John Stuart Mill não é um filósofo muito estudado
entre nós. O desinteresse, ao que parece, advém da identificação emblemática, e
um tanto rasa, entre Mill e a assim chamada "tradição liberal” e, mais
especialmente, entre Mill e o famigerado “individualismo moderno”, fortemente
criticado e bombardeado por diversas artilharias – hegeliana, marxista,
republicana, comunitarista – a ponto de já não mais sabermos, a não ser pela
caricatura crítica de seus adversários, o que Mill ele próprio tem a dizer
sobre o indivíduo.
O presente livro faz reviver o cadáver – o indivíduo, ou, antes, o eu, o self, segundo Mill – animando-o em todas as suas facetas e de diversos ângulos. Preenche, assim, uma lacuna, tão mais urgente de ser preenchida quando se observa o crescente e renovado interesse pelo que Mill tem a dizer sobre a democracia representativa – a democracia dos modernos – da qual foi idealizador, ativista e um dos principais teóricos. Não é possível deixar Mill de lado na discussão em torno do conceito de democracia. Mas, se é assim, é preciso revisitar e mostrar os potenciais teóricos do conceito-chave com o qual ele costura o seu pensamento ético, jurídico e político – o self. É preciso deixar que a obra fale, retomando sua lógica interna, refazendo a trama dos conceitos, identificando suas fontes, seus interlocutores, explorando os seus impasses – dando, enfim, a palavra a Mill e salvando-o da caricatura, como faz Gustavo Hessmann Dalaqua.
O livro aborda o eu milliano a partir de três eixos – em suas dimensões ética, política e jurídica. Como o leitor se dará conta no decorrer da leitura, as dimensões estão mutuamente imbricadas e se esclarecem reciprocamente. Por exemplo, se notamos que o eu, na sua dimensão ética, não tem conteúdo definido, mas é pensado por Mill nos termos de um movimento de criação, diferenciação e desvio em relação às normas estabelecidas, podemos compreender que, em sua dimensão jurídica, como instância a ser protegida pela lei, o eu – o que precisamente precisa ser juridicamente protegido – é algo que está por ser definido, não apenas pelo movimento de reflexão e autocompreensão a partir do qual se faz e se diferencia em sua dimensão ética, mas também pelo debate público e o embate de opiniões e perspectivas em que se forma em sua dimensão política. Nos três eixos de análise, o que vemos surgir diante dos olhos é um eu dinâmico e aberto, perpassado pelo outro e pela história; um eu plástico, ativo e profundamente relacional.
O eu não é uma mônada: esta é a conclusão a que se chega, o refrão que acompanha a análise de cada uma das suas dimensões, com o que se nota a preocupação em responder às críticas – comunitaristas e republicanas, sobretudo – ao caráter supostamente insular, passivo e privado do indivíduo moderno, mostrando que a caricatura não se aplica a Mill. É porque é plástico que o eu é uma realidade a um só tempo ética, política e jurídica. E, porque se faz no cruzamento dessas dimensões, é relacional e aberto. A contribuição importante de Mill para pensar a ética, a política e o direito está precisamente nessa concepção alargada e multifacetada do eu.
Ao explorá-la, Gustavo Hessmann Dalaqua estabelece conexões inesperadas – como a aproximação entre Mill e o Foucault dos anos 80, ou entre Mill e certas concepções agonísticas da política, além de retirar conclusões importantes para o debate em torno das liberdades positivas e negativas, do republicanismo e do liberalismo, como também sobre a justiça. O Mill que desponta dessas análises é um Mill renovado e contemporâneo, cheio de boas contribuições para nossa pauta atual de discussões, dentre as quais, em especial, como já se observou, a discussão em torno da democracia, que desponta no horizonte de todo o percurso. O mais interessante é que a contemporaneidade de Mill se desenha sem que por isso se descuide do Mill histórico, o escritor do século XIX, influenciado pelo romantismo, por Bentham e os clássicos, perpassado pelas questões e os impasses típicos do seu tempo.
O prefácio, a introdução e a conclusão do livro podem ser baixados gratuitamente em:
https://usp-br.academia.edu/GHDalaqua
MARIA ISABEL LIMONGI é professora de ética e filosofia política no Departamento de Filosofia da UFPR.