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Francisco Achcar - 27 - Junho de 1997
Os jardins de Roma
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Os jardins de Roma

 

FRANCISCO ACHCAR

dependendo de ponto de vista ou ideologia, Ernst Robert Curtius pode ser venerado ou execrado. De qualquer forma, "grande" é o adjetivo inevitável para seu trabalho, em sentido qualitativo e quantitativo: "Literatura Européia e Idade Média Latina" é dos mais ambiciosos estudos literários jamais intentados. Uns o consideram como triunfo da visão humanista, uma vasta demonstração da unidade da cultura européia e ocidental ao longo de quase três milênios; outros, um equívoco conservador e elitista, afim do próprio totalitarismo político que acreditava combater.
Desde seu ensaio polêmico de 1932, "O Espírito Alemão em Perigo", Curtius resistia ao que denunciava como a decadência da cultura e da educação alemã, o nacionalismo e o "ódio cultural" que se avolumavam no país. "Literatura Européia e Idade Média Latina", cuja preparação o ocupou pela longa e terrivelmente agitada década e meia que se seguiu àquela publicação, nasceu da mesma motivação, agora ampliada em "preocupação relativa à preservação da cultura ocidental". O objetivo é nada menos do que demonstrar a articulação básica dessa cultura ameaçada.
Curtius estende-se de Homero a Goethe, ou seja, dos albores da literatura grega até as portas do romantismo. (Se este chega até nós é uma "outra questão", que não deixa de vir ao caso.) Nesse gigantesco arco de tempo, ele demonstra, com enorme e elegante erudição, a preservação do legado antigo, na forma que deriva de Roma, transmite-se diversificada e capilarmente através da Idade Média e alimenta toda a literatura, pelo menos até fins do século 18. A literatura contemporânea, à qual Curtius se dedicou no início de sua carreira, reforçava sua concepção da permanência viva da cultura antiga, com obras a um tempo classicistas e renovadoras, como as de James Joyce e T.S. Eliot (com quem ele se correspondeu e cujo "The Waste Land" foi dos primeiros a traduzir).
Entre os muitos temas do livro, que mal se podem enumerar nesta resenha, destacam-se a retórica e um dos aspectos de sua onipresença: os "tópoi" ou lugares-comuns. Curtius repôs o estudo da retórica antiga como uma ampla teoria do discurso e demonstrou sua função como um corpo de doutrina que informou a literatura, além de outras formas da linguagem e da vida, durante muito mais tempo (toda a Idade Média) e muito mais profundamente do que antes se imaginava. A concepção da linguagem como máquina retórica é o que mais fundamentalmente o afasta da grande linha de filólogos e críticos alemães representada por, digamos, Erich Auerbach, cuja concepção de linguagem se pode chamar mimética ou representacional. É, também, um dos pontos mais avançados de seu livro, que o projeta para além de sua época e o associa a formas contemporâneas de análise do discurso, especialmente o literário.
Quanto ao "Toposforschung", o estudo dos "tópoi", o destaque que lhe foi dado, por seguidores ou detratores, deixou em segundo plano seus outros pontos importantes. Essa linha de investigação teve adeptos numerosos, mas também valeu a Curtius restrições numerosas e geralmente injustas. Hans Robert Jauss ironiza a criação de "todo um exército de epígonos", de acríticos caçadores de "tópoi". E Francis Cairns, responsável por notáveis progressos no estudo do funcionamento dos "tópoi" na retórica e na poética antigas, passa ao largo do livro de Curtius, não chegando sequer a mencioná-lo.
Qual a razão desse relativo e recente desprestígio? Talvez a razão básica se encontre já na primeira linha do livro, no primeiro dos dez princípios condutores ou "axiomas" (segundo a tradução brasileira) que precedem o texto (essas epígrafes são realmente programáticas, porém, como são sempre apresentadas nas línguas originais -grego, latim, alemão, francês e espanhol-, muitos leitores não se dão conta delas devidamente). Em tradução levemente "heterodoxa" (e desajeitada), mas conforme com a "descontextualização" operada por Curtius, assim reza a frase de Heródoto que abre o livro: "Antigamente as coisas belas se descobriram a homens, e deles é que se deve aprender". Esse é o princípio de muitas virtudes ou vícios da obra -dependendo de como sejam encarados. Ou, para os críticos mais drásticos, esse seria o princípio de um só grande vício, com muitas sequelas: classicismo, culto ao cânone, anti-historicismo (ou, em outra versão, desconsideração da história), etnocentrismo, elitismo, espírito antidemocrático (ou, em todo caso, pouco democrático) etc. etc.
Sendo o escopo da obra demonstrar a unidade, mais do que da literatura, da cultura ocidental, em torno de seu núcleo latino e tendo como centro a Idade Média, sem reservar lugar para influências de outras fontes culturais, não apenas não-latinas, mas até mesmo românicas, como é o caso do trovadorismo (Curtius apenas responderia que este não era o seu projeto), não é difícil perceber o imenso flanco aberto à crítica predatória, especialmente, hoje, a desconstrucionista, mas não só ela. Em primeiro lugar, houve (e há) resistência a dois deslocamentos fundamentais operados por Curtius: primeiro, ênfase em Roma, não na Grécia; segundo, foco na Idade Média, não no Renascimento.
Trata-se, portanto, de uma forma não muito convencional de classicismo e de humanismo. Quanto a este último, é significativo que, na mesma época em que Curtius elaborava seu livro, Martin Heidegger, que ele parecia admirar, tenha produzido uma "denúncia" do humanismo e justamente do humanismo como fenômeno romano -o valor central do ideário defendido por Curtius. Sobre o classicismo, talvez Jauss seja o contemptor mais sintético e severo: "A permanência da herança antiga é erigida (por Curtius) em princípio supremo e determina a oposição, que é imanente à tradição literária e que jamais a história pode ver resolvida, entre a criação e a imitação, a grande arte e a simples literatura: acima do que Curtius chama 'a indestrutível cadeia de uma tradição de mediocridade' se eleva o classicismo intemporal das obras-primas, que transcende a realidade de uma história que permanece 'terra incognita'±".
Outra das críticas fortes que se podem dirigir a Curtius é de psicologismo: para fugir ao relativismo historicista, ele recorreu à doutrina de Jung. Não obstante, apesar do generoso agradecimento registrado no prefácio, a sua dívida para com o teórico dos arquétipos é modesta e o seu nome não é invocado mais do que três vezes no texto. Numa dessas ocorrências (talvez a mais comprometedora), a doutrina do psicólogo suíço é empregada para formular uma conclusão desnecessária e extraliterária acerca de uma série de dados cuja reunião nada deve a qualquer sugestão de origem junguiana. Trata-se da seção 8 do capítulo 5º, dedicado à tópica. Depois de apresentar diversos exemplos do "topos" do "puer senex" ("menino ancião"), provindos de épocas e culturas variadas e distantes, Curtius generaliza: "Mostra a unanimidade dos testemunhos de tão diversas procedências que aqui se revela um arquétipo, uma imagem do inconsciente coletivo, no sentido de C.G. Jung. Depararemos ainda, vez ou outra, tais imagens primitivas. Os séculos finais da Antiguidade romana e cristã estão cheios de visões que só podem ser interpretadas como projeções do inconsciente" (pág. 148).
O leitor tem a lamentar aqui que, além de lhe ser demandada tanta e tão pesada crença, ele seja instado a admitir relações bem pouco demonstradas. Ainda que se tratasse de um universal da cultura, por que ele atestaria a existência de um arquétipo junguiano? Mais: por que tais visões "só podem ser interpretadas como projeções do inconsciente?". Por que e como "projeções do inconsciente" se deduziriam do jogo tão sofisticadamente codificado dos "tópoi" literários?
Mas mesmo as restrições mais graves (há várias outras mais) empalidecem diante da magnitude da obra, da massa estonteante de conhecimentos nela movimentada, da sensibilidade penetrante com que a literatura é tratada e das revelações extraordinárias que continuam a nos surpreender. Seria de estranhar a presença de tantos encantos num trabalho de erudição tão maciça, se não se soubesse que o seu autor, longe de ser um estudioso divorciado da vida, era um homem de hedonismo amável, nada representativo do vezo acadêmico e mesmo avesso a ele: "Para mim, pessoalmente (diz ele numa carta), a própria ciência não ocupa, na escala dos valores, a alta posição que meus colegas lhe concedem. Quanto mais velho eu fico, mais forte é a minha consciência de não 'pertencer a isso'. Quero ser livre para, em claras noites de verão, banhar-me no Neckar ou encontrar amigos, mesmo que estejam marcadas para essa noite mil parolagens (Krãnzschen) ou congressos. (...) O cosmos do espírito, para mim, não é um museu, mas um jardim onde perambulo e colho frutas".
Este monumento de investigação literária e ensaísmo criativo, obra de referência para estudantes e estudiosos sérios de literatura, esteve 40 anos sem ser reeditado no Brasil. A Edusp e a Hucitec honram-se ao repor em circulação, em grande estilo, ainda que tardiamente, esta obra capital que, para fugir à regra de nosso atraso sistemático em traduções e publicações do gênero, foi traduzida no Brasil pouco tempo depois de seu aparecimento (embora tenha vindo a público com certo atraso).
O livro é de 1948 e a primeira publicação em português foi a brasileira, de 1957, editada pelo Instituto Nacional do Livro, em "tradução do original alemão por Teodoro Cabral, com a colaboração de Paulo Rónai". Na edição atual, há inversão na ordem dos créditos da tradução: o nome de Paulo Rónai, talvez por causa de seu maior prestígio, vem agora em primeiro lugar, sem qualquer esclarecimento quanto a sua promoção, de colaborador a tradutor principal. (Na ficha catalográfica, porém, mantêm-se os nomes na ordem da primeira edição.)
A revisão desta nova edição é devida a Geraldo Gerson de Souza. Supõe-se que ela tenha incluído o cotejo da tradução com o texto da segunda edição alemã. Com efeito, a versão brasileira, embora aparecida em 1957, não levou em conta a nova edição alemã do livro, em cujo prefácio (agora traduzido -por quem? pelo revisor?), datado de 1953, o autor já anunciava a tradução a ser lançada "em breve" no Rio de Janeiro (portanto, o projeto data da época em que Augusto Meyer era diretor do INL - Instituto Nacional do Livro). Esse atraso de quatro ou cinco anos é muito anormal, pois a publicação de um livro deste porte, naquela época, entre nós, era empreendimento complicado e demorado, especialmente quando, como era o caso, envolvia agências oficiais.
Contudo, ainda hoje a produção de um livro como o de Curtius abala as precárias estruturas de nossas editoras e pode justificar demoras de anos. Com efeito, o livro que agora reaparece teve seu relançamento anunciado pela parceria Edusp-Hucitec há cerca de dois anos e meio. Numa resenha publicada por ocasião desse "false start", Modesto Carone reclamava de alguns defeitos sérios na tradução do prefácio à segunda edição, augurando que o mesmo tipo de problema não se repetisse no corpo da obra. Infelizmente, o cotejo de alguns poucos trechos com o original e com a tradução inglesa revela falhas que são compreensíveis em trabalho de tão grande fôlego, mas que nem por isso são menos sérias. Os exemplos seguintes foram colhidos ao acaso e, assim, é de esperar que não valham como amostra. Além da exiguidade do cotejo realizado, meu mais que exíguo acesso ao alemão, embora não impeça a percepção de certos problemas, não recomenda julgamentos generalizantes.
Na página 148, o que vem traduzido como "alma cósmica" (pobre Curtius!) é, no original, o "cosmos da alma" ("Seelenkosmos"), ou "universo psicológico" ("psychological cosmos"), como na tradução americana. Na pág. 466, "exemplos" traduz o que melhor corresponderia a "modelos" ou "padrões" ("Mustern" - "designs" na tradução para o inglês), e no contexto essa diferença é importante. Na mesma frase, o verbo, que deveria estar no singular, vem no plural ("refletem"), o que causa equívoco com relação ao sujeito. No parágrafo seguinte, a palavra "Anschauung" é traduzida primeiro por "visão" e depois por "percepção". A primeira dessas traduções é imprópria e gera confusão. Na pág. 466, "autores didáticos" são, na verdade, os autores curriculares ou os autores selecionados para o estudo nas escolas ("Schulautoren"), como Curtius explicara no capítulo 3º. Houve casos em que a gralha engolida por repetidos revisores, da 1ª edição e desta, arruinou o trabalho do tradutor: em "abandono internacional da educação alemã" (pág. 31), o único problema real da tradução está em encontrar em português equivalente preciso para "Bildung", velho ideal alemão de formação cultural, instrução; quanto a "Selbstpreisgabe", o tradutor, com certeza, terá vertido a palavra, adequadamente, por "abandono intencional" e não, absurdamente, "internacional", como saiu.
Nada obstante, a edição atual é em tudo melhor que sua antecessora: pelo trabalho gráfico primoroso (característica de vários dos livros que a Edusp tem lançado); pela tradução, que, a despeito de quaisquer restrições, oferece um texto de leitura agradável, de boa qualidade gramatical e -"last not least"- pela troca da introdução, pouco mais que protocolar, de Cândido Motta Filho, intitulada "Curtius", por texto de igual título, bem mais substancioso, assinado por Segismundo Spina.
Dois pontos, apenas, a respeito dos quais não é descabido lamentar a passagem dos "bons velhos tempos". Primeiro, o preço: hoje os livros brasileiros são revoltantemente caros, ao passo que os livros do INL eram comovedoramente baratos. Segundo (causa e consequência do primeiro), a tiragem: os editores de 1957, num país bem menos populoso, menos universitário e mais analfabeto, tinham a expectativa de 3.000 compradores para a obra; os editores de hoje não se arriscam a contar com mais de 1.500, e talvez ainda estejam sendo otimistas. 

Francisco Achcar é professor de língua e literatura latina na Unicamp.
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