Logotipo do Jornal de Resenhas
Geraldo Adriano Emery Pereira - 119 - Abril de 2021
Os limites da experiência política
Foto da capa do livro O tirano e a Cidade
O tirano e a Cidade
Autor: Newton Bignotto
Editora: Edições 70/Discurso Editorial - 208 páginas
Foto do(a) autor(a) Geraldo Adriano Emery Pereira

O trabalho acadêmico do Prof. Newton Bignotto (UFMG), a princípio, dispensa comentários. Ele é um intelectual referência no cenário do debate filosófico brasileiro, especialista no pensamento de Maquiavel e educador atuante na formação de uma vasta comunidade filosófica nacional. Em meio a um ano atípico em relação aos demais, a publicação em 2020 de uma nova edição da obra O tirano e a cidade nos coloca diante de uma reflexão contemporânea e necessária para o quadro complexo da experiência política mundial e nacional. Já no prefácio à nova edição, Bignotto apresenta a seus leitores as condições que atualizam o debate que seu texto pode suscitar, pois, “se há fortes motivos para acreditar que os regimes republicanos-democráticos são a melhor maneira de organizar nossa vida em comum, figuras do autoritarismo, e mesmo do fascismo, reapareceram e despertaram velhos fantasmas” (p. 11). Ao trazer à tona essa perplexidade factual relativa à nossa confiança na estabilidade da ordem democrática, abre-se a possibilidade de um percurso conceitual e rigoroso que descortinará um outro a rondar a democracia: a tirania. O texto tem um objeto acadêmico muito claro e rigorosamente perseguido: “(...) descobrir como se deu esse processo de inclusão do tirano entre as estruturas fundamentais de poder na Antiguidade e, sobretudo, que papel teórico desempenhou na formação do pensamento político grego” (p. 25). Contudo, é o expediente filosófico, aquilo que, na obra, nos faz pensar, que nos rouba o fôlego como leitores. Em praticamente todos os quatro capítulos, Bignotto não se esquiva de nos fazer olhar em perspectiva para o governo livre e para a tirania, e nesse movimento nos coloca diante de fronteiras nas quais os atores políticos parecem transitar. E essas reflexões acendem alertas sobre os limites da experiência política.

No primeiro capítulo, ao tratar da invenção do tirano, é clara a afirmação de que, tal como a democracia, a tirania é uma invenção grega. O rigoroso percurso pela semântica não rouba o espaço da análise do surgimento dessa figura no plano das formas políticas, que foram se desenvolvendo na experiência helênica. Tratando desse processo de surgimento dos regimes, “o tirano, assim como a democracia, nasceu do confronto entre uma parcela considerável da população, que se sentia excluída e que pagava por isso, e as diversas famílias aristocráticas, que de forma muito diferente, mas sempre baseadas no princípio da diferença, exerciam o poder nas mais importantes cidades” (p. 28). As crises colocavam a tirania na lista das soluções. Pode até soar estranho, mas Sólon, o tirano, é uma expressão que no texto convida a uma análise de grande envergadura. Ao tratar da condição de Sólon, como o legislador, e da situação de concentração de todo o poder em suas mãos para legislar, nos colocamos a pensar que aquela situação, provavelmente, “(...) tenha criado as condições necessárias para a tirania” (p. 41). E essa perspectiva “(...) abre espaço a compreensão do fenômeno, que não podemos desprezar, se quisermos entender como o governo violento de um só veio a fazer parte não só da vida política grega, mas ocupou um lugar de destaque na formação do pensamento político” (p. 35). Diante dessa afirmação é preciso dizer, Sólon não cria a tirania, pelo contrário, as análises de Bignotto mostram o vigor e a inteligência política daquele legislador, principalmente ao expor as dificuldades de percepção do povo no tocante à diferença entre o legislador e o “ocupante solitário do poder”. Sólon não se torna tirano, mas, segundo o autor, “ele soube ver nos conflitos de sua época a origem concreta dos tiranos”, e mais: “(...) a importância de sua obra vai muito além, pois, ao se transformar no legislador democrático, ele descobriu que seu gesto inscrevia na vida política, no mesmo ato, a figura do tirano” (p. 41). Essas complexidades confirmam a ideia de que as análises, mais que descrições rigorosas de um período histórico, são um exercício de pensamento acerca de desafios, ambiguidades e impasses da experiência política.

O capítulo segundo adentra em uma seara investigativa que traz muitas sutilezas: a presença do debate sobre a tirania nas tragédias. Destacando a importância da tragédia na dinâmica  reflexiva da política grega, Bignotto sublinha o que ele nomeia de tirano trágico. Passando por Ésquilo, e expondo a queda dos valores aristocráticos na relação com os tiranos, é em Sófocles, mais precisamente em Antígona, que a estratégia do olhar em perspectiva mostra sua potência especulativa, primeiro para expor uma espécie de lugar do tirano, “o outro da democracia” (p. 82), e em seguida o temor do tirano, esse que faz parte do político, sendo uma possibilidade inscrita na democracia (cf. p. 82). Assim, “o que os atenienses temiam é que a procura de novos caminhos, a descoberta de novas leis, pudesse se transformar no inverso da liberdade” (p. 82).

O terceiro capítulo se mostra como central, não apenas pela posição numérica em um livro de quatro capítulos, mas pela densidade das análises. Os dois primeiros capítulos pavimentaram uma via conceitual que nos conduziu a uma clareira com dois grandes cumes: Platão e Aristóteles. Iniciando pela crítica de Platão aos poetas trágicos e adentrando nas nuances do texto da República, a análise inaugural, e que novamente traz à tona a tese do tirano como o outro, se inscreve afirmando ser o tirano o outro do regime ideal. O tema relativo ao debate platônico sobre a justiça permite ao autor dizer, reforçando a sua tese, que “(...) o tirano está sempre presente como uma sombra ameaçadora, prestes a converter-se no modelo de comportamento toda vez que não consegue provar a superioridade da vida dos justos com argumentos que não pareçam estranhos à vida da cidade” (p. 117). A análise percorre de maneira mais atenta a República, passando pelo Político e As leis. Mesmo abordando os grandes temas da filosofia política de Platão, o que figura como objeto de destaque é a percepção de que a tirania é a expressão dos desejos mais vis “sobre toda a obra de civilização empreendida pela razão”. Segundo o autor, “o que vamos encontrando, finalmente, é uma inversão completa de todos os valores que comandam na República a busca da justiça e da felicidade” (p. 147).

Na análise de Aristóteles, ganha lugar a reflexão sobre a possibilidade de saída da tirania, uma situação que, segundo o autor, parece ser um ponto de chegada das análises de Platão, mas que permaneceu carente de saídas efetivas. Parece que, no caso do estagirita, a “solução” se articula em torno do conceito de contingência, para analisar a transição e a mudança dos regimes políticos. Assim, o que Bignotto faz ao colocar frente a frente Platão e Aristóteles, no enfrentamento do tema da tirania, é “saber se a tirania tem em Aristóteles o mesmo papel de regulador invertido da vida política, de ideal negativo, ou se, ao contrário, é apenas mais um dos regimes, o mais distante do regime ideal, mas sem nenhum significado” (p. 160). No processo de compreensão das análises aristotélicas, é de saltar aos olhos a sua contemporaneidade, afinal, “Aristóteles resume os objetivos da tirania em três: degradar a alma de seus súditos, semear a desconfiança entre eles e impedir que os homens se ocupem dos negócios públicos” (p. 172). Com análises diferentes em relação a Platão e com a atenção às experiências de tiranias existentes, a lição de Aristóteles é que as tiranias, para se preservarem, precisam esconder a sua verdadeira natureza. E nisso Bignotto conclui que, “longe do voo especulativo de seu mestre, suas lições são ainda mais contundentes na medida em que nos confrontam com uma realidade próxima de nossas experiências políticas habituais” (p. 174). Falando como leitor, em termos contemporâneos, toda essa argumentação nos chama a atenção para as tiranias que se disfarçam de democracia.

Por fim, em tom “trágico”, no sentido de que a tirania parece sempre nos rondar, Bignotto retoma um tema dos escritos platônicos sobre a possibilidade de educação do tirano. As incursões não bem-sucedidas de Platão nas tentativas de educar o tirano de Siracusa abrem as análises deste capítulo. Contudo, é na análise do Hieron, obra de Xenofonte, que o autor ensaia as palavras finais de um percurso que nos faz olhar para a política e seus limites, sem necessariamente superar o impasse platônico, isto é: como sair de uma tirania? As análises do Hieron são tecidas em franco debate com as posições sustentadas por Leo Strauss em seu texto Sobre a tirania, no qual comenta e analisa o texto de Xenofonte. Os primeiros movimentos dos argumentos de Xenofonte passam pelo esvaziamento do espaço público como condição de exercício da tirania, bem como pelo isolamento e “medo” do tirano em relação a seus súditos. Em outro momento, o exercício reflexivo se dá em torno da restituição desse espaço público, como condição de segurança e possível “felicidade” do tirano. No entanto, tal solução implicaria a autodestruição da própria tirania, ou seja, a via argumentativa relativa à educação do tirano nos lança, novamente, no impasse platônico: como sair da tirania?

Assim, penso que o livro nos oportuniza um olhar sobre os limites da experiência política, nos chamando a atenção para “os contornos dentro dos quais devemos nos mover para não cairmos na barbárie provocada pela crença no impossível” (p. 205). Ao usar como categoria de análise a expressão “o outro” como marcador de uma oposição, Bignotto nos possibilita ver que, seja no regime ideal, seja na democracia, esse outro expressa a marcação de uma fronteira, que quando ultrapassada oferece imensas dificuldades para um movimento de retorno, isto é: como sair de uma tirania? Com isso, penso que, ao refazer com ele o percurso político filosófico acerca dos fundamentos da tirania no mundo helênico, fica evidente, para os olhos modernos, como riscos tão antigos ainda nos soam tão contemporâneos.

GERALDO ADRIANO EMERY PEREIRA é doutor em filosofia política pela UFMG e professor de filosofia no Colégio de Aplicação da Universidade Federal de Viçosa-MG.


Geraldo Adriano Emery Pereira
Top