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Alcino Leite Neto - 93 - Fevereiro de 2003
O mundo ultrajado
Romance de Elio Vittorini é uma viagem ao coração da Sicília
Foto da capa do livro Conversa na Sicilia
Conversa na Sicilia
Autor: Elio Vittorini
Tradução: Maria Helena Arrigucci
Editora: COSAC NAIFY - 288 páginas
Foto do(a) autor(a) Alcino Leite Neto

Se o governo Lula, com seu programa "Fome Zero", devesse escolher um livro recém-lançado para ilustrar essa campanha social, eu sugeriria "Conversa na Sicília", o assombroso romance de Elio Vittorini. "Não é, a fome, todo o sofrimento do mundo transformado em fome? Não é, o homem na fome, mais homem?" (pág. 153), escreve o autor siciliano num trecho cuja tradução reverbera versos do nordestino João Cabral de Melo Neto.
Aí está uma obra decididamente política, numa medida até indesejada nos dias que correm, pois Vittorini (1908-1966), que fora fascista na juventude, havia se convertido ao comunismo na época da redação do livro e tem em seu horizonte a luta de classes e a revolução social. Despojar o romance dessa substância é como servir bagaços de laranja.
Não vamos, portanto, perder isso de vista, por mais anacrônico que pareça. O engajamento político da literatura está no centro das questões suscitadas pela obra -um dos antecedentes mais célebres do neo-realismo italiano- e foi também objeto de uma polêmica entre Vittorini e o líder comunista Palmiro Togliatti, em 1947. Pode ser que o assunto volte a interessar nos próximos tempos.

Engajamento direto
Togliatti reclamou em carta aberta a Vittorini um engajamento direto do meio intelectual italiano na luta revolucionária. Vittorini respondeu que política e cultura eram terrenos diversos entre si e que a literatura deveria defender sua autonomia em relação ao Partido Comunista. Numa frase cristalina, ele definiu o que pensava ser um "escritor revolucionário": "É aquele que consegue definir na sua obra exigências revolucionárias diferentes das exigências políticas".
O propósito político de "Conversa na Sicília" não é, portanto, resultado de uma submissão da literatura a uma prática externa. É a produção pela literatura, diante das mesmas "exigências revolucionárias" colocadas pela adesão ao comunismo, de uma prática política toda sua, distinta, específica e autônoma.
"Outros deveres" é o mote pelo qual personagens do romance se referem às exigências revolucionárias colocadas a eles no plano narrativo. "Um homem digno é um Grande Lombardo e pensa em outros deveres, quando é homem. Por isso é mais homem. E por isso, talvez, a sua doença seja morte e ressurreição" (pág. 160). Nessas frases está sintetizada uma boa parte dos temas do livro.
As frases estão escritas num código difícil para quem não leu "Conversa na Sicília". E, para quem leu, elas parecem reproduzir sinais que só a muito custo acabamos por compreender. Tem um sentido, porém, essa escrita alusiva e fabular.
De certo modo, ela buscava "camuflar" uma mensagem densamente contestatória em plena dominação do fascismo na Itália, ludibriando a censura. Mais do que isso, ela tem a ambição de criar uma literatura em que o político se expresse na própria linguagem como uma produção ilimitada de contradições, em que se entrechocam o subjetivo e o objetivo, o concreto e o abstrato, a memória e o presente, a fala popular e a elaboração erudita. O escritor não é um porta-voz das classes populares, com sua linguagem superior. Também não é alguém cuja voz se confunda com as demais. É alguém que interpela uma realidade, e é por ela questionado.
O livro é todo ele uma viagem ao coração da Sicília e ao nervo da consciência política e revolucionária. Silvestro, o narrador, deixa a "alta Itália" (o Norte) e sua "calmaria na não-esperança", e volta à Sicília natal com o intuito de consolar a mãe, abandonada na velhice pelo marido. O pretexto familiar será ultrapassado, pouco a pouco, pelo contato com um mundo feito de fome, doença e sofrimento, que o fará descobrir a "miséria do gênero humano operário".

Sofrimento imemorial
A viagem é portanto iniciática, politicamente falando. As motivações subjetivas do narrador não desaparecem, mas se deixarão impregnar pela dimensão coletiva de um sofrimento imemorial. "Ele (Silvestro) sofre, e não por si mesmo (...). Não pelas ninharias do mundo (...). É pelo sofrimento universal que ele sofre (...). Pelo sofrimento do mundo ultrajado" (pág. 220), dirão do narrador dois personagens, em um diálogo que tem praticamente a forma de uma cantata ou de uma cantoria, como tantos outros no livro.
A pior maneira de compreender essa imagem do "mundo ultrajado" ("mondo offeso") é associá-la a um sentimento metafísico e geral de infelicidade. A formulação de Vittorini é outra, e é claríssima: o mundo está "ultrajado" devido à injustiça social da exploração do trabalho e, assim, aos limites que são colocados à liberdade humana.
Algumas das passagens mais notáveis desse livro dizem respeito a este conflito -entre a visão quase extática de um mundo extraordinariamente belo e potencialmente feliz e a constatação dos ultrajes concretos que restringem a liberdade de sua fruição. ""Mundo", o amolador gritou. "Terra, bosque e anões do bosque; belas mulheres, sol, lua, norte e manhã; cheiro de mel, amor, alegria e fadiga; e sono sem ultraje, mundo sem ultraje" (pág. 224)."
A viagem do narrador à Sicília é portanto "duas vezes real", pois se trata de uma "viagem à quarta dimensão" -a da utopia socialista. Seu percurso é mais do que realista: é super-realista, deixando acumular fantasmaticamente sobre o presente narrativo outras camadas do tempo-, o passado como recordação pessoal e como memória coletiva, fora o futuro como esperança de transformação. É por meio da fala dos personagens que o passado aflora e se atualiza, como se fosse no discurso que se escondessem os mortos ou os trânsfugas daquela realidade cruel. "Minha mãe falou e falou, um pouco do avô, ou do pai, ou de outros que fossem, do homem, em suma, e eu me pus a pensar que deveria ser uma espécie de Grande Lombardo" (pág. 98).
Os mortos estão todos aí, na fala-memória, aptos a reencarnar nos vivos, não porque o narrador confunda uns e outros na sua lembrança difusa, mas porque os vivos reiteram o sofrimento e as expectativas das gerações anteriores, e assim por diante, até os arquétipos -como o Grande Lombardo, o principal deles.

O singular e o geral
No sistema alegórico do livro, Vittorini maneja com maestria impressionante a passagem dos personagens aos arquétipos que constrói, levando-os do singular ao geral e vice-versa, não deixando nunca que as sínteses sociais que eles podem encarnar sufoquem seus traços particulares na narrativa. Mas este não é um livro psicológico -as conversações se dão em campo aberto ou nas "casinhas de madeira", com o Amolador ou Furador, não no salão do romance burguês.
Outro perigo na leitura do livro seria generalizar ao infinito esse "arquetipismo", buscando nele um substrato humanista. O autor não está calculando uma genealogia imaginária do sofrimento que, ao cabo, conduz à condição humana em geral. Ele está se referindo ao "gênero humano dos mortos de fome", que na sua concepção é, por isso mesmo, "mais gênero humano". "Talvez nem todo homem seja homem, nem todo gênero humano seja gênero humano. Esta é a dúvida que vem. (...) E então é mais homem um doente, um faminto; é mais gênero humano o gênero humano dos mortos de fome" (págs. 148/149), escreve, definindo outro campo de oposição e de luta.
As penúltimas páginas do livro encerram um desconsolo sem par. O narrador verifica a impotência dos seus personagens de se livrarem da dor de gerações de mortos acumulada no presente e poderem assim reencontrar a vida "nua" -ou seja, o frescor da força e da ação capazes de abrir um tempo não-espectral no presente, uma ruptura no sistema cíclico da memória e seus fantasmas. "Gerações e gerações tinham bebido, haviam derramado a sua dor no vinho, buscando no vinho a nudez, e uma geração bebia na outra, na nudez do esquálido vinho das gerações passadas, e de todo o sofrimento derramado" (pág. 229/230).

Palavras-mestras
O desespero acelera a projeção utópica do livro, que abre ao infinito sua potência narrativa, fazendo confluir todos os elementos fabulares e alegóricos para as mesmas "cenas" derradeiras. Os diálogos deixam de reiterar expressões e imagens-conceitos como ladainhas viciosas e as transformam numa espécie de palavras-mestras que vão abrindo, na forma, os conteúdos represados, como se a própria escrita manifestasse, antes da realidade, a promessa de um outro mundo.
"Conversa na Sicília" foi inicialmente publicado em cinco partes na revista "Letteratura", entre 1938 e 1939. A edição em livro ocorreu em 1941, com o título "Nome e Lágrimas", título de um conto acrescido ao volume para ludibriar a censura. Uma nova versão, com o nome que conhecemos, saiu em 1942, o que levou o autor a ser interrogado pela polícia fascista. No ano seguinte, Vittorini adere à Resistência.
Em 1953, o próprio autor coordenou uma reedição acompanhada de fotos da Sicília feitas por Luigi Crocenzi e Giacomo Pozzi Bellini que buscavam "ilustrar" o livro -o que é perfeitamente dispensável. É essa edição que a Cosac & Naify lançou no Brasil, com uma tradução de ótima fatura do escritor Valêncio Xavier e de Maria Helena Arrigucci.
Em 1998, o livro foi adaptado para o cinema pelo exigente casal Jean-Marie Straub e Danièle Huillet, com o nome exclamativo "Sicilia!". No Brasil, o filme recebeu o título "Gente da Sicília" e foi um inesperado sucesso de crítica e mesmo de público. É um pouco graças a esse sucesso que essa edição do livro de Vittorini finalmente veio à luz.
O filme é um desses casos raríssimos em que a adaptação cinematográfica não dilui a força da obra literária original -pelo contrário, chega mesmo a engrandecê-la, no seu esforço de devolver ao livro a sua dimensão política, depois de décadas de leituras humanistas ou estetizantes. Os Straub são os últimos grandes diretores resolutamente marxistas do cinema.


Alcino Leite Neto é correspondente da Folha na França.

Alcino Leite Neto é jornalista.
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