Sem tempo algum para ler tantos autores contemporâneos, por que a academia sempre força a presença do cânone e sua imensa fortuna crítica – criei uma estratégia de leitura nos transportes coletivos, nas caronas, nos ônibus, nos metrôs ( quando surgiam ), no avião, na praia ( quando surgia ). De forma que a leitura, sempre interrompida, misturada a outras vozes, fez com que o livro Grito de Godofredo de Oliveira Neto, me lembrasse Rayuela, de Cortázar. Essa leitura entrecortada sempre me fazia retomar os pequenos capítulos já lidos, frases já vistas, imagens já desenhadas, ainda na outra desordem: lia capítulos à frente de onde tinha parado. Embaralhando as narrativas, reinventando as leituras, remontando a história.
Aconteceu também, pela narrativa transversal, de ampliar o texto, com pequenos diálogos nos transportes, como se a história contada pela velha atriz se estendesse para além do livro, e estivesse sendo encenada nesses palcos urbanos móveis. Essas falas iam encorpando o texto da atriz mefistofélica e de seu imaginário Fausto. E tantas cenas se ampliavam nos monólogos dialogados dos celulares, detalhes do cotidiano, pequenas intrigas, compromissos atrasados, desmanches de amores recentes, desmarcações de consultas, tensões, pequenas alegrias. A adolescente repetia o “tipo isso - tipo aquilo”, menosprezando o súbito quase desuso da gíria repetitiva, marcação de nenhuma referência, pois não era tipo nada a balada vivida. A velha atriz ia tecendo para além da mão do autor, porque mefista, pirandellianamente ia sendo personagem autônoma, como na cena da autonomia das seis personagens, no livro.
Ela se manifestava na atividade cênica da linguagem, na hipercorreção dos que acham que dominam mais o idioma, nos interesses dominadores dos que sobrepujam a sorte, e nem percebem o acaso os espreitando, ela aparecia nas minúsculas vitórias de se conseguir um assento, um riso de vitória, no olhar de desejo geral que se lançava para o coletivo lotado, ela superava o tempo, se negando a envelhecer, nas lembranças criadas pela superfície dos que resistem, pois tinham seu Fausto, o mastro negro que estendia a outras histórias dentro da própria narrativa, como em um jornal rodriguiano que transforma em erótico o feio. Ela se recusava a aderir à lógica do tempo, a se localizar em espaços da página e transbordava para as pequenas narrativas de um povo enganado por uma felicidade débil, mas intensa.
A velha atriz brincava com a ficção como se ela tivesse o poder de invadir qualquer ato, do mais banal ao mais trágico, incendiando o tédio de uma octogenária de Copacabana que escapou do Retiro dos Artistas. Ela se libertava do autor, porque invertia a intenção da criação e seus desejos lineares, a expectativa da leitura, mesmo quando se postavam em fragmentos. Há um momento no romance em que a atriz fala diretamente com o leitor, é o momento permanente da sua costura em criar um Fausto que grita pela liberdade de uma morte, não de um nascimento. De uma morte do corriqueiro, do banal, do ar poluído que invade seu pequeno anfiteatro, de onde desenha fins camuflados, e de onde tece, em delírio, suas cenas.
A velha atriz, que já foi consagrada, consagra agora sua intimidade de autoria, convidando presenças que a surpreendam, mesmo que as elimine com tiros certeiros - seu desejo por Fausto é o velho desejo humano de comandar um destino para além das marcações de um palco costumeiro, de recriar um desejo banalizado por comandos estéticos, por funcionalidades que tentar sufocar o imprevisto. A velha atriz do escritor Godofredo é a memória desprezada de nossas paixões enrustidas, a atmosfera humana desconhecida e teatralizada para ninguém, a cena feita na presença da escuridão.
Alan Flávio Viola é doutor em Letras pela UFRJ e professor de Teoria Literária pela UGB – Volta Redonda – RJ