Logotipo do Jornal de Resenhas
Antonio Joaquim Severino - 117 - Junho de 2018
O risco da filosofia tecnicizada
Foto da capa do livro Filosofia no Brasil
Filosofia no Brasil
Autor: Ivan Domingues
Editora: Unesp - 561 páginas
Foto do(a) autor(a) Antonio Joaquim Severino

Aqueles que se interessam pela prática filosófica em nosso país, certamente encontrarão neste livro um valioso subsídio para o melhor entendimento dessa prática. Trata-se, com efeito, de rigoroso e abrangente estudo da experiência filosófica no Brasil, composto na modalidade de ensaio e desenvolvido de uma perspectiva intencionalmente metafilosófica, ou seja, filosofando sobre o próprio filosofar. Não se trata, pois, de um balanço enciclopédico das ideias filosóficas produzidas no ambiente geocultural do país ao longo de seus 500 anos de existência histórica, nem de um tratado teórico construindo algum sistema teórico que representasse uma filosofia especificamente brasileira. Sem dúvida, as práticas reais que constituíram a dimensão empírica da expressão filosófica em nosso contexto estão documentadamente retomadas e apresentadas, com todo rigor teórico e cuidado metodológico. Do mesmo modo, são retomadas as circunstâncias objetivas tecedoras de nossa realidade histórico-social pois elas colocaram confrontos e desafios para esse pensar. Mas a abordagem de Domingues não é a do historiador de ideias nem a do exegeta de textos, nem a do sociólogo do conhecimento e nem mesmo a do interpelador da historiografia. Portanto, sem descartá-las, as referências históricas, políticas, econômicas, culturais e mesmo aquelas especificamente filosóficas entram como meio e fonte e não como tema, objeto ou objetivo do estudo. O que o autor pretendeu – e então recorrendo à contribuição epistemológica de Max Weber –, foi a construção de tipos ideais, modelos teóricos que pudessem configurar personagens conceituais emblemáticos para capturar as diferentes figuras intelectuais que se constituíram em cada momento histórico. Estes tipos ideais permitem então que se delineie um perfil dos pensadores e um sentido de sua produção teórica, sentido eventualmente compartilhado por outros pensadores, sem que se trate da formação de uma escola filosófica, propriamente dita. O que vê é um espectro de possibilidades que, sem prejuízo de suas peculiaridades singulares e assistemáticas, bem como da ocorrência de variações e hiatos, desenhem uma rede que dá boa conta da experiência filosófica ocorrida no Brasil. Para configurar este delineamento da formação da intelligentsia brasileira ao longo de sua temporalidade histórica e espacialidade social, Domingues trava um extenso e intenso diálogo com os nossos mais abalizados historiadores e analistas da filosofia, da literatura e das ciências humanas, em geral. Por isso a obra nos dá também uma visão não só da formação e da expressão da filosofia, em sentido estrito, mas de toda a constituição da experiência cultural do Brasil.

A estrutura da construção do livro é feita em seis passos. Depois do momento inicial, dedicado à apresentação de sua perspectiva de abordagem metafilosófica da experiência filosófica nacional, num segundo passo trata então dessa experiência no período colonial, caracterizando o intelectual do período como intelectual orgânico da Igreja. Este é a figura do clérigo colonial, tipificado pelo mestre-escola jesuíta desenvolvendo seu apostolado intelectual embutido em sua prática pastoral. Tem no Padre Vieira e Francisco de Faria, seus principais representantes, antecedidos por Manuel da Nóbrega, José de Anchieta.

Já durante o Império e a República Velha, abordados no terceiro momento, Domingues identifica a forte presença daquele pensador que caracteriza como o intelectual diletante estrangeirado, que transpira nostalgia da Europa, sentindo-se desterrado em seu próprio país. Geralmente egresso da área do Direito, prevaleceu principalmente no final do período colonial e tem como representantes típicos Tobias Barreto, Joaquim Nabuco, Sylvio Romero e Farias Brito.

No quarto passo, estão em pauta os fecundos anos de 1930 a 1960, período no qual a filosofia ganha significativo aparato institucional, criando espaços para a atuação do scholar especializado, novo praticante da filosofia, que se bifurcará em duas direções:  uma, a do virtuose formado sob a influência direta dos integrantes da Missão Francesa trazida para a instauração do Departamento de Filosofia da USP, na década de 1930, o típico pensador uspiano e, outra, a do expert americanizado, resultante da fusão do Homo Lattes e do Homo Qualis, que pratica a filosofia à imagem e semelhança da postura do pensador da área das ciências duras. Esta é a estirpe quantitativamente dominante, o modelo hegemônico, no contexto nacional desde o século XX, e é legião, no dizer do autor.

O quinto passo é dedicado à experiência filosófica brasileira dos últimos 50 anos, período em que além dos scholars e experts, emerge o intelectual público engajado nas causas nacionais, como foi o caso de José Arthur Giannotti, Marilena Chaui e Henrique de Lima Vaz. Os intelectuais desta categoria, para além da conformação como scholars, estendem seu pensamento ao espaço público da polis, engajando-se num debate sobre o destino político do país, tomando posições sobre as questões nacionais.

Finalmente, no sexto passo, o autor discorre sobre o intelectual cosmopolita globalizado, que transpõe as fronteiras da agenda política local, assumindo virtualmente uma dimensão universal. É mais uma figura projetada, conceitual e especulativa, sem referência a algum representante já presente na atualidade. Trata-se antes de uma possibilidade que se anuncia, relacionada às experiências intelectuais possíveis no amanhã, previsível com base num inventário dos possíveis. Nesse momento, o autor alerta para o risco do surgimento de um mandarinato, o dos scholars, decorrente da adesão à prática da filosofia tecnicizada. Superados todos os déficits institucionais, postas todas as condições para a prática sistemática da filosofia, podem ocorrer a total paperização da filosofia e a morte do pensamento, em meio a um processo de taylorização radical do trabalho acadêmico, sob a pressão de um produtivismo exacerbado.

O livro ganha ainda maior relevância por representar não só um exemplo para as novas gerações de pesquisadores em filosofia mas também um convite para que se voltem igualmente a sua expressão no contexto nacional, desfazendo-se de preconceitos que insistem em desqualificar a atividade teórica aqui desenvolvida, de modo a implementar u’a maior aproximação de sua realidade concreta, fazendo desse autoconhecimento um impulso para uma auto-reavaliação de seus caminhos. Ivan Domingues, professor titular de Filosofia, da UFMG, já percorreu uma rica trajetória no cultivo da filosofia em nosso país, tendo se dedicado particularmente à reflexão nas esferas da epistemologia e da filosofia da ciência, em íntima interlocução com as tradições franco-alemã e anglo-americana. Além de seu perfil intelectual de teórico rigoroso, de docente e de pesquisador, Domingues desenvolveu igualmente intensa e extensa atividade de cunho acadêmico e institucional, com grande dedicação à docência, à pesquisa e à gestão, participando ativamente da criação e da animação de grupos de estudo e de pesquisa, no espaço universitário e junto às instâncias oficiais de fomento à educação.  Tal dedicação, com tão relevantes resultados, garantiu-lhe a condição de ser uma referência nacional no campo filosófico, o que lhe granjeia  grande respeito e reconhecimento junto à comunidade da área.


Antonio Joaquim Severino é professor titular, aposentado, de Filosofia da Educação na Faculdade de Educação da USP.



Antonio Joaquim Severino
Top