Riscos possíveis O filósofo Hugh Lacey analisa a controvérsia sobre o uso de transgênicos na agricultura
HUGH LACEY
Os principais defensores da pronta implementação dos transgênicos são agroindústrias multinacionais, governos que endossam políticas neoliberais, ONGs que financiam pesquisa com pressupostos em consonância com os da "Revolução Verde" e um considerável grupo de biólogos moleculares. Segundo eles, os transgênicos são necessários tanto para alimentar a crescente população do mundo quanto para apoiar políticas agrícolas voltadas à exportação. Sustentam, ademais, que a utilização de transgênicos, quando devidamente controlada por regulamentação responsável, envolve pequeno risco à saúde humana e ao ambiente.
Ao contrário, os oponentes dos transgênicos -por exemplo, os ambientalistas, os movimentos sociais populares como o Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra, os defensores dos direitos dos índios e de formas alternativas de agricultura- mencionam a possibilidade de sérios riscos, negam que o problema da fome possa ser tratado no contexto socioeconômico de implementação dos transgênicos, contestam os sistemas de direitos de propriedade intelectual que protegem os transgênicos e salientam as possibilidades de produção das alternativas agrícolas isentas de risco.
Os riscos envolvidos
A questão do risco à saúde e ao ambiente, tópico central destes dois livros, tem dominado a discussão pública sobre os transgênicos. Embora ambas as partes concedam, à luz da teoria biológica e ecológica, a possibilidade de risco, Marcelo Leite, editor de Ciência da Folha, assinala em "Os Alimentos Transgênicos" que a controvérsia criou posições extremas.
Um extremo afirma que não há evidências científicas confiáveis de graves efeitos colaterais negativos provenientes da plantação, produção, processamento e consumo de transgênicos. Não se considera que a avaliação de riscos até hoje feita tem sido seriamente questionada, que cada vez mais há evidências científicas, especialmente sobre a transferência de transgenes para outras plantas no ambiente, que sugerem uma considerável incerteza com respeito aos efeitos colaterais do uso de transgênicos, sua magnitude e possibilidade de controle.
No outro extremo, exageram-se os riscos possíveis, sem se levar em conta as questões de sua magnitude, probabilidade e possibilidade de controle. Dos três artigos em "Riscos dos Transgênicos", apenas "Biossegurança de Plantas Transgênicas", de Rubens Nodari e Miguel Guerra, professores de fitotecnia da Universidade Federal de Santa Catarina, evita esse extremo.
O livro de Leite oferece um excelente balanço da controvérsia. O artigo de Nodari e Guerra, com bibliografia científica recente, proporciona mais detalhes esclarecedores. Leite também inclui uma breve e útil história e exposição das técnicas de modificação genética, assim como das questões políticas e legais que têm acompanhado sua introdução no Brasil.
Tanto Leite quanto Nodari e Guerra reconhecem o potencial dos transgênicos de melhorar a agricultura. Também reconhecem a incerteza sobre os possíveis riscos que podem implicar. Assim, eles recomendam cautela -especialmente em um país rico em biodiversidade como o Brasil- e o adiamento da ampla implementação de transgênicos, aguardando-se estudos mais detalhados sobre os riscos e as possibilidades de seu controle. Para eles, adiar não significa rejeitar completamente.
Não há urgência na introdução de transgênicos. Os usos atuais envolvem principalmente variedades de plantas projetadas para resistir a herbicidas específicos ou conter pesticidas "embutidos". Eles servem aos interesses das agroindústrias. Também são muitas vezes bem-vindos aos agricultores que desejam reduzir a exposição a toxinas químicas que encontram pessoalmente no cultivo convencional. E podem fazer sentido dentro de uma política agrícola voltada à exportação. Mas isso nada tem a ver com o problema da fome. Seu valor atual não é suficiente para autorizar seu amplo uso diante da gravidade dos possíveis riscos, pelo menos até que as pesquisas reduzam a incerteza envolvida.
Ecologia e biodiversidade
A alegada ausência de riscos é apenas um componente da típica legitimação dos transgênicos. Afirma-se também que eles são necessários para alimentar o mundo. Se tal afirmação fosse verdadeira, em vez do risco da catástrofe da subprodução, seguramente seria correto tolerar um grau maior de risco a respeito da saúde e do ambiente. Mas é verdade? Há evidências empíricas para apoiá-la? Nessa avaliação, é preciso investigar o potencial de produção das formas alternativas de agricultura -não apenas do cultivo químico intensivo convencional, mas também da agroecologia e de outras formas de cultivo orgânico que não envolvem risco à saúde e que se baseiam na premissa da sustentabilidade ecológica e preservação da biodiversidade.
Nenhum dos dois livros examina a questão das alternativas, a não ser de passagem. Em outros artigos, entretanto, Nodari e Guerra (1) discutem abordagens alternativas da agricultura que são possíveis graças à riqueza da biodiversidade presente em todo o Brasil. Em "Riscos dos Transgênicos", frei Sérgio Görgen assevera: "Hoje há tecnologia e experiências agroecológicas disponíveis e suficientes para responder a todos os desafios apresentados pela produção em escala de produtos agrícolas naturais". Se isso fosse verdade, não seria preciso usar transgênicos (exceto, talvez, em condições muito especiais e para a produção de materiais médicos terapêuticos). Decerto, em nossos dias, não há evidências científicas quer para apoiar a tese dos proponentes dos transgênicos, quer para sustentar a posição de Görgen (2).
O problema da fome
A discussão pública atual tende a focalizar a questão: "O uso dos transgênicos está suficientemente livre de riscos para a saúde e o ambiente?". Isso parece pressupor que, se as evidências científicas mostrassem que está suficientemente livre de risco, então seria legítimo utilizá-los em larga escala. Conquanto a agricultura transgênica intensiva possa produzir uma quantidade adequada para alimentar todas as pessoas, as condições socioeconômicas globais em que está sendo implementada são as mesmas em que atualmente a fome persiste no mundo, embora a produção seja suficiente para alimentar todos nós. A agroecologia espera não apenas uma produção em quantidade adequada para alimentar todas as pessoas, mas também realizá-la em um contexto que torne mais provável que todos (especialmente nas comunidades rurais) sejam realmente bem alimentados e nutridos. O maior risco da introdução da agricultura transgênica intensiva em larga escala é que essas alternativas serão destruídas. Focalizar os riscos à saúde e ao ambiente que podem ser diretamente causados pelo uso de transgênicos obscurece esse ponto essencial.
Os transgênicos são produto da pesquisa científica, mas não é a pesquisa científica que nos diz que eles são necessários para alimentar o mundo. Mesmo assim, é a questão dos riscos dos transgênicos que vem sendo destacada, e não a questão: "Que formas de agricultura sustentável precisam ser desenvolvidas para que todos sejam realmente alimentados e nutridos?". São os interesses das agroindústrias e, mais geralmente, das instituições econômicas neoliberais globais, e o desejo dos oponentes de combatê-las, que têm levado a focalizar os riscos. Os interesses científicos deveriam dirigir-se igualmente à segunda questão, que não pode ser adequadamente tratada sem uma pesquisa empírica sistemática das formas alternativas de agricultura. Isso é especialmente importante no Brasil, cujo maior recurso para a produção agrícola é a riqueza de sua biodiversidade.
NOTAS
1. Ver seus artigos em "Ciência Rural, Santa Maria", vol. 28, 1998, págs. 521-528, e "Ciência e Cultura", vol. 50, 1998, págs. 408-416.
2. Sobre o potencial produtivo da agroecologia, ver "Agroecologia: A Dinâmica Produtiva da Agricultura Sustentável" (Editora da UFRGS), de Miguel Altieri; e artigos da revista "Agroecologia Hoje" (Botucatu, SP).
Os Alimentos Transgênicos
Marcelo Leite
Publifolha (Tel. 0/xx/11/3351-6341)
93 págs., R$ 9,90
Riscos dos Transgênicos
Frei Sérgio A. Görgen (Org.)
Vozes (Tel. 0/xx/24/237-5112)
92 págs., R$ 8,80
Hugh Lacey é professor de filosofia do Swarthmore College (EUA), professor visitante na USP e autor de "Valores e Atividade Científica" (Discurso Editorial/Fapesp).
Tradução de Caetano Ernesto Plastino.