Um comentador qualificado da obra de Henry James afirmou que se o estômago deste escritor fosse tão delicado quanto sua mente ele teria sem dúvida se tornado o analista da classe média norte-americana, uma vez que o enjôo de mar impediria sua remoção para a Europa.
Nesse caso seria possível imaginar duas coisas: primeiro, que a fantástica fecundidade de James iria aprofundar as percepções atualizadas nos seus romances americanos", entre os quais A Herdeira" (Washington Square"), publicado em 1881; segundo, que poderia desaparecer de sua ficção o tema internacional", todo ele centrado, como se sabe, no choque entre personagens americanos e os representantes da corrompida civilização européia.
A segunda hipótese talvez tivesse menos chance de vingar porque até neste romance nova-iorquino o tema comparece, arisco, na trama de relações entre as figuras centrais. Assim o caça-dotes Morris Townsend, que cerca como um lobo mau a indefesa Catherine Sloper, é um homem do mundo cujo maior prazer na vida, segundo alega, é o canto lírico que ele aprendeu a ouvir em Londres e Paris. Na evolução da prosa de James este jovem de boas maneiras e caráter duvidoso é um precursor de Gilbert Osmond, o sinistro esteta italianado que no Retrato de uma Senhora" fascina e passa a perna na altiva Isabel Archer, outra típica herdeira jamesiana. Mas, como diria James, estamos antecipando.
Washington Square" se passa num cenário estritamente americano. Austin Sloper, médico da moda de Nova York em meados do século passado, é viúvo e tem uma única filha, Catherine, com quem mora numa sólida casa da Praça Washington. Perspicaz, escarninho, cosmopolita e autoritário -representado de forma soberba por Ralph Richardson no filme Tarde Demais" (The Heiress") de William Wyler-, o dr. Sloper desdenha com uma convicção inabalável a delicadeza e a força da filha, a quem não perdoa por ela ser simples, insípida e incapaz de se casar. Seja como for, já no capítulo 4 a tímida bordadeira vai a uma festa na provinciana Nova York e cai nas malhas de Morris Townsend. O pai golpeia o namoro com frases duras e memoráveis, mas sua falta de consideração pelos sentimentos da filha é tanta que ela, cruelmente exposta às revelações da venalidade de Townsend, fica sozinha, sem o conforto de uma relação humana íntima. Dezessete anos depois o aventureiro internacional volta à carga e se faz admitir à força na casa de Catherine (ainda na Praça Washington), sabendo que a morte do médico havia finalmente colocado nas mãos dela a fortuna irresistível. Agora mulher madura -mas não completamente sem maldade como as amadas que envelheceram no poema de Bandeira-, Catherine despacha-o sem hesitação e volta ao seu bordado for life, as it were" (que o tradutor brasileiro transpôs sem garra para e desta vez para toda vida").
Evidentemente o livro tem uma substância nativa, mas o equilíbrio entre fundo e forma foi absorvido, segundo os entendidos, de mestres estrangeiros como Flaubert e Turgueniev, amigos de James, não sendo negligenciável também o parentesco com a Eugénie Grandet" de Balzac. O essencial no entanto tende a ser o talento dramático com que o escritor trabalha com um pequeno grupo de personagens. Austin Sloper é representativo como médico e burguês de Manhattan, mas é também o pai sem remorsos que estabelece uma relação lesiva com a filha e nesse sentido compõe uma personalidade complexa. A mesma avaliação cabe à tia de Catherine, Lavinia Penniman, alcoviteira militante que se assanha num romantismo fútil e fatura a vantagem secundária de viver perto de Townsend, que obviamente a usa e menospreza.
De qualquer modo o mais notável é que uma narrativa enxuta e brilhante como esta tenha por protagonista uma jovem insossa e sem espírito, para quem só acontece uma coisa importante no curso da existência: o fracasso. Mas, como observou um bom analista da obra, se James tivesse centrado toda a sua arte na figura de Catherine, ele teria tornado o romance a história dela, o que -a despeito de qualquer habilidade narrativa- acabaria por banalizá-lo.
Entende-se portanto que o escritor preferiu orientar a atenção de quem o lê não para a falta de peripécia, as mágoas e a honradez engomada da heroína, mas para os fios sensíveis que a ligam, num trançado sutil, ao pai, a Townsend e à sra. Penniman -sobre os quais ela afinal triunfa sem fazer o menor alarde. É nesse tom de surdina, que ameniza uma dor ardida, que Catherine toma consciência de que as balizas do seu currículo de mulher foram o cálculo descarado de Morris em relação ao seu afeto e o empenho do pai em quebrá-lo.
Vistas as coisas por este ângulo é previsível que A Herdeira" não seja uma descrição de Nova York -como o título original poderia sugerir- nem um romance de costumes à francesa, mas um drama moral na exata medida da prosa de James. No entrecho armado na pequena Praça Washington o leitor vê o dr. Sloper desfilar pelo palco e pelas escadas da casa sabendo que ele está certo sobre o caráter de Townsend, sobre o próprio caráter e sobre o caráter de Catherine. Mas a ação do todo ensina que estar certo nem sempre é o bastante, porque este médico implacável arruína a vida da filha e é obrigado a amargar na solidão a própria mesquinhez.
Adorno sustenta que o processo psíquico de racionalização consiste em usar a verdade objetiva para encobrir a inverdade subjetiva. É esta a marca da maldade de Sloper, que desmascara de alto a baixo o único pretendente que a filha ama -sem lembrar inclusive que ele próprio se casou com uma mulher rica como primeira etapa de uma carreira meritória. O caso particular aponta aqui para a noção mais geral de que a amnésia é necessária para justificar as fortunas. Mas por outro lado é difícil deixar de pensar que ser personagem de James tem o seu preço, mesmo que seja numa obra-prima.
A expressão vem à tona tão logo o leitor sucumbe a esta crônica admiravelmente bem construída de um penoso infortúnio pessoal. Baseado numa anedota verídica contada em 1879 ao escritor por sua amiga Fanny Kemble, atriz inglesa, o romance é econômico como uma novela e apto a produzir a unidade de efeito característica do conto. Como nada é casual, seja na mente ou na literatura, talvez isso se deva à desenvoltura estética com que James -craque da miniatura apesar dos textos quilométricos- soube impor, sobre o material, a ciência do controle", como ele próprio a denomina.
Mas tudo indica que na base de A Herdeira" ressoa também a prescrição que James fez a si mesmo e que vale para os seus colegas prosadores do Novo Mundo: Para escrever bem e com dignidade sobre as coisas americanas é necessário, mais ainda que em qualquer outra parte, ser um mestre" (o grifo é do próprio James). Machado de Assis diria o mesmo.
A tradução infelizmente não acompanha o padrão estabelecido por outros tradutores como Maria Luiza Penna (Os Papéis de Aspern", Global), Onédia Célia Pereira de Queiroz (Daisy Miller e Incidente Internacional", Imago), Paulo Henriques Britto (A Morte do Leão", Pelos Olhos de Maisie", Cia. das Letras) e José Paulo Paes (Até o Último Fantasma", Cia. das Letras) -trabalhos excelentes nos quais o leitor pode encontrar em nossa língua um equivalente eficaz da escrita de James, que é ao mesmo tempo minuciosa, intensa e sutil. Neste livro, a versão brasileira falha no estilo, na frase, na escolha das palavras e na gramática -os exemplos estão à mão a cada duas ou três páginas do romance- além do uso completamente equivocado de uma linguagem de telenovela para dar forma aos diálogos, que na ficção de James têm o peso e a precisão da dramaturgia.
Washington Square" (A Herdeira" é o título de uma peça extraída do romance) ainda não teve no Brasil a sorte que merecia. Talvez isso ainda possa ser corrigido.