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Marilena Chaui - 115 - Dezembro de 0012
Infortúnio - o poder separado I
O risco permanente do mau encontro no Discurso sobre a servidão voluntária de La Boétie
Foto da capa do livro Discurso sobre a servidão voluntária
Discurso sobre a servidão voluntária
Autor: Étienne de la Boétie
Tradução: Evelyn Tesche
Editora: Edipro - 80 páginas
Foto do(a) autor(a) Marilena Chaui

Teeteto cavou a terra para a plantar. Encontrou um tesouro. Sócrates foi ao mercado comprar legumes. Encontrou Cálias, que lhe pagou uma dívida. O navio se dirigia a Egina. Encontrou uma tempestade e derivou rumo a Atenas. Esses exemplos são clássicos na história da filosofia: são os que Aristóteles oferece quando examina as ideias de contingência e acaso. Contingência e acaso, explica o filósofo, não são acontecimentos sem causa. São acontecimentos produzidos pelo encontro de duas séries causais independentes. Assim, o primeiro nome da contingência e do acaso é encontro e encontro inesperado. Ou, como explica Aristóteles, a causa do acontecimento é acidental, pois produz um efeito que não estava previsto na causalidade de cada uma das séries, de tal maneira que um certo fim é realizado sem que estivesse previsto pelos agentes ou sem que estivesse presente nos meios, pois estes não visavam tal fim e sim um outro: Teeteto foi plantar e não buscar um tesouro; Sócrates foi comprar legumes e não receber uma dívida; o navio se dirigia para Egina e não para Atenas. Por que encontro? Porque o acontecimento não é incausado e sim o cruzamento de duas séries causais independentes. Por que inesperado? Porque a marca da contingência e do acaso é a indeterminação, pois tanto as causas que o produziram poderiam não ter acontecido (se Teeteto estivesse com febre, talvez não fosse plantar; se Sócrates tivesse encontrado um amigo, talvez não tivesse ido ao mercado; se a carga não estivesse embarcada, talvez o navio não saísse do porto), como também nada assegura que o fim vai ser realizado, uma vez que a finalidade da ação decidida pelo agente nada tem a ver com o fim realizado (em vez de favas, Teeteto colheu um tesouro; em vez de legumes, Sócrates obteve o pagamento da dívida, em vez de chegar a Egina, o navio deu em Atenas). Por se tratar de um encontro inesperado, a contingência é o que faz acontecer algo novo no mundo, isto é, algo que a causalidade natural não faria acontecer regular e previsivelmente.

Ao contrário do acaso e da contingência, o necessário é o que acontece sempre e não pode deixar de acontecer como acontece; assim como o impossível é o que não acontece nunca e não pode jamais acontecer - é necessário que a água umedeça, o fogo aqueça, o óleo alimente a chama, a pedra caia; é impossível que esses efeitos não se produzam e que a água queime, o fogo umedeça, que o verão não ocorra entre a primavera e o outono. Quando um acontecimento natural é contrário à lei da causalidade necessária, diz-se que foi produzido por uma ação ou uma causa contrária à natureza da coisa e essa causa contrária ou contra-natureza chama-se violência. É por uma ação violenta que uma pedra irá para o alto, pois é de sua natureza, vir para baixo. Necessário e impossível se referem, portanto, à ação regular e normal das causas naturais, enquanto a violência se refere à intervenção de uma causa não natural numa causalidade natural. Essa causa violência é a técnica, isto é, a ação humana que interfere no curso natural das coisas.
À distância do acaso e da contingência e situado entre o necessário e o impossível, está o possível, isto é, aquilo que, como o contingente e o acaso, pode ou não acontecer, mas que, diferentemente da contingência e do acaso, resultantes do mero encontro, o possível é aquilo que acontece se houver um agente com o poder para fazê-lo acontecer. Assim, o possível é o que está em poder de um agente fazer ou não acontecer. Esse agente pode ser a técnica que usa as causas naturais de maneira a alterar seus resultados. Mas esse agente pode ser também a vontade livre com o poder para escolher entre alternativas contrárias e para deliberar sobre o sentido, o curso e a finalidade de uma ação. Embora o possível seja, como o contingente, aquilo que pode ou não acontecer, no contingente o acontecimento se dá independentemente da deliberação do agente e da finalidade que o agente dera à sua ação, enquanto no possível o acontecimento resulta da escolha deliberada feita pelo agente, que avalia meios e fins de sua ação. Eis por que, desde Aristóteles, aprendemos a distinguir entre o contingente e o possível dizendo que o primeiro não está em nosso poder e que o segundo é exatamente o que está em nosso poder. Enfim, embora a técnica e a ação livre da vontade façam ambas parte do possível, a diferença entre elas está em que o efeito da ação técnica é um objeto diferente do próprio agente, algo que existe separadamente dele como produto, enquanto na ação livre o efeito é a própria ação, é o próprio agente agindo, de sorte que não se pode separar o agente, a ação e o efeito da ação. Somente neste segundo caso pode-se falar em ética e política, isto é, em ações que não se distinguem e não se separam do próprio agente.
Assim, se herdamos de Aristóteles a ideia do acaso como encontro, dele também herdamos a ideia da liberdade da vontade como a ação que está em nosso poder. Por isso Aristóteles afirma que não deliberamos sobre aquilo que não temos o poder de fazer acontecer, isto é, não deliberamos sobre o necessário, o impossível e o contingente, mas somente sobre o possível. A tradição filosófica nos deixa, portanto, como herança a distinção entre o que não está em nosso poder (o acaso, o necessário e o impossível) e o que está em nosso poder (o possível). Ora, só há possível quando há deliberação e escolha e por isso só se pode falar propriamente no possível para as ações humanas. Ora, no caso de nossas ações, o necessário e o impossível não se referem apenas ao que escapa de nosso poder porque são o que sempre tem que acontecer ou o que nunca pode acontecer - isto é, o necessário é a sequência imutável de séries causais e de séries de efeitos, e o impossível é a ausência de tais séries de causas e efeitos a -, mas se referem ainda ao tempo. O passado enquanto passado é necessário e por isso não está em nosso poder, e o futuro enquanto futuro é contingente, isto é, pode ou não acontecer desta ou daquela maneira. À necessidade do passado se contrapõe a possibilidade do presente, em decorrência da indeterminação do futuro.
O possível está articulado ao tempo presente como escolha que determinará o sentido do futuro que, em si mesmo, é contingente, isto é, poderá ser desta ou daquela maneira, dependendo de nossa deliberação, escolha e ação. Isso significa, no entanto, que feita a escolha entre duas alternativas contrárias e realizada a ação, aquilo que era um futuro contingente se transforma num passado necessário, de tal maneira que nossa ação determina o curso do tempo. É essa passagem do contingente ao necessário por meio do possível que dá à ação humana um peso incalculável, pois um possível livremente realizado se torna um necessário instituído. O agente ético e político encontra-se, portanto, encravado entre dois poderes exteriores que o determinam de maneira exatamente oposta: a necessidade o obriga a seguir leis (naturais) e regras (históricas) sobre as quais nada pode; a contingência o força em direções contrárias imprevisíveis. Mais do que isso, no caso da ética e da política e, portanto, da história, a necessidade foi produzida pela própria ação livre do agente que transformou um contingente num possível e ao realizar esse possível o transformou em necessário. Eis por que, ao descrever o agente ético e político virtuoso, isto é, livre e responsável, Aristóteles afirmará que a virtude perfeita é a prudência e o homem perfeitamente virtuoso é o prudente, isto é, aquele que olha para frente e para trás, examina o passado e o futuro, pesa as consequências da ação porque estas se tornarão necessárias e terão efeitos sobre ele e sobre os outros. O prudente é aquele que enfrenta o problema maior posto pela ação livre, isto é, a indeterminação do tempo presente, a necessidade do tempo passado e a contingência do tempo futuro.
É essa relação essencial com o tempo que leva Aristóteles, finalmente, a distinguir o acaso na natureza e o acaso nas ações humanas. Na natureza, o acaso é apenas o encontro acidental de séries causais independentes que produzem um fim não previsto e um acontecimento imprevisto. Nas ações humanas, porém, o acaso recebe o nome de fortuna ou a sorte, que, explica Aristóteles "é uma causa por acidente daquele que escolhe normalmente segundo uma escolha refletida em vista de um fim" e como as causas vindas da fortuna são indeterminadas "a fortuna é impenetrável ao cálculo do homem". O possível é o campo onde se exerce nossa vontade e nossa liberdade. A fortuna é o espaço-tempo do imprevisível no qual as coisas nos acontecem sem que possamos ter outra atitude senão a da recepção do acontecimento que cai sobre nós. A ética e a política pertencem, assim, ao campo do possível, a natureza, ao do necessário, e a história, porque campo de inumeráveis causalidades simultâneas, tende sempre a ser vista como o campo da fortuna, isto é, da contingência, pois esta traz a marca de tudo quanto há de incontrolável e de imponderável no tempo.
A tradição consagrou uma imagem da Fortuna que se cristalizou numa iconografia muito precisa: ela é representada por uma jovem belíssima, de olhos vendados, que traz numa das mãos o globo e na outra uma cornucópia; traz na cintura um cinto com os signos do zodíaco; vem com um manto agitado pelo vento; tem asas nos pés e pisa sobre a roda que faz girar com os pés. Essa imagem nos oferece a volúvel e inconstante Fortuna, senhora do mundo (o globo), senhora de nossa sina (o zodíaco), dispensadora de bens (a cornucópia), agitada como a tempestade (o manto enfunado), inconstante (as asas nos pés), cega ou indiferente aos pedidos dos homens (a venda nos olhos) e justa (a roda que eleva o vencido e rebaixa o vencedor).
Todavia, há nessa imagem um aspecto de grande relevância porque é nele que virá se inscrever a possibilidade de uma ação ética e política capaz de vencer a própria Fortuna: as asas nos pés. Embora essas asas sirvam para assinalar que a Fortuna é passageira, inconstante, caprichosa, volúvel e efêmera, essas mesmas asas indicam que ela age porque tem em seu favor o tempo que corre celeremente. Ora, esse tempo que corre velozmente não é o tempo da natureza, que é repetitivo e regular; nem é o tempo do destino ou da providência divina, que é um tempo lento e longo de realização de um plano divino. O tempo célere e efêmero, de que se vale a Fortuna, é o kairós: o instante oportuno ou a ocasião oportuna, isto é, aquele instante fugidio que devemos saber agarrar, se quisermos agir e se quisermos a vencer a Fortuna em seu próprio terreno. O kairós é o tempo da ação adequada, o instante da iniciativa, quando um agente virtuoso toma sua vida em suas mãos contra o assédio, a sedução e as ilusões da Fortuna.
Sob essa perspectiva, a Renascença definirá a virtude por sua oposição à fortuna, pensando num enfrentamento entre duas forças temporais: toma a fortuna como a força da indeterminação das situações e dos acontecimentos, no ponto de partida e de chegada, e a ela contrapõe a virtude como o poder para determinar o indeterminado, para deliberar e escolher os possíveis. A fortuna deixa de ser a exterioridade bruta que se abate sobre os homens para tornar-se a indeterminação e a adversidade que exigem a ação forte do virtuoso. É dessa maneira que se dá a retomada da relação virtude-fortuna por Maquiavel, Montaigne e Bacon, em conformidade com o adágio "o homem é arquiteto de sua própria fortuna".
Resta ainda um último traço para completar nosso quadro. Vimos até aqui que a prudência foi prezada como a virtude capaz de não sucumbir à fortuna, porque o prudente á aquele que tem os olhos voltados para o passado e para o futuro para escolher o possível no presente. No entanto, ao lado da valorização da prudência, uma outra virtude também foi colocada em oposição ao poderio da fortuna: a amizade. Diante da fortuna como encontro que pode ser ora bom ora mau, que pode ser boa fortuna ou infortúnio, a filosofia tematizou a amizade como o bom encontro, isto é, aquela relação entre seres livres e iguais cujas ações sejam fonte de liberdade para outros.
Por que a fortuna é poderosa? Porque pode tornar-se senhora dos acontecimentos, apoderando-se do tempo como kairós. A fortuna não tem poder sobre o tempo da Natureza nem sobre o tempo do destino ou da providência, mas tem poder sobre o tempo de nossa ação. Mas, que significa um tempo que é apenas um instante fugaz, efêmero, no qual tudo pode ser tramado contra nós ou em nosso favor? Essa relação com o tempo como indeterminação é a marca de nossa finitude. Não somos finitos apenas porque somos mortais, somos finitos porque sabemos que somos mortais; não somos finitos apenas porque nosso poder é muito menor do que as forças exteriores que nos rodeiam e sim porque sabemos que somos menores do que elas. À nossa finitude, a filosofia sempre contrapôs a imagem do deus eterno e perfeitamente feliz, autossuficiente, autárquico, autônomo, plenamente livre. Como os homens poderiam ter uma vida que se assemelhasse à eternidade, à liberdade, à autonomia e à felicidade divinas? Duas são as maneiras humanas de viver, julga Aristóteles, nas quais o homem se assemelha do divino: a vida política, na qual a comunidade age em conjunto para a vida boa e feliz do todo e por isso a politeia perfeita é a polis autônoma e livre, que assegura o máximo de sobrevivência, segurança, justiça e liberdade a cada um de seus membros. A comunidade política é, assim, o bom encontro de homens livres e uma das maneiras de imitar a autossuficiência e a autonomia do divino. Entretanto, por melhor que seja a comunidade política, ela se encontra sempre sujeita à ação de comunidades estrangeiras inimigas e sobretudo sujeita à ação de inimigos internos - a guerra externa e a guerra civil indicam que a fortuna também mantém seu reinado no interior da pólis. Há, no entanto, uma forma superior de bom encontro, de vitória contra a fortuna e de imitação da divindade, a amizade, relação entre os livres e iguais tecida no bem-querer e bem-fazer em que os amigos suprem reciprocamente as limitações uns dos outros e formam uma companhia livre que imita a autossuficiência do divino e diminui os efeitos dramáticos da finitude. Diferentemente da comunidade política, a amizade não sucumbe ao poderio da fortuna, mas, ao contrário, somente ela tem a força para impedir que a diferença de posses, fama, glória e honras divida os amigos, pois o que é de cada um é de todos e são todos que agem para que cada um seja o que é e tenha o que tem. Se, pela política, nós nos humanizamos, pela amizade nós nos divinizamos. Eis por que, no Discurso da Servidão Voluntária, Etienne de La Boétie afirma que a amizade é coisa santa.

Marilena Chaui é professora de filosofia da Universidade de São Paulo.
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