Logotipo do Jornal de Resenhas
Fabiano Santos - 92 - Janeiro de 2003
Crônica da redemocratização
Da transição democrática ao fim do governo FHC
Foto da capa do livro Tempo presente: do MDB a FHC
Tempo presente: do MDB a FHC
Autor: Fábio Wanderley Reis
Editora: Ed. UFMG - 403 páginas
Foto do(a) autor(a) Fabiano Santos

Professor de várias gerações hoje atuantes no meio acadêmico, autor de vasta obra em torno de temas como racionalidade e política, instituições e democratização, cultura cívica e comportamento eleitoral, o cientista político Fábio Wanderley nos brinda agora com uma coletânea de pequenos artigos de conjuntura, publicados em jornais e elaborados ao longo dos mais de 20 anos que marcam o início de nossa transição democrática até o final do segundo mandato do governo Fernando Henrique Cardoso.
A principal qualidade do livro é a de mostrar a contribuição que o estudo sistemático do fenômeno político pode trazer para o debate público, quando questões cruciais de nosso destino vêm à tona e exigem o posicionamento do conjunto da sociedade. Democracia também se constrói com pedagogia política e esta depende do debate aprofundado dos temas fundamentais com os quais uma nação se confronta. Neste sentido, a clareza com que os temas são debatidos, os diversos argumentos em torno de uma controvérsia, o peso de cada um, a abordagem crítica quando necessária, todos estes elementos estão presentes nesses pequenos ensaios, atingindo em sua essência aquilo que talvez seja a melhor contribuição que o cientista político pode trazer para o grande público: esclarecimento.
A primeira parte, "Autoritarismo e Transição", trata dos problemas relacionados à redemocratização do país. As estratégias da oposição e do regime, a emenda das "diretas já", a esperança depositada na eleição de Tancredo Neves à Presidência da República e a posterior decepção com o seu prematuro desaparecimento, o período Sarney e o Plano Cruzado, a Constituição de 1988, a ascensão de Collor e o plebiscito sobre o sistema de governo são os temas tratados ao longo das primeiras 70 páginas do livro.
Um conceito muito presente na reflexão do autor é o de "pretorianismo". Elaborado pelo cientista político Samuel Huntington, professor de Harvard, onde Fábio Wanderley obteve o PhD, o conceito descreve situações de baixa capacidade do sistema político em absorver demandas e conflitos, tornando-o presa fácil de aventuras autoritárias. A atuação política de grupos sociais, tais como militares, estudantes, sindicatos, empresariado, na ausência de canais institucionalizados de participação, isto é, diante de um sistema partidário ainda instável e com dificuldades para legitimar-se, geraria um quadro de ingovernabilidade que se expressaria na incapacidade de o governo intermediar clivagens radicadas na sociedade.
Na verdade, o receio de Fábio Wanderley, diante da estratégia de parte da oposição para criar novos partidos a partir do tronco comum do antigo MDB e seu patrimônio político institucional consolidado, provém da mesma raiz analítica dos trabalhos de Huntington, a teoria da modernização política, teoria que se viu até certo ponto infirmada pelos próprios fatos. Temos, neste contexto, mais uma demonstração de que a história prega peças na ciência política, sempre a desmentir as mais brilhantes e convincentes análises.

O voto no Brasil
"Democracia, Eleitorado e Reformas" trata de eleições e problemas institucionais. A reforma do sistema eleitoral, o comportamento do eleitorado brasileiro, as características do espectro ideológico do nosso sistema partidário e o papel das pesquisas eleitorais são as questões que povoam este conjunto de artigos. Tirando proveito de sua experiência em "surveys" eleitorais, o autor analisa a questão do voto no Brasil. Contudo, ao arriscar opinião favorável à adoção do voto distrital misto, o autor comete pequena escorregadela na temática institucional. Fábio Wanderley argumenta que não encontra motivos para não experimentar tal sistema no país, mas tampouco oferece boas razões para fazê-lo, com exceção de ser um meio-termo entre o sistema majoritário e o proporcional.
Considerando que intervenção em assuntos institucionais é sempre algo delicado e envolve efeitos incertos, não parece persuasivo introduzir alteração institucional dessa envergadura apenas para conciliar ponderações de defensores dos dois sistemas clássicos de representação.
"Nação Brasileira e Questão Social" possui forte componente sociológico. O problema do nacionalismo no contexto contemporâneo, racismo, xenofobia, desigualdade e exclusão social fazem parte da galeria de assuntos abordados. O grande destaque nessa altura do volume é sem dúvida a argumentação de Fábio Wanderley sobre as possibilidades da ação afirmativa no Brasil. Defensor da idéia segundo a qual a democracia racial é um valor a ser permanentemente almejado, o autor expõe bons motivos para que abandonemos a importação de soluções para o problema da desigualdade. Nova oportunidade para a exposição surgirá do próximo período presidencial, uma vez que o governo recém-empossado prometeu em campanha adotar política de cotas para negros em universidades públicas e empresas.
A quarta parte, "Cena Mundial e Globalização", introduz temas ligados à política internacional. O impacto do capital financeiro na política interna dos países emergentes, os novos contornos assumidos pelo capitalismo contemporâneo, a questão do império e as novas formas de "governança" fazem parte das preocupações de Fábio Wanderley nesta seção da coletânea. O ponto de interesse aqui é a contraposição feita entre os valores hegemônicos nas sociedades de mercado, notadamente o de autonomia individual, e os ideários de solidariedade, pertencimento e interesse coletivo presentes no "telos" do socialismo.
Vale dizer, se a globalização consagra em escala mundial o desiderato da liberdade individual, perde-se muito em questões-chave da vida social, como identidade coletiva e valores comunais. Essas considerações são feitas ao longo de páginas em que eventos nacionais e mundiais, bem como comentários a obras importantes no pensamento social contemporâneo, servem de pretexto para a análise.

O período FHC
"Governo FHC e Oposição" é dedicada à análise dos dois últimos períodos presidenciais. CPIs, a questão da reeleição, a aliança de FHC com o PFL, o comportamento do PMDB e da oposição, principalmente do PT, o Plano Real, o apagão e as possibilidades de um governo petista são os temas abordados na última parte do livro. A principal linha de argumentação aqui presente trata da necessidade de se implantar uma verdadeira social-democracia no país e dos problemas enfrentados pelos tucanos para alcançar tal objetivo.
A falta de uma base sindical no partido do presidente, uma coalizão de apoio no Congresso de perfil conservador, uma certa passividade do governo diante da crescente vulnerabilidade externa de nossa economia são alguns dos problemas identificados por Fábio Wanderley a impedir que os valores da livre-iniciativa e liberdade individual pudessem ao longo destes oito anos de mandato de FHC se conjugar com a proteção do tecido social mediante políticas de inspiração socialista.
Em suma, com a coletânea "Tempo Presente" Fábio Wanderley fornece um belo conjunto de crônicas sobre o processo de consolidação de nossa democracia, no qual estão sempre presentes a percepção aguda dos principais problemas sociais e políticos no Brasil e no mundo, aliada à clareza de exposição e capacidade analítica para dar conta de seu entendimento e propostas de solução institucional. Discordâncias, não obstante.


Fabiano Santos é professor de ciência política do Iuperj (Instituto Universitário de Pesquisas do Rio de Janeiro).

Fabiano Santos
Top