Se
Deus todo-poderoso, que havia criado o primeiro homem e a primeira mulher,
sabia de antemão que haveria terríveis problemas decorrentes dessa relação, por
que não escolhera logo outra figura masculina para ser o companheiro de Adão? Por
que criara a mulher? Com essas questões em mente, Tomás de Aquino, no século
XIII, argumentava que “para viverem juntos e fazer companhia um ao outro, dois
amigos juntos são melhores do que um homem e uma mulher”, muito embora
entendesse que também estava em jogo o tema da procriação. Dez séculos depois,
sua conclusão retomava as ideias de Agostinho, para quem outro homem seria
muito mais útil como ajudante no trabalho agrícola do que uma mulher.
Num
outro polo, e bem depois, enfrentando a misoginia do cristianismo, que se torna
a religião hegemônica no Ocidente, Arcangela Tarabotti, escritora e freira
veneziana, contra-argumentava que esses padres, que demonizavam Eva e defendiam
a perfeição masculina estavam profundamente enganados. Segundo ela, Eva era
superior a Adão: afinal, este fora feito do barro, enquanto ela fora feita de
uma substância mais nobre, o corpo de um homem; ademais, “Adão nasceu fora do
Éden; Eva, no próprio Paraíso.”
Historiador,
crítico literário e professor da Universidade de Harvard, Stephen Greenblatt é
conhecido por inúmeros e preciosos livros, alguns já traduzidos e publicados no
Brasil, como A Virada: o nascimento do
mundo moderno (2011), Como
Shakespeare virou Shakspeare? (2004) e Possessões
Maravilhosas: o deslumbramento do
Novo Mundo (1996), além de Renaissance
Self-fashioning: From More to Shakespeare (1980). Agora, brinda-nos com um inusitado e
erudito trabalho sobre a história do mito de Adão e Eva, que marcou profundamente
a constituição da psique ocidental e continua inquietando ainda hoje. Estudioso
de literatura e consagrado nome do “novo historicismo”, fascinado pelas
histórias que inventamos para dar sentido à nossa existência, como ele mesmo
afirma no prólogo deste livro, Greenblatt discute como uma narrativa sobre o
primeiro casal e o pecado original se transformou em realidade inquestionável,
sendo assim entendida em nosso imaginário cultural, desde os primeiros séculos
do cristianismo, quando foi elaborado pelos pais da igreja cristã.
Assumindo
que a linguagem constitui os objetos de que fala, mais do que os reflete, como
afirmava a teoria do reflexo predominante até os anos sessenta, as histórias
que envolvem o primeiro homem e a primeira mulher encontram seu lugar nesse
envolvente trabalho de história cultural, escrito com muita elegância,
agilidade e humor contagiante. Afinal, somos efeitos dessas narrativas trazidas
pelo cristianismo, decisivas em nossa formação moral e religiosa, que
desclassificaram as mulheres desde sua primeira entrada em cena, em que pese o
contraste simbólico estabelecido com Maria, que dá à luz o Salvador, e que
“libidinizaram o sexo”, como explica o autor, na esteira de Foucault, especialmente
em seu livro póstumo recém-lançado História
da Sexualidade IV. Les Aveux de la Chair. Aprendemos, então, que embora
Agostinho acreditasse que havia conjunção sexual no Paraíso, não se tratava de pecado,
já que esta se mantinha nos marcos do sexo temperante, pois não escapara,
ainda, ao controle da razão.
Historicizando
a origem, a ascensão e a queda do mito de Adão e Eva, ao longo da história do
Ocidente e examinando as inúmeras narrativas que discutem o pecado original e a
queda, que expulsa toda a humanidade para fora do Paraíso para sempre, ao menos
neste mundo, Greenblatt subverte todo um regime cristalizado de verdades, profundamente
misógino. Vale lembrar que esse regime de verdades definiu interpretações sobre
o sexo, a vida, a morte, o prazer e a culpa em nossa civilização, que foram
amplamente aceitas e apropriadas, inclusive pelo discurso científico da
medicina vitoriana, como apontou Foucault, em sua História da Sexualidade I – a vontade de saber, em 1976. Numa
perspectiva genealógica, Greenblatt nos mostra o momento da invenção do pecado
original, formulado por Tertuliano e elaborado por Agostinho, no século III, e
visita obras literárias e pictóricas, que moldaram nossa imaginação, até sua
queda, com Charles Darwin, para quem “o paraíso não havia sido perdido”, já que
nunca existira.
São
muitas as histórias que esse livro nos conta e são muitas as surpresas que
provoca, ao questionar nossas próprias interpretações e experiências,
especialmente numa época em que o discurso religioso atinge milhões, pregando
obediência e renúncia de si, e em que o poder pastoral se intensifica e
ultrapassa os muros da igreja, onde nasceu, resultando no crescimento da
violência e da intolerância, dentro e fora do Estado, como temos assistido.
Muito prazerosa, a leitura desse livro é fundamental também para se realize um
diagnóstico mais apurado do nosso presente.
Margareth
Rago é professora do Departamento de História da UNICAMP