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Jorge Grespan - 93 - Fevereiro de 2003
Objeções ao marxismo
Uma referência obrigatória nos estudos de Marx
Foto da capa do livro Marx: lógica e política 3
Marx: lógica e política 3
Autor: Ruy Fausto
Editora: Editora 34 - 320 páginas
Foto do(a) autor(a) Jorge Grespan

Pelo título, o mais recente livro de Ruy Fausto deve ser entendido como continuação do projeto delineado nos anos 1980, quando foram publicados os dois primeiros volumes de "Marx: Lógica e Política". Com toda justiça, aqueles livros tornaram-se referência obrigatória no estudo do marxismo, dado o extraordinário rigor e a profundidade da análise a que submetiam os textos de Marx, ao mesmo tempo em que abriam um importante diálogo crítico com seus principais comentadores.
Esse terceiro volume compartilha certamente com os anteriores as qualidades e a relevância. E se o autor revela agora um certo desconforto com o título, que "tem o efeito de "marxizar" o texto mais do que gostaria", isto de modo algum quer dizer que só agora ele tenha decidido enveredar por uma dimensão crítica. A seriedade intelectual de Ruy Fausto o colocou sempre a salvo de modismos neoliberais, mesmo no tempo em que o neoliberalismo não estava, como hoje, ultrapassado. Não se trata, portanto, de conversão, muito menos de abandono.
De fato, já na introdução geral do projeto, escrita em 1981, constata-se a preocupação de proceder simultaneamente a uma análise e a uma crítica da obra de Marx. Lá esboçavam-se alguns elementos dessa crítica, que se desenvolveriam aos poucos junto com a obra.
O problema, então, passa a ser: o que quer dizer "crítica"? Para fazer jus ao rigor das análises de Ruy Fausto, não podemos simplesmente tomar esta palavra em seu uso corriqueiro. Devemos tentar definir com alguma precisão os significados que ela assume nos seus textos.
Em primeiro lugar, ela se dirige a outros comentadores de Marx, como Castoriadis, Poulantzas e Althusser, tendo o sentido de desacordo e de correção de seus erros, mesmo reconhecendo serem eles grandes pensadores. Trata-se apenas de uma operação destinada a limpar o terreno para a exposição das próprias idéias do autor, mas podia ser unilateralmente interpretada como uma defesa de Marx diante dos críticos ou epígonos. Daí talvez alguns terem imputado erroneamente a Ruy Fausto uma "ortodoxia" marxista que ele, aliás, sempre recusou.
Esse equívoco talvez tenha se produzido, por outro lado, pelo teor dos próprios textos. Inclusive nos que compõem o presente livro, a análise da obra de Marx antes de tudo tem a intenção de esclarecer, de explicar minuciosamente por meio de verdadeiras exegeses. Mas se enganam os que não encontram aqui a crítica. Ela aparece também, só que funcionando como um recurso pelo qual o autor distingue sua posição da que é analisada. Ou seja, a análise não se compromete de antemão com a verdade de seu objeto, admitindo até a possibilidade de ele ser falso, para poder, de fora, dissecá-lo com mais eficiência. A explicitação é muito maior, com isso, revelando as descontinuidades do objeto, em vez de forçar uma coerência por vezes inexistente.
É o que acontece, por exemplo, no segundo capítulo do livro, dividido de acordo com as três concepções diferentes de história e temporalidade que se encontram em Marx, em correspondência com os três distintos momentos da elaboração de sua teoria: o "Manifesto Comunista" e a "Ideologia Alemã", inicialmente; a seguir, os "Grundrisse" e "O Capital"; e, "da capo", os "Manuscritos de 1844". Em vez de passar por alto as diferenças, para afirmar uma visão unitária da história por Marx, o autor, ao contrário, as expõe criticamente.

Concepções do tempo
Na mesma direção vai o capítulo 3, que trata da relação do marxismo com as perspectivas historicista e anti-historicista, mais ou menos nos moldes em que havia sido abordado o problema do humanismo e do anti-humanismo no primeiro volume, de 1983. A perspectiva, digamos, "externa", em que o coloca a crítica, permite verificar a situação especial de Marx -mas não de todos os marxistas- diante de tal polaridade, que retoma o problema das diversas concepções do tempo.
Este é o sentido principal dos quatro capítulos do presente volume de "Marx: Lógica e Política". Vale para ele o que o autor havia dito na introdução ao livro inicial do projeto: ele "fica, em geral, no primeiro momento", o da análise, que se articula criticamente.
O que diferencia o presente livro dos anteriores é que nele começa a se realizar a intenção de uma crítica mais ambiciosa, correspondente a uma terceira definição. Numa longa introdução, aparentemente prevista desde 1981, Ruy Fausto apresenta mais abertamente suas objeções à capacidade explicativa da teoria que investiga. Em alguns pontos, elas se ligam a temas desenvolvidos nas análises detalhadas que formam os capítulos subsequentes. É o caso das questões envolvendo a história e o tempo, por exemplo.
Caracterizando o capitalismo por ser progressivo do ponto de vista técnico e das liberdades jurídicas e, contraditoriamente, regressivo, pela exploração do trabalho levada ao extremo, o autor ainda mostra uma dimensão progressivo-regressiva em que ambos movimentos se determinam dialeticamente.
Também é interessante o tratamento dado à passagem de um modo de produção a outro, marcado por descontinuidades temporais e modais. E isso é importante por incluir o problema da transição do capitalismo ao comunismo, relacionado a uma discussão decisiva feita depois no capítulo 1, sobre a famosa passagem dos "Grundrisse" que trata de um estágio posterior ao da "grande indústria". Seria este um elo da transição? Representaria ele uma certa "libertação" da "subsunção real" imposta ao trabalhador ou seria um novo tipo de subsunção, chamada por Ruy Fausto de "espiritual"? São questões absolutamente candentes que, por si mesmas, já justificariam a relevância do livro.
Nem todas as objeções ao marxismo expostas nesta introdução, contudo, encontram eco nas análises minuciosas do atual ou dos anteriores volumes da obra. Um dos problemas do livro é um descompasso entre o sentido nele frequente da crítica, vinculada à análise, e este novo sentido, que justificaria as restrições em face do marxismo. Haveria, em outras palavras, um relativo salto entre as microcríticas, realizadas ao longo da obra, e as macrocríticas programáticas.
Estas últimas ocupam o núcleo da presente introdução. Como na primeira, Ruy Fausto admite que as transformações por que passou o capitalismo desde Marx não invalidam em geral a análise deste sistema feita por ele já no século 19. Afinal, diz-nos, "o marxismo, essencialmente uma teoria crítica do capitalismo, suporta bem, em geral, as mutações que sofreu o sistema". Como os textos integrantes dos três volumes publicados dedicam-se em grande parte a esse aspecto socioeconômico do marxismo, a crítica maior não pode se apoiar neles.

A democracia capitalista
Ela se refere a outra ordem de fatos, com os quais a teoria de Marx seria incapaz de lidar. Trata-se principalmente da natureza dos totalitarismos de esquerda e de direita, bem como da democracia capitalista, que os marxistas não puderam diagnosticar corretamente devido à insistência na dicotomia entre a base econômica e a superestrutura político-jurídico-ideológica.
É preciso novamente deixar claro: o ponto de vista de que fala e julga Ruy Fausto não é o desta "democracia capitalista", para ele um todo contraditório, e sim o do socialismo democrático.
De qualquer maneira, os prometidos próximos livros do projeto terão ainda muitos temas a desenvolver e explicar. Como, por exemplo, a afirmação de que o nazismo não seria uma variante capitalista, porque nele o capital estaria "neutralizado". Ou também o comentário de que mesmo o "melhor marxismo" não apreende bem a complexidade da relação entre base e superestrutura, pois as esferas mudariam de forma constantemente, sem a permanência de uma delas determinando as outras.
Mas o que dizer do conceito lukácsiano de "totalidade concreta", de certo modo presente também nas concepções da Escola de Frankfurt? Este e outros conceitos igualmente sofisticados permitiram pensar as novidades do século 20 a partir do marxismo.
Também é necessário detalhar o modelo exposto das quatro formas político-econômicas, cujo esquematismo deixa de lado as transformações históricas que levaram ao nazi-fascismo dentro do capitalismo, como a oligopolização e o predomínio do capital financeiro, observáveis pelo menos desde o começo do século.
Deve-se levar em conta, sem dúvida, que o referido modelo é exposto numa introdução. E estas, como os prefácios, caracterizam-se por uma abordagem apenas preliminar, muitas vezes simplificada, dos temas. Mas a consideração da gênese das formas talvez venha a alterar algumas das conclusões do autor.
Uma coisa, porém, é certa: como afirma Ruy Fausto, o problema mesmo do "melhor marxismo" é que diante das inéditas questões propostas pela história recente não adianta só "restituir toda a riqueza e rigor do pensamento de Marx" mediante novas exegeses dos seus textos. Um certo afastamento da filosofia, entendida como leitura estrutural, é realmente inevitável, para poder enfrentar a "história concreta" e desenvolver criativamente as categorias herdadas. Aguardamos impacientemente a sequência da obra.


Jorge Grespan é professor de história na USP e autor de "O Negativo do Capital" (Hucitec).

Jorge Grespan é professor de história da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da USP
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