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Rita Terezinha Schmidt - 93 - Fevereiro de 2003
Rumos da crítica
Foto da capa do livro Crítica Cult
Crítica Cult
Autor: Eneida Maria de Souza
Editora: Ed. UFMG - 178 páginas
Foto do(a) autor(a) Rita Terezinha Schmidt

"Crítica Cult" apresenta uma reflexão arejada, consistente e necessária sobre os rumos e a função da crítica nos dias de hoje, contrapondo-se às visões apocalípticas sobre a falência da crítica literária no contexto de abalos disciplinares e da invasão de valores midiáticos no panorama da vida intelectual brasileira.
Ao mesmo tempo, projeta um debate teórico sobre procedimentos analíticos a partir de certos pressupostos da crítica cultural e do comparativismo, num claro confronto com as posições de uma crítica conservadora, alinhada com a preservação do estatuto autônomo e privilegiado do literário.
Nesse sentido, "Crítica Cult" pouco ou nada tem a ver com a crítica academicista, exercida como atividade parasitária e exclusivista, predicada em velhos parâmetros sobre a validade universal de um gosto definido por poucos. Ao contrário desta, enuncia um fazer que responde às demandas e desafios de seu tempo, sob o signo de um desejo de democratizar a crítica cultural acadêmica, trazendo-a para a esfera pública.
Na diversidade que atravessa os 13 ensaios que compõem a coletânea, escritos na década de 90, Eneida Maria de Souza percorre caminhos do discurso crítico brasileiro, dialogando com alguns de seus expoentes: Antonio Candido, Silviano Santiago, Roberto Schwarz, Luiz Costa Lima, Haroldo de Campos. Aglutina questões teórico-críticas em torno de alguns eixos: o influxo de teorias estrangeiras e seus efeitos em interpretações de subdesenvolvimento, dependência cultural e definições do nacional; a importância do estruturalismo no questionamento da racionalidade etnocêntrica moderna e suas contribuições teórico-metodológicas para a crítica literária (particularmente no que diz respeito ao desatrelamento do conceito de literário do seu uso restritivo de "arte" para sua configuração como discurso e práxis cultural); as transformações no campo da teoria da literatura sob o impacto das vertentes pós-estruturalistas, responsáveis por deslocamentos epistemológicos nos modos de pensar o funcionamento de discursos e verdades, no rastro dos quais têm se processado a diluição das fronteiras disciplinares e a quebra das hierarquias entre os discursos.
É certo que alguns desses tópicos, pela sua importância e complexidade, mereceriam um aprofundamento maior, para além de afirmações um tanto generalizantes, que podem suscitar mal-entendidos. Entretanto nas aproximações há material tão heteróclito quanto textos canônicos e ícones da cultura popular. Nos posicionamentos em relação ao debate teórico contemporâneo, importa destacar a estratégia autoral do "olhar enviesado", metáfora de um "locus" enunciativo que aciona o jogo crítico da diferença, desestabilizando oposições tradicionais como teoria e crítica, nacional e estrangeiro, tradição e vanguarda, centro e periferia, alta literatura e literatura popular/literatura de massa.
A serviço de uma lógica redutora que, não raro, persiste como entrave para o avanço nas discussões sobre as questões histórica e culturalmente específicas da literatura e da cultura brasileira e latino-americana, tais oposições inscrevem os efeitos reguladores e excludentes de uma visão etnocêntrica e elitista que ratifica nossa condição "marginal" e acentua os colonialismos internos no âmbito do pensamento brasileiro.
Assim, nas releituras do modernismo e seus avatares, fica patente a intenção de deslocar a ênfase da questão da ruptura para a problemática transcultural, dando visibilidade às contradições na formulação de uma identidade nacional e seus impasses no processo amplo de modernização e homogeneização social.
São as articulações nuançadas por desdobramentos teóricos que levam em conta as condições históricas de sua possibilidade que fazem com que um dos pontos altos de "Crítica Cult" seja justamente sua força de intervenção nas afirmações sobre o mimetismo teórico no Brasil. Aqui só se consumiriam, e ainda de forma indigesta, teorias produzidas nos centros de poder do primeiro mundo, sem o menor compromisso com a compreensão crítica das especificidades locais e do que significam os processos de institucionalização do literário num contexto de heranças coloniais, de forte dependência econômica e de desigualdades superlativas.
Entendam-se aí os reiterados argumentos em defesa do viés cultural nos estudos literários bem como dos estudos culturais. Porquanto os estudos culturais resistem a sinopses ou paráfrases, razão pela qual se multiplicam os equívocos, entre nós, sobre seus métodos e voltagem crítica, equívocos nos quais "Crítica Cult" não incorre, mas também não esclarece, sua operacionalização na prática crítica esvazia o clichê "mais um modismo". Isto os coloca na condição de um acréscimo e de uma expansão da crítica literária e de seus objetos para além das limitações das "belles lettres", realçando assim o potencial crítico e ético daquela na compreensão das várias facetas de nossa brasilidade, sem hierarquias ou exclusões.
Enfim, o saldo positivo do discurso crítico lúcido de Eneida Maria de Souza contradiz o senso comum que insiste em afirmar que o Terceiro Mundo é aqui.


Rita Terezinha Schmidt é professora de literatura na Universidade Federal do Rio Grande do Sul.

Rita Terezinha Schmidt
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