades modernas ao que se convencionou chamar, na esteira de G. Simmel e W. Benjamin, de “experiência de choque”. Nesta visão, o caráter inesperado e veloz dos múltiplos estímulos que se precipitam simultaneamente sobre os habitantes destas grandes cidades termina por desorientá-los, embaralhando os seus critérios de valor e desfigurando o mapa cognitivo que guiava suas condutas.

 

Intérpretes da Metrópole, contudo, lida com o assunto de modo diverso, apontando para uma direção na qual São Paulo emerge como um lugar de encontros improváveis, onde, repita-se, mulheres marcadas pelo desencanto, pela privação e pelos estigmas associados ao gênero têm acesso à oportunidade de se reinventar por intermédio, por exemplo, do teatro.

 

Na verdade, ao menos no que se refere a sua capacidade de atenuar estas marcas, a sociabilidade cultivada em volta do TBC transmite a sensação de ser mais efetiva do que a própria experiência universitária. Basta comparar, para tanto, a carreira de Gilda de Mello e Souza com a de Cacilda Becker: em Clima, embora aceita como uma colaboradora regular, o lugar designado para Gilda é o da literatura de ficção, modalidade supostamente mais compatível com a condição feminina. Heloisa nos conta que, até para combater o estereótipo, ela passa a frequentar o gênero do ensaio, entre a filosofia e as ciências sociais.

 

Esta decisão, todavia, consegue apenas adiar, mas não eliminar o problema, que será reencontrado mais adiante, na USP, por ocasião da defesa de sua tese de doutorado sobre a moda no século XIX, aprovada mas considerada, “à boca pequena”, fútil e pouco importante. Em suma: coisa de mulher. Cacilda, como já sugerido, segue outra rota, convertendo a sua atuação no TBC numa espécie de rito de passagem que lhe permitirá reescrever a própria biografia e passar, de menina pobre e excluída, uma estranha na cidade, à condição de maior estrela do teatro brasileiro.

 

As atrizes

Como se pode dar conta dessa diferença? A resposta a esta pergunta, creio eu, é levantada nas primeiras páginas da introdução de Intérpretes da Metrópole, quando se chama a atenção para os distintos registros em que se deve inscrever a performance das atrizes de cinema em relação às de teatro. As primeiras, com efeito, parecem representar sempre a si mesmas, ou melhor, a uma espécie de “persona” que se constrói em torno delas, enquanto as segundas, assumindo integralmente as características específicas das suas personagens, modificam-se a cada apresentação.

 

Ora, se associarmos a este argumento o fato de que as encenações sempre se dão ao vivo, sob contingências até certo ponto imprevisíveis e que precisam ser superadas dia a dia para que o espetáculo chegue a bom termo, torna-se evidente que o desempenho, em toda a sua fragilidade e grandeza, parece se constituir no traço peculiar dessas grandes profissionais de teatro. É como se fosse necessário dispor de capacidade suficiente para matar um leão por dia, justamente a característica que, segundo Max Weber, definirá o que ele chama de autoridade carismática.

 

De fato, correndo o risco de se metamorfosear regularmente em diferentes identidades e de sustentar os seus papéis em qualquer situação, aquelas atrizes de teatro mostram-se capazes de desafiar cotidianamente chuvas e trovoadas, dando a cara ao tapa em função de uma performance que, se condensa uma série de determinações prévias, depende, no momento preciso da encenação, da afirmação do seu talento. Dotadas de um carisma relativamente maior do que aquele que as suas equivalentes universitárias pareciam ostentar, elas talvez encontrem, por este caminho, uma primeira explicação para a superação parcial dos constrangimentos de gênero que, mesmo de forma desigual, ainda persistiam na metrópole.

 

Muito mais poderia ser dito sobre este belo trabalho, mas não caberia nos limites de uma resenha. Para encerrar, vale a pena sublinhar que, atuando de maneira criativa entre a etnografia e o ensaio, sempre preocupada em resgatar a complexidade e a dignidade intelectual das questões sob exame, Heloisa Pontes surge aqui como uma intérprete autorizada daquelas intérpretes da metrópole. Mais do que um pueril jogo de palavras, esta observação pode até permitir que o caráter quase luxuoso da edição – capa dura, papel couché, rica iconografia, generoso espaço concedido às margens das páginas, enfim, notável projeto gráfico –, aliado à forma elegante, primorosa mesmo, em que o texto é redigido, deixe de ser uma mera casualidade: o livro, como objeto, converte-se numa espécie de novo TBC, um TBC de bolso, cuja visita certamente contribuirá para uma melhor compreensão daquela grande aventura intelectual e estética.

 

RICARDO BENZAQUEN é professor no departamento de história da PUC-Rio e autor de Guerra e Paz: Casa-grande & senzala e a obra de Gilberto Freyre nos anos 1930 (Editora 34).

 

 

 

Ricardo Fabrini é professor do departamento de filosofia da USP.
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