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Renato da Silveira - 73 - Abril de 2001
Mito e ritualização
Foto do(a) autor(a) Renato da Silveira

Mito e ritualização

RENATO DA SILVEIRA

Inevitável começar com um clichê: "Mitologia dos Orixás" nasceu clássico, é um desses livros que já saem da gráfica indispensáveis a qualquer boa biblioteca.
Salientemos inicialmente a condução irrepreensível da pesquisa que precedeu sua redação. Reginaldo Prandi consultou praticamente toda a bibliografia sobre o tema, livros, artigos e teses, obras escritas por antropólogos, pais e mães-de-santo, pesquisadores institucionais ou avulsos, abordando não só a mitologia afro-brasileira como também a africana e a produzida pela diáspora negra nas Américas.
Além disso, durante mais de uma década de pesquisa de campo, também teve acesso a importantes fontes orais, inclusive a velhos cadernos de notas guardados por personalidades do mundo do candomblé. Organizou em seguida uma equipe de trabalho encarregada de sistematizar todos os dados disponíveis, além de recolher outros tantos em consultas aos especialistas e em pesquisas de campo nos terreiros de origem iorubana.
Por desencargo de consciência, uma rede de informantes e cúmplices intelectuais, antropólogos e historiadores residentes em vários países da Europa, África e América, foi agilizada para complementar checagens e prevenir lacunas. Portanto, uma pesquisa conduzida com precisão sinfônica.
Um outro ponto a ser salientado é a criteriosa seleção das histórias. Sabe-se que os mitos só ganham seu sentido pleno quando integrados a um contexto ritual. Eles não só explicam gestos e insinuam sentidos, como reconduzem preceitos, avalizam imagens, dividem tarefas, justificam preeminências e hierarquias.
Ora, acontece que a religião afro-brasileira está em franca expansão, já existem candomblés não só em todas as grandes cidades brasileiras, como em Buenos Aires, Nova York e Zurique. A transmissão oral, passada lenta e cuidadosamente de geração em geração, nesse novo contexto vem sofrendo pressões, com a utilização das mais diversificadas línguas, a multiplicação das fontes escritas (inclusive na internet) e o surgimento de uma nova geração, mais escolarizada, de ialorixás e babalorixás: as facilidades da nova comunicação globalizada também trazem consigo vastas possibilidades de distorção.
Além do mais, o pensamento mítico, enquanto forma de conhecimento, é muito mais dinâmico do que se pode imaginar. Por exemplo, os "kuna" do Panamá, desde a construção do canal, passaram a incluir gigantescos navios a vapor nas suas narrativas míticas; e Ogum, o orixá da forja arcaica e do ferro no país iorubá e adjacências, tornou-se o patrono das motocicletas, das locomotivas e da tecnologia de ponta... Assim, nesse novo contexto global, mitos são permanentemente criados e recriados, tornando sensível o problema dos critérios de seleção.
Por prudência, Prandi levou em consideração apenas as histórias já integradas à práxis ritual dos candomblés e efetivamente constitutivas do seu repertório. Para evitar uma demarcação arbitrária, em caso de inovação recente a solução adotada foi aceitá-la apenas quando já assimilada por um número significativo de terreiros. Temos portanto, em "Mitologia dos Orixás", uma seleção de procedência segura, reunida sem facilidades, segundo critérios metodológicos claramente explicitados pelo autor.
Seguindo esses critérios, Prandi conseguiu selecionar 301 narrativas, a maior coleção existente no gênero. Com efeito, comparados à sua obra, os trabalhos anteriores, que tiveram seguramente o seu valor, ficaram parecendo compilações ocasionais. O próprio Prandi cita vários deles, destacando os livros publicados pelo babalaô Agenor Miranda Rocha, que apresentou desde 1928 um pouco mais de três dezenas de mitos; a obra publicada pelo sacerdote/artista Mestre Didi, que elencou 22 mitos em 1974; o livro do babalorixá/antropólogo Júlio Santana Braga, que publicou 44 mitos em 1980 (embora Prandi lhe atribua "pouco mais de 20"), sem falar do insubstituível Pierre Verger, que publicou 66 mitos em uma centena de versões espalhadas desde 1954 em diversas obras.
Seria entretanto interessante salientar a iniciativa pioneira da editora baiana Corrupio, ao publicar (1981) dois livros de autoria de Verger, "Lendas dos Orixás" e "Oxóssi, o Caçador", os quais, embora tivessem reunido apenas dez narrativas, assumiram um caráter especial, desde que destinados ao público infantil, produzidos em grande formato, com capa dura e esplêndidas ilustrações a cores de Enéas Guerra.
Também no que diz respeito à produção, "Mitologia dos Orixás" é um trabalho esmerado. O projeto gráfico de Raul Loureiro é enxuto, competente. Na capa semidura, ele optou por um estilo "clean", com título discreto em preto sobre fundo amarelo, contrastando radicalmente com as folhas de guarda preto-foscas, resultando uma elegância sóbria, mas motivadora.
O material iconográfico é diversificado, contanto com 32 pranchas fotográficas em cores, num caderno especial em papel "couché", flagrantes de iniciados em transe e situações rituais. As ilustrações e vinhetas de Pedro Rafael são um capítulo à parte. As vinhetas, estilização de emblemas ou apetrechos rituais, são surpresas gráficas que balizam a leitura, tornando o folhear das páginas algo imprevisível, sutilmente estimulante. Nas 32 ilustrações em preto-e-branco, o artista optou por um grafismo delicado, sugerindo técnica mista com toques de lápis macio e pinceladas de aquarela, associados a texturas discretamente inseridas no contexto. O resultado é um conjunto precioso de tons de cinza, perfeitamente integrados à brandura do papel pólen "soft", atribuindo suavidade e dignidade às figuras do panteão afro-brasileiro.
Em resumo, temos com "Mitologia dos Orixás" o resultado de um belo trabalho de equipe, em que o autor e seus auxiliares, o editor, o designer e o ilustrador concorreram todos para a realização de um projeto que exalta nossas raízes culturais e atesta nossa capacidade de realização.


Renato da Silveira é designer gráfico, doutor em antropologia pela École Pratique de Hautes Études en Sciences Sociales (Paris) e professor na Universidade Federal da Bahia.



Mitologia dos Orixás
Reginaldo Prandi
Companhia das Letras (Tel. 0/xx/11/3846-0801)
624 págs., R$ 43,50

Renato da Silveira é professor da Universidade Federal da Bahia
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