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Paulo Cezar Saraceni - 94 - Março de 2003
Glauber profeta
Um painel crítico do cinema nacional
Foto da capa do livro Revisão crítica do cinema brasileiro
Revisão crítica do cinema brasileiro
Autor: Glauber Rocha
Tradução: Prefácio de Ismail Xavier
Editora: COSAC NAIFY - 240 páginas
Foto do(a) autor(a) Paulo Cezar Saraceni

Paulo Emílio Salles Gomes disse, depois da morte de Glauber Rocha, que o profeta não tem que acertar as profecias o tempo todo. Glauber era um profeta, Paulo Emílio sabia. Mas na "Revisão Crítica" Glauber acerta o tempo todo. É genial demais, a coragem com a qual ele-que preparava a sua primeira obra-prima, "Deus e o Diabo na Terra do Sol"- investiga com um rigor crítico insuperável o painel do cinema brasileiro que iniciava a grande revolução do cinema novo. Primeiramente examinando os três cineastas de gênio que nos antecederam: Humberto Mauro, Mario Peixoto e Alberto Cavalcanti.
A trajetória de Humberto Mauro, de "Cataguazes" ao INC (Instituto Nacional de Cinema), merece a preferência de Glauber. E com toda razão -que alegria imensa termos um pioneiro maior, que nos ensinou tanto, e que felicidade vermos uma parceria tão grande, como os soviéticos tiveram com Eisenstein e Prokofiev, e, nós, com Humberto Mauro e Heitor Villa-Lobos- Glauber percebe com maestria essa genialidade do grande artista autor de "Ganga Bruta".
De Mario Peixoto, outro gênio, mas com um filme só, "Limite", Glauber fica com certa antipatia natural por não ter visto o filme ainda naquela época.
Falou apenas do mito de "Limite" e dos ciúmes de Saulo Pereira de Melo, que não deixava a gente ver nenhum fotograma do filme, mas mesmo assim Glauber sacava que não era possível o grande romancista e crítico Octavio de Faria, que havia feito com Plinio Sussekind o primeiro cineclube do Brasil, e com ele trazido o cinema soviético de Eisenstein, Pudovkin, Dziga Vertov e Dovjenko, elogiar, e como, "Limite".
Mais tarde, nós vimos a cópia restaurada do filme de Mario Peixoto. Era cinema pelo cinema, sim, mas que cinema! O outro gênio era Alberto Cavalcanti, que encantava tanto a França como a Inglaterra fazendo grandes obras-primas. Glauber fala mais da decepção que Cavalcanti teve ao retornar ao Brasil.
A análise crítica que Glauber faz da chanchada e da Vera Cruz e de outras tentativas frustradas e frustrantes que a indústria cinematográfica paulista fez é definitiva. Glauber não perdoa nem os filhotes dessa indústria, como Lima Barreto com "O Cangaceiro" e Anselmo Duarte com "O Pagador de Promessas".
Nesta apresentação de "Revisão Crítica", de Glauber Rocha, feita pelo crítico e estudioso de cinema Ismail Xavier, percebemos como demorou para essa segunda edição sair. A falta dessa crítica de Glauber deixou por muito tempo o pessoal da crítica numa ignorância total. Ismail Xavier é muito inteligente, mas vendo o meu lado, autor do livro "Por Dentro do Cinema Novo", vemos a tentativa que Ismail Xavier faz de entender de fora para dentro aquele momento do cinema novo. Fica muito difícil, o jovem crítico chega até a ignorar a belíssima crítica que Glauber faz dos meus filmes "Arraial do Cabo" e "Porto das Caixas".
Sem entender a importância de "Porto das Caixas", não pode citar os geniais filmes que vieram depois, como "Vidas Secas", de Nelson Pereira dos Santos, "Deus e o Diabo na Terra do Sol", do próprio Glauber, e "Os Fuzis", de Rui Guerra. Fica no ar. Não fala da fonte.
Mas Glauber examina com muita sabedoria os filmes pré-cinema novo. Os filmes neo-realistas de Alex Viani, Nelson Pereira dos Santos, Roberto Santos e Trigueirinho Neto. Falo dos mais importantes. Com uma preferência maior para o papa do cinema novo, Nelson Pereira dos Santos, que depois da montagem que fez de "Barravento", de Glauber Rocha, e da visão de "Porto das Caixas", mudou inteiramente seus filmes, e com "Vidas Secas" inicia uma trajetória que o vai colocar entre os maiores cineastas da história do cinema. Glauber anuncia com uma precisão magnífica o que será o cinema novo e o cinema do futuro.
À sua profecia vem se juntar a de Gustavo Dalh, realizada no festival de Santha Marguerita Ligure, na Itália, quando falou para os críticos do mundo inteiro, que apenas tinham visto "Arraial do Cabo", o que seria o cinema novo.
Com dois profetas assim, bastava fazer os filmes, o destino estava escrito. Com que inteligência e maestria Glauber faz a divisão entre os diretores do cinema novo que visam a fazer filmes comerciais e os que querem fazer cinema e, com essa arte, revelar e descobrir o Brasil para os brasileiros. É mais que emocionante como Glauber fala de Joaquim Pedro de Andrade e Leon Hirszman e de seus primeiros filmes. Glauber faz até uma divisão na velha divisão de direita versus esquerda, ele renova falando de um cinema de autor versus cinema comercial, ou seja, um progressista de autor e outro reacionário, isto é, comercial.
Glauber investe com uma coragem imensa contra os aproveitadores, contra os industrialistas que querem criar uma indústria nos moldes de Hollywood, num Brasil pobre, feito de espectadores de filmes americanos, que desde o início do século 20 tomaram o nosso imaginário e nos impuseram um gosto transgênico e insalubre nesse mesmo imaginário, que tem uma arte popular toda ela feita de improvisação, que já aparecia nos pés de Garrincha o do grande mestre-sala Delegado da Mangueira, o qual, junto com a flor maior das porta-bandeiras, Wilma Nascimento, a Wilma da Portela, nos mostrava o caminho, como os índios brasileiros mostraram o caminho da ternura para o nosso santo Anchieta.
Nesse momento em que os americanos e os ingleses querem fazer uma guerra absurda, em nome de lutarem contra os terroristas -mentira pura, pois é uma luta de dominação, uma luta pelo petróleo, uma volta do imperialismo cruel que pensávamos ter feito desaparecer de vez da face da terra; nesse momento lembramos do bravo baiano de Vitória da Conquista e pensamos naquela fúria vertiginosa e terna com que Glauber investia contra os sem fé, empunhando o mesmo coração aos gritos, como anos depois fez em Veneza num escândalo jamais visto, porque os mesmos vendilhões do templo não acreditavam em sua própria burrice de premiar o bom Louis Malle com um péssimo filme comercial contra a obra-prima total que é "A Idade da Terra".
Saudades, Glauber, Buru querido, saudades. Enquanto não entenderem "A Idade da Terra", vão ficar retomando um cinema da retomada que desconhecem. "Revisão Crítica" é apenas um livro genial que anunciava, além de um grande cineasta, um dos maiores críticos e escritores da língua portuguesa.


Paulo Cezar Saraceni é diretor de cinema. Seu novo filme, em cartaz, é "Banda de Ipanema".

Paulo Cezar Saraceni
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