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Mamede Jarouche - 94 - Março de 2003
Islã e Palestina
Foto do(a) autor(a) Mamede Jarouche

Cultura e Política
Edward W. Said
Organização: Emir Sader
Tradução: Luiz Bernardo Pericás
Boitempo (Tel. 0/xx/11/3875-7250)
170 págs., R$ 29,00.

Coletânea de ensaios engajados, "Cultura e Política" tem efeito devastador, e por mais de um motivo: pacifista convicto, Edward Said não nutre, contudo, nenhuma ilusão. Trata-se de um utopista desiludido, se o termo cabe. Sua análise das políticas americanas e israelenses em relação aos árabes em nenhum momento dá vazão a tergiversações ou complacência para com o discurso dos vencedores. Mas também a análise da ação dos governos árabes é impiedosa, ressaltando um caminhar trôpego entre a incompetência e a venalidade. E talvez seja isso o que mais Said deplora: não se pode esperar nada, diretamente, nem da Casa Branca nem dos líderes árabes e israelenses. Tampouco certas parcelas da intelectualidade, mesmo européia, são poupadas: leia-se, por exemplo, o desanimador depoimento sobre Sartre e Foucault. A via que ele defende é da negociação, mas entre membros da sociedade civil, e da conquista de corações e mentes por meio da humanização da causa palestina, que, ao longo de tantos anos, tem sido sistematicamente deformada.

Confronto de Fundamentalismos
Cruzadas, Jihads e Modernidade

Tariq Ali
Tradução: Alves Calado
Record (Tel. 0/xx/21/2585-2000)
480 págs., R$ 38,00

Para árabes e muçulmanos, e decerto não só para eles, uma das consequências mais funestas do 11 de setembro foi a retomada, com foros de "legitimidade", de velhos e novos estereótipos, proferidos ora com a perfídia de uma hiena de fábula, ora com a inocência de um carneirinho de charrete. É contra essa corrente que o livro do escritor paquistanês Tariq Ali dá largas braçadas. "Confronto de Fundamentalismos" goza de um curioso estatuto: embora não se trate de um trabalho "orientalista" "stricto sensu" -nada repugnaria mais ao autor do que o modelo tradicional de orientalista desenhado por Said-, retoma uma de suas características mais notáveis: experiência pessoal e memorialismo. Tariq Ali fala da história tal e qual a vivenciou; e, mesmo quando se refere ao islã em seu período "clássico", também a subjetividade permeia sua visada, erodindo e deslocando hierarquias sedimentadas. Logo, o que se tem é um "oriental" que escreve, sim, para um público "ocidental", não mais, porém, para justificar políticas expansionistas, e sim para traçar-lhe a especificidade histórica.

A Guerra da Palestina
André Gattaz
Usina do Livro
(Tel. 0/xx/11/ 3057-1207)
240 págs., R$ 23,00

O livro de André Gattaz não tem paralelo: trata-se do único trabalho de fôlego a trazer uma análise isenta do conflito palestino feita por um historiador daqui. Em vez de perder-se em jeremiadas senis ou atirar aos cardos as causas do conflito atribuindo-lhe "imemorialidade", Gattaz se debruça sobre os eventos anteriores à fundação oficial de Israel, em 1948. Com isso, evidencia, primeiro, as contradições do projeto sionista, que não era aceito por grande parte das lideranças judaicas européias e, segundo, como o processo de colonização foi em larga medida estimulado pelo jogo de interesses de França e Inglaterra, que dividiam entre si o espólio do império otomano em desagregação. Demonstra, com base em farta documentação, o uso da propaganda, do terror e da violência contra os habitantes locais. Desmonta a falácia de um Estado permanentemente ameaçado por vizinhos "poderosos" que, no ato mesmo de sua fundação, o teriam traiçoeiramente "atacado". Historia, enfim, o conflito com boa dose de objetividade, até chegar à deprimente realidade contemporânea.

Utopias Piratas
Mouros, Hereges e Renegados

Peter Lamborn Wilson
Tradução: Leila de Souza Mendes
Conrad (Tel. 0/xx/11/3346-6077)
190 págs., R$ 25,00

Um livro surpreendente: o autor, militante anarquista, estuda a formação das "repúblicas piratas" que, a partir do século 17, se instalaram na costa noroeste da África, tentando circunscrever-lhes a especificidade histórica a partir da documentação elaborada por seus inimigos. A reconstituição é minuciosa e um dos focos do livro aborda a grande quantidade de europeus que, levados por motivos hoje obscuros, se agregaram a essas repúblicas, adotando a religião muçulmana. O que os atraía? A hipótese de Wilson é bastante ousada: de um lado, movia os "renegados" a repulsa ao cristianismo e a atração por "saberes esotéricos"; de outro, a "inesperada" democracia dessas repúblicas, com sua estrutura "mais horizontal e igualitária". Na narrativa das façanhas piratas, se entrevê um mundo insuspeito, incluindo até mesmo uma ousada incursão na costa de Baltimore. Ainda que os resultados sejam muitas vezes discutíveis, dada a exiguidade das fontes, trata-se de leitura fascinante.


MAMEDE JAROUCHE é tradutor e professor de árabe na USP.

Mamede Jarouche
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